terça-feira, 13 de agosto de 2013

O JOGO DO BICHO E A COLÔNIA JUDAICA - PRIMEIRA PARTE


O jogo do bicho e a colônia judaica do Recife - Primeira Parte

                                                                     Foto Google

O JOGO DO BICHO E A COLÔNIA JUDAICA DO RECIFE - PRIMEIRA PARTEPaulo Lisker, de Israel

Os imigrantes judeus ashkenazitas* que chegaram em geral no principio do século passado no Brasil e no Recife em especial, eram na sua maioria proveniente de longínquos rincões do leste europeu (Rússia, Polônia, Romênia, Países Bálticos, etc.).
Para esta gente o continente americano era um verdadeiro enigma e o continente sul em especial era também por demais perigoso. Cheio de "índios" (em iídiche: Molpes) era de causar medo a qualquer mortal, ainda mais aos judeus que já trazem um complexo milenar de ver nas "sombras das montanhas, as próprias montanhas". Isto tem origem numa expressão em hebraico: "lirót tseil harim qui harim" ou no idioma "faladeira brasiliense" simplesmente "mordido de cobra".
O "perigo eminente" é para essa gente um item essencial no seu cardápio diário. Um medo, de qualquer coisa que se mexe.
Deste complexo deriva toda uma forma de vida, viver juntos, ajuda mutua, alfabetização e educação antes mesmo da comida na mesa e salvar a alma de um moribundo é como se tivesse salvado toda a humanidade. Tudo isso oriundo desse medo que já vem com o leite materno.
Pela primeira vez na vida essa gente se deparou com costumes nunca vistos antes, assim como, dormir em rede, comer com as mãos, tomar água de quartinha, andar descalços ou com tamancos, chapéu de palha, meninos de bucho inchado se criando nus entre os mocambos.
O panorama vislumbrado destes recém chegados ao Novo Mundo foi pesado demais e mesmo muito estranho.
Na realidade eram costumes totalmente desconhecidos nos "shteitlach" (aldeias), mesmo naquelas muito atrasadas no leste europeu, de onde eles procediam.
De todas estas estranhezas o "jogo do bicho" era o maximo! Pensavam eles, que de finanças entendiam, mas o "jogo do bicho" era uma novidade assim como andar de tamancos ou mais complicado ainda.
Não entendiam patavina, nem a lógica como a coisa funcionava.
Tinham ouvido falar que na Europa rica, "corria" loteria nas grandes cidades, mas eles pobres judeus que viviam em geral nas áreas interioranas, não faziam idéia como se ganhava dinheiro sem trabalhar.
Às vezes aparecia uma noticia alvissareira que numa outra aldeia, nunca na sua própria (em geral era em "Koloméie" ou junto de "Lemberg") e como era sempre um boato, não havia como comprovar a veracidade do fato.
Contava-se, que um desses pobretões viajara de trem, numa emergência, a uma grande cidade regional.
O propósito dele era vender na feira da cidade as suas ultimas batatas da safra que colheu antes que as chuvas destruíram a sua pequena lavoura.
Lá, um judeu vendedor de "sorte grande" (loteria) orientou-o na cidade desconhecida a chegar até a grande feira de rua com suas batatas.
Deste senhor, comprou pela primeira vez na vida "a tsetalé" (um bilhete de loteria, em iídiche) que corria naquela mesma tarde, agora o resto acreditem se quiser.
Ele que era o "shlimazel" (o azarado, em iídiche) da aldeia, ganhou a "sorte grande", recebeu um premio enorme em dinheiro, nunca visto antes na Polônia.
Não posso garantir, porem dizem que o "violinista no telhado" e "Tobias o leiteiro", músicas e obras teatrais que no correr dos anos se tornaram a clássica nos repertórios internacionais no mundo, surgiram do tal "boato" e o grande premio que o azarado pegou e que era o sonho de todo judeu nas pequenas aldeias.
Judeus pobres e perseguidos durante séculos pela população cristã comandada pela igreja, em especial a Gregoriana do leste europeu, porem não só ela.
Era comum contar com o apoio massivo das realezas em distintos países europeus, porem os mais ativos mesmo eram os Czares russos anti-semitas.
Para realizar seus propósitos nefastos contra a indefesa população judaica, eles contavam por um lado com as populações famintas e por outro lado com os cossacos sanguinários que ainda hoje buscam vingança pela crucificação do filho de Deus.
Os mandatários destes países não moveriam um dedo sequer para defender seus súditos judeus do "pogroms" *** executados pelos seus outros obedientes súditos.
Desta forma, encontravam "solo fértil" para seus assaltos para roubar e matar esta população que era o eterno "bode expiatório", nestas aldeias miseráveis.
Desta situação caótica só havia duas maneiras de salvar a própria vida e os familiares.
Quando se está com as "costas na parede", a imaginação começa a fantasiar uma realidade impossível (quem sabe, possível talvez só para judeus).
Uma opção seria ganhar um grande premio na loteria como o tal "shlimmazel" (o azarado).
Pois os ricos de todo o mundo se entendem e ninguém quer se meter com eles, compram até os reis mais poderosos da Europa, como diz a canção "Se eu fosse Rotschild" ** na comedia musical "Tobias o leiteiro".
A outra opção seria não mais iludir-se com prêmios da loteria e sim deixar para trás, 400 anos de tradição, costumes, familiares, amizades, animais de criação, etc. e emigrar para o Novo Mundo, a grande esperança.
Havia também a possibilidade da Palestina, que estava naquele tempo baixo o controle Otomano, o grande Império Turco.
Esta segunda hipótese poderia facilmente se transformar na pior das opções, caso optassem pela Palestina.
A situação imperante no Oriente Médio era de total atraso caracterizado pelo marasmo de uma população muçulmana, turcos, árabe, sem motivação nenhuma.
O desenvolvimento que o mundo atravessava era totalmente estranho para eles.
A vida era regida pela filosofia muito conhecida nesta área: "Sombra e água fresca e o grande Alá ajudará".
Mesmo quando o Império Britânico se instalou aí depois da expulsão dos turcos a coisa não melhorou muito.
O atraso, pobreza miséria, malaria, eram as características mais marcantes desta região que é pobre em recursos naturais.
Diziam os gozadores da época que nesta especifica área existe um "recurso natural" espetacular quase não explorado, então, por favor, não reclamar demais.
Qual o tal recurso inexplorado? Perguntavam!
O sol, era a resposta!
Para que serve o sol, meu Deus.
Para secar a roupa.
O problema residia na falta total de água nesta área semidesértica e também muita roupa não possuíam para lavar.
Assim sendo, este recurso a "dádiva de Deus no céu", continuaria sendo por muito tempo inexplorado.
Dos poucos que chegaram à Palestina, grande parte foi embora e difundiram entre aqueles que buscavam uma solução viável para a vida sofrida na Europa que esta opção era: "trocar merda por outra merda pior".
Para a Palestina nem de graça, talvez quando baixar do céu o Messias.
Então só restava a primeira: "meter os chifres" num barco a vapor que os levasse para o Novo Mundo.
Povo crente de esperança infinita que ajuda a não desanimar nunca, mesmo nesta aventura no Novo Mundo em rumo ao continente sul americano desconhecido.
Assim foi, chegaram com "uma mão na frente e outra atrás" como dizia a população local, os tais "molpes", nos primeiros contatos com estes estranhos imigrantes recém chegados.
Uma das estranhezas que esta gente se deparou no Recife, seu novo habitat, foi como antes comentei, o tal "jogo do bicho".
Com as outras estranhezas possivelmente com o tempo se acostumariam. Mas "jogo do bicho", o que é que é isso? Que bichos são esses?
É pra caçar? Vender peles?
Jogo do bicho é coisa de circo com bichos fazendo acrobacias?
Que diabo é isso?
Estavam deveras desnorteados na sua nova pátria.
Mas agora urgentemente tinham que cuidar da vida e o jogo do bicho ficaria para outra oportunidade.

