terça-feira, 13 de agosto de 2013

O JOGO DO BICHO E A COLÔNIA JUDAICA (parte 4)


A esperança é a última que morre


O JOGO DO BICHO E A COLÔNIA JUDAICA DO RECIFE (parte 4)
Paulo Lisker, de Israel


Tema: A esperança é a ultima que morre.

Ainda estamos comentando sobre o Jogo do Bicho no Recife.
Não sou um entendido neste jogo e nem tenho intenção de competir com dezenas de cronistas que já cobriram o assunto com "penas e depenados".
Quem quer saber muito mais sobre este tema vai encontrar na Internet tudo que lhe interessa e mais.
O aspecto que muito me interessou neste assunto foi analisar como este jogo foi assimilado pela colônia judaica no Recife no princípio do século passado, quando esta gente chegou da Europa.
Será que ele serviu de catalisador nos câmbios e na maneira de se relacionar com a população local (os goim) que já era viciada nesse jogo popular?
Sabemos que jogo pra "ganhar dinheiro fácil", ainda mais quando é ilegal, tem a capacidade de aproximar "gentes de quadrantes" totalmente opostos.
Tem um refrão em hebraico que diz "maaim gnuvim imtacu". Tradução direta para o português, seria: "Água dos outros (roubada), sempre é muito mais doce" (gostosa).
Será que a participação da população da cidade neste jogo
provocou uma maior aproximação entre a "população
nativa" (os goim) e judeus (imigrantes), em geral e no
Bairro da Boa Vista em especial? Pois agora eles seriam
clientes da mesma loteria, das mesmas esperanças e soldados do mesmo regimento de apostadores viciados.
Que tudo isso não era "muito católico" como dizia o pessoal na rua, todos sabiam, mas se superavam ou não se importavam muito, pois "água roubada é sempre mais doce".
A colaboração entre todas as pessoas que jogavam no "bicho" era uma só.
Não importava a cor da tez, religião, classe, situação econômica, operário ou patrão, até os mendigos que tinham sonhos de melhorar de vida (e quem não tem) faziam parte do mais solidário grupo, o regimento de apostadores viciados e convencidos de um futuro melhor.
Este futuro era logo mais na tardinha, depois de receber o resultado do jogo do bicho. Era a hora (H)!
Nas ruas só se ouvia a celebre pergunta: Que bicho deu meu senhor? Que bicho deu? Que bicho?
Toda gente com um recibo, copia do talão onde registrou sua aposta, a perguntar aos passantes pelas ruas do bairro.
Este contingente de apostadores era extremamente solidário em defesa da continuidade desta loteria e está mais do que claro a causa disto.
Quando informados antecipadamente pelos organizadores do sorteio que os agentes da lei estariam por fazer alguma investida para desbaratar este jogo ilegal, então em tempo útil divulgavam numa velocidade espantosa a noticia de quando seria a "clássica batida".
Caso isso viesse acontecer, possivelmente destruiria este "ultimo reduto" que permitia emoções, tensão, alegrias, novas amizades e quem sabe um dia acertar numa milhar e levar pra casa uns "trocados".
Um jogo com tantos componentes emocionais, dificilmente as autoridades legais poderiam fazer desaparecer e a prova disso é que mais de meio século tentam e o jogo está em toda esquina, "para o bem geral da nação".
Essas investidas policiais fracassavam na sua totalidade e no lugar dos banqueiros nas esquinas como era comum todos os dias, estavam os vendedores de roletes de cana, o tabuleiro do "cachorro quente", o amolador de facas e tesouras, o vassoureiro com seus espanadores, balaios de lã de barriguda e meninos jogando "pelada" nas calçadas no lugar onde em geral se desenvolvia um emaranhado de loteria ilegal e corria mais "dinheiro sujo" que em qualquer máfia do mundo e tudo isso organizado pelo pessoal de cúpula.
Eles tinham toda informação necessária para tal das autoridades legais, seus cúmplices, que recebiam propinas dos "bancos e conselheiros" seus amigos.
Assim sendo o "Jogo do Bicho" em tempo algum desapareceu.
Era contra a lei e terminantemente proibido porem nunca deixou de existir desde que foi "bolado" (inventado), pelo Barão J. B. V. Drummond no ano 1892.
Ele para incentivar a visita ao seu pequeno zoológico no Rio de Janeiro, onde mantinha os seus 25 bichos expostos ao publico, criou um sorteio e com isso atraia mais publico e também aumentava o ingresso do seu jardim zoológico.
Cada bilhete que o publico comprava na entrada do jardim tinha estampado um dos 25 bichos do zoológico. Um desses bichos que estava escondido só aparecia no fim da tarde. O bilhete com a estampa desse bicho escondido ganhava um premio em dinheiro.
Daí ficou o nome "jogo do bicho" que logo se espalhou pelo Brasil todo, dizem que até chegou também a Portugal.
