O sítio encantado - Parte I
O SÍTIO ENCANTADO - PARTE I
Paulo Lisker, de Israel
Nunca esquecerei a família de dona Cármen e António Ramos e seus sete filhos (Edson, Nadinho, Maria do Carmo, Zequinha e outros que minha memória já corroída pelo tempo, não consegue mais recordar).
Meu avô, seu José, que habitava o sótão de nossa casa, foi sócio fundador do Hospital Evangélico (vi o documento emoldurado pendurado junto aos retratos de Juarez Távora e do brigadeiro Eduardo Gomes, no seu quarto de dormir). Nunca dei fé se este hospital realmente existiu!
Sim, sei que este velho "humanista" ajudava ao seu Ramos pagar pelos remédios que de vez em quando necessitava para a sua família.
Senhor Ramos, nosso vizinho, era o vigia de um sítio enorme, coberto de vestígios da Mata Atlântica no coração do bairro da Boa Vista e estava encostado no muro do fundo de nosso quintal.
Esta relíquia, infelizmente depois de anos foi comprada pelo Colégio Marista que ampliou suas dependências e derrubou este último vestígio da "mata" no centro urbano do Recife.
Quando isso aconteceu, eu acho que por desgosto do acontecido, envelheci e me tornei amargurado como se 20 anos a mais me foram colocados nos ombros de menino. Só não chorei porque era praxe dizer que homem não chora, mas estava a ponto!
A amizade com os Ramos era bilateral. No São João, minha mãe mandava meio saco de feijão mulatinho, uns quilos de farinha de mandioca, fubá, coco seco, duas ou três garrafas de leite, açúcar, azeite em lata (de nome Sol Levante), canela e não sei o que mais, e recebíamos deles cuscuz com raspas de coco, de manhã logo cedo, e de noite a mais gostosa canjica do mundo.
O cheirinho que estas comidas emanavam enchiam nossa casa e pulmões por todo o dia.
E na véspera do Natal, eu que era muito amigo de Edson, o filho mais velho (no fim de ano eu passava para ele meus livros escolares), ele me convidava para cear com eles, na sua casa rústica, encostada ao nosso casarão da Gervásio Pires.
Minha mãe mandava com a empregada que me acompanhava um pacotão de roupa usada de toda nossa família, brinquedos rústicos que meu tio "sertanejo" comprava nas feiras de Palhano e São Lourenço e que estavam "encostados" por falta de alguma peça ou interesse nosso em fazer deles uso em nossas brincadeiras, bombons e chocolates que comprava no tabuleiro do senhor Lopes na esquina do Giriquiti (cabe esclarecer que naquele tempo não havia data para o fim da utilização destes produtos, possivelmente já estavam sobre passados por mais de ano, interessante que nunca ninguém morreu ou adoeceu por isto)! Bela época aquela, ou bons aparelhos digestivos daquela gente.
Gente humilde e educada. Recebiam o que lhes enviavam, sempre agradeciam, porém frisavam que não era preciso, que não lhes falta nada e que Jesus nos envie uma bênção e muita paz de espírito.
A ceia era em volta de uma mesa rústica e bancos ao redor, três candeeiros emanavam uma santa claridade e o cheirinho de querosene.
Dona Cármen, depois da oração de seu Ramos, (ele, evangélico e ela, espírita), trazia do forno de lenha, macaxeira rosa cozida e temperada (me parecia), com banha de porco, logo depois era servido a fruta pão, também temperado com um tipo de gordura que era assimilada por toda sua polpa interna (delicioso), tudo isto acompanhado com os ovos das poedeiras do seu quintal (da gema amarela quase vermelha) e o ponto alto, as estrias de carne do sol, com farofa de mandioca, quentinha e cheirosa acompanhada de um arroz branco branquinho, solto grão a grão e com um cheirinho de fumaça de fogão de lenha de dona Cármen!
No fim se tomava café bem doce em canecos de alumínio, porém nunca antes da advertência de dona Cármen:"Menino o café ta fervendo. Cuidado, menino, para não queimar os beiços!"
Ao terminar a ceia natalina a meninada já de bucho cheio, saltavam e gritavam "Jesus nasceu, Jesus nasceu" e saíam correndo para o portão de saída do sitio, iam brincar e festejar com a meninada da rua.