08/02/2012

(Todos os direitos autorais registrados)

*Ashkenazitas-Judeus de origem leste européia que o idioma usado entre eles e não importa o país de origem é o iídiche, um dialeto com sotaques distintos, derivado da língua alemã.
** Rotschild-Uma das poucas famílias judias muito ricas na época e que afora seu império financeiro tinha enorme influencia nos meios políticos dos governos europeus.
***Pogrom-Atrocidades realizadas por "huligans" (desordeiros) contra a minoria judaica em geral no leste europeu, quando geralmente recebiam a permissão para tal de entes oficiais.

3 comentários:


  1. Israel Coslovsky- São Paulo
    DISSE:

    PAULO
    MUITO BOM, COMO SEMPRE, E BEM DIDATICO DESTA VEZ.

    VERIFIQUE SE “MOLPE” É REALMENTE INDIO.

    UM ABRAÇO

    ISRAEL

    -------------------------------

    ResponderExcluir
  2. Rubem Pinkovsky- Recife.
    DISSE:

    Estimado amigo Paulo Lisker,
    As duas últimas crônicas de sua autoria que recebi foram: 1) A que trata dos saudosos jogos de botão e 2) a que se trata da primeira parte do jogo de bicho, jogo que ainda hoje, apesar de ser considerado contravenção, continua existindo em cada esquina.
    Como de costume, gostei, e muito, de ambas, embora a que tenha me agradado mais ainda a dos jogos de botão, porque me trouxe muitas recordações.
    Fui adepto deste "esporte" em Maceió, minha terra natal, onde vivi os primeiros doze anos de minha vida. Quando cheguei ao Recife, ainda tinha uns dois ou três times. Mas eu era pouco "entrosado" e logo o brinquedo foi esquecido...
    Abraço. Rubem.

    13 de fevereiro de 2012 17:01 Excluir

    ResponderExcluir

  3. Sluva Waintraub- Salvador- Bahia.

    Paulo:
    Aqui em Salvador o Jogo do Bicho, embora ilegal, continua funcionando em toda parte e com muito sucesso.
    Corrigiria apenas: "perigo eminente" o correto é "perigo iminente" e na frase "antes que as chuvas destruiram" eu escreveria "antes que as chuvas destruissem"

    Shabat Shalom, Sluva.

    ResponderExcluir