Claro que com o decorrer dos anos ele sofreu câmbios para seu melhoramento na tecnologia do sorteio, porem nunca trocaram as leis básicas do jogo em si, ficou exatamente como foi inventado pelo Barão.
O porquê desses bichos, não se tem conhecimento, possivelmente por serem exatamente os existentes no zoológico do Barão Drummond.
Quando o jogo saiu dos limites inocentes do zoológico então aprimoraram a loteria de maneira que já tinha características de uma loteria popular.
Ficaram os mesmos 25 bichos (animais e aves), cada qual deles estava representado por quatro algarismos, por exemplo, o primeiro animal era Avestruz, os números representativos eram: 1-2-3-4, ou o décimo sexto era o Leão, representado pelos algarismos: 61-62-63-64, o ultimo da lista, numero 25 era a Vaca representada pelos algarismos: 97-98-99-00.
Tinha apostas no grupo, na dezena, centena e milhar.
Ao acertar numa delas recebiam o premio que estava estipulado para tal. O premio galgava em escala crescente até a milhar e se podia ganhar até de um para 3 mil.
O mais importante neste jogo era que se podia apostar uma pequena soma de dinheiro, coisa que não existe nas loterias institucionalizadas, desta forma todo e qualquer "pé rapado" (pobretão), podia participar.
Assim sendo, o jogo do bicho se transformou num jogo popular que dava acesso a ricos e pobres, mesmo a população de muito baixo ingresso, mendigos jogavam e lhes dava a ultima esperança para melhorar a vida.
Foi o jogo do bicho que criou e com muita razão o refrão: "A esperança é a ultima que morre".
Era uma grande verdade, o pobre ou ganhava ou morria, outra saída não havia.
Viva, outra invenção brasileira (eu mesmo não sabia), ademais da "maquina de descascar laranja" sempre presente na entrada dos estádios de futebol e o "mais pesado que o ar", o avião, inventado por Santos Dumont e que ninguém no mundo até hoje aceita como invenção brasileira. Agora com esta invenção, o jogo do bicho passaria a nos honrar, vangloriar e consolar, se o avião não, pelo menos o jogo do bicho, sim!
Até hoje ninguém duvidou desta invenção genuinamente nossa, bravo, bravo!!!
Então a coisa não é tão complicada como pensávamos, nem é conspiração contra nossas atividades "comerciais", os "bicheiros" não são agentes do governo e os que pensávamos serem "informantes" eram meros apostadores.
Ninguém tem medo mais de nada quando joga nesta loteria, mesmo que ela sempre estivesse fora da lei.
Como diz o conhecido refrão: "A voz do povo é a voz de Deus", ainda mais que Deus é brasileiro, natural de Belém...... do Pará, Pois é.
Os "molpes" (população local) fazem isto abertamente à luz do sol, então por que nós os judeus também não entramos nesta "mamata" e vamos ganhar dinheiro.
Era o pensamento dos novos imigrantes que ontem ou anteontem chegaram ao porto do Recife.
Agora já era costume ir todos os dias ao bicheiro e colocar seu "palpite" até duas vezes por dia e sempre esperançosos que no fim da tarde receberiam das mãos do bicheiro, banqueiro, cambista, não importa como se chamam, um pacote de cédulas de contos de réis pra melhorar a vida ou comprar as passagens pra família que ficou na Europa.
Estamos pedindo muito? Nada, nada mesmo!
Deus do céu, este jogo do bicho se a gente pega uma milhar duas vezes no ano, seria mesmo uma solução para todos os sonhos de qualquer mortal no Recife, diziam (em iídiche: "Azoi hot er gezugt, nu hot er guezugt")!
Agora acredito no ditado que a "Esperança é a ultima que morre".
Com uma única exceção, para aqueles cambistas que "dão no pé" e fogem com o dinheiro dos apostadores.
São muito poucos, acho que na historia do jogo do bicho não contaríamos o numero deles nos dedos da palma de uma mão.
Pelo que se sabe nenhum deles nunca escapou ao castigo da "família bicheira", nem sequer nenhum dele teve a chance de gozar do dinheiro que roubou.
Em geral depois de curto tempo era encontrado sem vida numa sarjeta de uma rua num subúrbio qualquer.
Fato muito raro que o apostador que ganhou no bicho do dia, perdesse sequer um vintém do seu merecido premio, seja ele grande ou pequeno, nunca ninguém perdeu um vintém do que apostou.
A "Banca" sempre respeitou a aposta e pagou o premio sem nunca dificultar o tramite do dinheiro.
Isto é que eles chamam: "confiança e fidelidade para com o cliente".
No jogo do Bicho o freguês tem sempre a razão, pois o lema é: VALE O QUE ESTÁ ESCRITO. Cumprido ao pé da letra.
Vá procurar esta "pedra básica" noutro qualquer ramo comercial, não encontra nem a pau!
Isto é a mais pura verdade.