Eu voltava pra casa, pois meus pais sempre me faziam lembrar que o Natal não é festa de judeus. Apesar de Jesus ter nascido e morrido como judeu!
Tem coisas que não esquecerei nunca!
Pouco mais de meio século depois, o gosto e o cheiro das comidas crioulas que preparavam as famílias "goi" do Recife, vivem comigo até hoje e não tem um parente que venha para a "terra santa" que não traga uns pacotinhos de farinha de mandioca e às vezes se arriscam e trazem carne de charque em vácuo e umas latinhas de feijoada pronta. Uma festa!!!
Eu os agradeço imensamente, pois não deixarei este mundo sem pelo menos levar o gostinho do que é bom da nossa culinária!
Dona Cármen era uma verdadeira santa e mandava dizer a minha mãe que mandasse o Paulinho para o almoço amanhã, pois ela prepararia "galinha de cabidela" (galinha cozinhada no seu próprio sangue, "thareif", terminante proibida como alimento para os judeus).
Minha mãe agradecia e sempre encontrava um pretexto para se desvencilhar deste tipo de comida dizendo que:"Amanhã viajaremos de bonde para Madalena, vamos visitar a tia Judite, que está enferma". Viajar de bonde era uma festa para nós os miúdos e para o bairro da Madalena em especial, passávamos por pontes, estádio do Sport Club do Recife, na Ilha do Retiro, e levava um tempão.
Às vezes até levávamos lanche para não ficar com fome no meio do caminho. Tudo isto para evitar a comida da galinha de cabidela considerada pelos judeus como "thareif" (proibida).
Mas aqui entre nós, que era gostosa pra chuchu, era!
Fim da parte um, na próxima semana se Deus quiser será postada a parte dois e assim por adiante.
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Eng.Agr.Ildo Eliezer Lederman, Recife
ResponderExcluirDISSE:
Paulo,
Achei excelente essa sua ultima cronica (não croniqueta) e mais uma vez, me trouxe com ela muitos "gahagu-im" (lembranças, em hebraico), principalmente, qdo. vc. descreve as comidas tipicamente nordestinas servidas no dia a dia como aquelas proprias dos festejos juninos.
Helinho
ResponderExcluir..
Dr. M. Rosenblatt, Hadera-Israel
DISSE:
Paulo,
Hoje em dia, se teu neto ler esse artigo, vai pensar que o avô era retardado mental.
Vovô, você se divertia com viajem de bonde???
Ah, ja’ sei vovô. Você levava o seu iPad e ficava brincando durante a viajem, nao e’?
Outra coisa, vovô: o que são esses passarinhos grandes em volta desse menino pobre sentado no chao, na foto?
ResponderExcluirEng. I. Rosenblatt Recife
DISSE:
O Hospital Evangélico existe e fica perto do Carrefour na Torre.
O Colégio Marista virou uma loja gigantesca em 4 andares do tipo "tem-de-tudo", o "Atacadão dos Presentes e da Construção", com estacionamento subterrâneo.
Parte da área ainda vai virar um Shopping, serve hoje de estacionamento aberto.
O estádio do Sport hoje parece tão perto de tudo, assim como a Madalena. Hoje é o "centro da cidade"...
E vai virar uma "Arena multiuso", moderna e com shopping dentro.
Quanto a Madalena vai passar por um caos durante 10 meses para a abertura de um túnel no cruzamento da Real da Torre-Caxangá-Benfica.
As mudanças têm sido muito rápidas nos últimos anos. Pena que vc não possa ver.
ResponderExcluirProf. Dr.Meraldo Zisman, Recife
DISSE:
Está muito bom Paulo!
abraços
Meraldo
ResponderExcluirDr. Ary Ruchansky Israel
DISSE:
Paulo,
Vivo a cada linha esta infância. Otimo.
ary
Dr. Ary Ruchansky Israel
DISSE:
Paulo,
Vivo a cada linha esta infância. Otimo.
ary
ResponderExcluirEng. I. Coslovsky, São Paulo Brasil
DISSE:
PAULO
MUITO BOM COMO SEMPRE.
AGAURDAMOS A CONTINUAÇÃO, MAS ME PARECE UMA NOVA VERSÃO, MUITO MRLHOR, DE UM DOS PRIMEIROS TRABALHOS SEUS QUE LI.
UM ABRAÇO
CHAG SAMEACH
ISRAEL
24 de março de 2013 06:30