(Todos os direitos autorais reservados)
23/02/2012

Um comentário:

  1. Rosaly. Recife
    Disse:
    Sr.Paulo Lisker,
    Boa Tarde!
    Tenho recebido suas crônicas via email de amigos.São muito interessantes.
    Sou do Recife,da comunidade judaica local,lembro bem da sua mãe e seu irmão.Aliás a sua foto lembra demais D.Ana.Meu pai,falecido,José Bushatsky,e minha mãe Flora S.Bushatsky,para quem repasso seus emails.Mamãe guarda fotos ainda da sua mãe,e lembra bem da familia.Se quiser entrar em contato com ela,seria bom.Seu email:flbus.
    Suas crônicas,nos reportam a um tempo muito bom.Se faz necessario editá-las.
    Kol Hakavod!
    Shalom!
    em continuação:
    Sr.Paulo Lisker,
    agradeço a atenção e gostaria de receber a crõnica sôbre papai "zl que disse ter escrito.
    Papai sempre dizia que seria conhecido não como o engenheiro e professor que foi,mas como goleiro do Sport,uma de suas paixões.Grata e Shabat Shalom.
    Rosaly
    PS.Se enviar seu endereço,remeteremos o livro sobre papai que mamãe escreveu.
    -------------------------------
    Paulo Lisker Israel.
    Responde:

    Estimada senhora Flora e Rosaly, bom dia.
    Me alegra o contato estabelecido.
    O que escrevi sobre Sr. José Buchatsky não foi mais que um trecho dentro de uma crónica inteira sobre como entendiam naquele tempo, no principio do século passado, a matéria do futebol na Praça Maciél Pinheiro.
    Como nada ficou registrado, restaram as "lembranças e lendas urbanas" que esvoaçavam nossa imaginação de crianças.
    Envio uma parte do escrito que em poucas linhas cito o desempenho de "Zezinho" (Buchada) como esportista e engenheiro da prefeitura do Recife.
    Quando escrevi sobre o Sr. Sadigursky como por encanto contatou a senhora Sluva de Salvador que é sua parente e agora é leitora assíduas destas crónicas. Pena que a nossa comunidade no Recife não toma conhecimento destas crónicas inéditas.
    Agora "posso morrer descansado", aos poucos estas cronicas e os desenhos infantis de acompanham algumas delas, estão fazendo seus efeitos.
    Meu endereço : Rehov Shin Ben Zion 3 apt 4 Rehovot-Israel. Code:76402. Com muito gosto lerei o livro sobre Sr. José Buchatsky.
    Sempre a vossa disposição aqui na "Terra Santa". Segue o trecho relevante e algo mais.
    Estimadas, saudações da "Terra Santa"!

    "OS PRESTAMISTAS, A PRAÇA* E O FUTEBOL DO RECIFE".
    ---------------------------------------

    Rubem Pincovsky, Recife.
    Disse:

    Li todas as partes (cinco) de sua crônica relativa ao jogo de bicho. Estão boas, muito boas, mesmo! Você trata o assunto com leveza e propriedade, aproveitando bem o tema para fazer considerações sobre a colônia judaica do Recife em uma época já bastante distante. Continue!

    Agrada-me também as "reportagens" ilustradas que envia sobre os mais variados temas.
    A última que recebi foi sobre o zepelim. Um espetáculo.
    Rubem.



    Sluva Waintraub,Salvador- Bahia.

    Paulo

    Que bom que você lembra estas reações dos imigrantes judeus a este fenômeno "Jogo do Bicho".

    Pena que não tenhamos, em Salvador, pessoas que escrevam sobre esta época

    Shalom, Sluva.

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