quinta-feira, 1 de agosto de 2013

DONA SHPRINTZE A VENDEDORA DE MANTEIGA (Parte 2)


Dona Shprintze - Parte 2

                                  Foto Google-Internet


OS PREGÕES QUE ME LEMBRO DO RECIFE "MATUTO"

Paulo Lisker, de Israel

Uma aquarela judaica do Recife
 
Tema: DONA SHPRINTZE, Parte 2 (final)

A manteiga e os outros produtos lácteos fazem parte orgânica da dieta judaica especialmente nas festas de Ano Novo (Rosheshune), Páscoa (Peissach), e Purim (uma espécie de carnaval) e em geral durante o ano todo, pão com manteiga de manhã com café com leite, no lanche da tarde polvilhado com açúcar (dava a impressão de estar comendo uma fatia da melhor torta do mundo) e de noite na ceia, a manteiga sempre estava presente,  sem ela e os derivados lácteos era um verdadeiro desastre na culinária judaica.
Escutava-se em todo canto:
-"Vuz machtmen, vus machtmen, vi ken ich koifn a shachtl piter?Un piter kenen mir nisht machn der naier yur, Rosheshune" (Que se faz que se faz, onde posso comprar uma caixinha de manteiga. Sem manteiga eu não posso receber o ano novo).
Nenhum anti-semita na história impediu que o povo judeu festejasse seus dias sagrados.
A manteiga sim. Vejam que coisa!
Em tempo é bom acrescentar que o tal produto conhecido como "margarina" não existia e quando sim, era comprado nas farmácias (e não em todas) como um produto medicinal recomendado pelos médicos quando exigiam alguma dieta necessária para as judias de peso exagerado e perigos coronários.
Eu mesmo, na minha casa no Recife, nunca vi ou provei esta tal "margarina", e da banha de porco, nem se devia pensar. Ainda mais na casa de judeu. Lógico que a manteiga era o "passa pão" de cada dia.
Só nos anos 50 tive a oportunidade de provar tal produto quando vivia num "kibutz" em Israel que a serviam no refeitório coletivo, não por nenhuma dieta, sim por ser um produto barato e a manteiga era destinada a burguesia da época e nós éramos o proletariado judeu que mudaríamos o mundo, então era suficiente comer a tal "margarina".
Só depois de muitos anos a medicina descobriu que este produto era muito mais nocivo a saúde humana que a clássica manteiga.
Ademais, tem um "fato que ninguém conta".
O motivo é que todos estes produtos derivados do "leite goi" (produzido por não judeus quando viviam no "galuth"-Diáspora), não eram "casher", pois o processamento não estava de acordo como determina as leis da "HALACHÁ" ( A produção deve seguir um determinado procedimento religioso judaico) e que até hoje é válido e seguido ao pé da letra pelos judeus ortodoxos.
Existem divergências entre os diversos ramos do judaísmo no que diz respeito a este especifico item da "cashrut", mas este emaranhado é como dizemos: "São outros quinhentos mil réis" e ficará para outra oportunidade.
Se não me falha a memória, até meados da década dos 40 ainda viviam dois judeus religiosos.
O Senhor Gedalia Rath, avô materno dos Mutchniks, avô de Uziel, Marcos, Sarita e Roberto, nossos amigos da infância. O outro era o Senhor Zissie Girol, ele morava no bairro da Madalena e era o avô materno de Isaac (Gilberto) e Liova (Leon) Krutman, também nossos amigos da infância na escola iídiche e no Colégio Osvaldo Cruz.
Lembro-me muito bem desse "shoichet" o matador de galinhas, o senhor Zissie.
Inúmeras vezes esteve na nossa casa para abater galinhas segundo o "procedimento" (há alachá). Isso se fazia extremamente necessário quando comemorávamos alguma festa religiosa judaica ou num "Bar Mitzva (festa dos 13 anos para garotos), festa de "Tnoim" (noivado) e se não fosse feito assim, muitos judeus ortodoxos, não compareceriam ao evento ou  se limitariam a comer salada e pão centeio (preto), nada de carnes procedentes do abate de matadouro goi.
Era a época que tradição tinha ainda algum valor para uns poucos, pois com o tempo o Recife possibilitou que os judeus se assimilassem aos costumes goi e hoje já são raros os que seguem as tradições dos antepassados.
Restou o costume do "Brit-Milá" (circuncisão) e ser enterrado com seus patrícios judeus (Kvurá), parece que era no cemitério do Barro e hoje no Curado, exclusivamente para o povo judeu.
Nós os meninos dizíamos de alguma maneira zombando:
- Chegou "o mata galinhas", chegou o "mata galinhas", mas ele nem se ofendia e nos olhava com complacência e dizia na saída a meu avô:
-"Di kinder zenen pushete goim vaksn vild vi di goim. Nisht kain respect far eltere lait"(Esta meninada é igual aos natos daqui, crescem como verdadeiros nativos sem nenhum respeito aos idosos e a tradição dos ancestrais).
Meu avô concordava balançando com a cabeça, pagava pelo "trabalho" (o pagamento de maneira alguma era obrigatório era mais um donativo para alguma causa comunitária, para ajudar algo que necessita reparo) e dizia se despedindo:
-"Her Zissie, dus is Brasil, zei vaksn azoi vi der brasilianer goi, gurnisht kemen machn! Zai gezunt her Zissie. Gueit mit shulem"!
(Senhor Zissie, aqui é o Brasil, eles crescem e se comportam como brasileiros natos. Não se pode fazer nada! Vai em paz senhor Zissie e muitos votos de boa saúde).
Estes conhecedores das leis religiosas judaicas executavam a circuncisão e abatiam aves e animais maiores segundo as leis da "halachá" (em iídiche, eles eram "der shoichet e "der moheil"). Assim a colônia judaica tinha a possibilidade de fazer a "milá" (circuncisão) aos 7 dias de todos recém nascidos do sexo masculino.
O abate feito ou super visionado por eles possibilitava ao judeu comer carne cusher (a única permitida pelos ortodoxos da religião judaica).
Senhor Zissie estava destituído de grande parte do nariz, e o orifício nasal estava sempre tapado com uma mexa de algodão.
Dizem que foi um acidente provocado ao abater um bovino e este lhe deu uma chifrada e arrancou parte do nariz. Se é verdade não sei, assim quando era menino me contaram meus pais e eles nem sempre contavam a verdade, pois não ficava bem não ter respostas para as perguntas dos miúdos. Para que são eles pais? Para responder a qualquer pergunta e não importa que seja uma mentirinha.
Interessante que o senhor Zissie ficou lembrado na minha memória, já o outro "shohet- moel" , senhor Gedalia Raat que foi que me fez a circuncisão, quase nada lembro. Quem sabe ficou uma lembrança dolorosa no subconsciente. Quem sabe? Será? Só  perguntando a Freud.
Com os produtos lácteos o problema se mantinha e solução para uma produção cusher (casher), nunca se conseguiu! Leite de Goi (não produzido segundo manda a religião judaica) nunca será permitido usar pelo judeu ortodoxo, pois não é cusher.
Mas a vivacidade deste povo, cheio de Prêmios Nobel (o último foi o de química, neste ano 2011), contornava este fenômeno negativo.
Depois do falecimento destes dois senhores que entendiam das leis religiosas, nada mais era "casher" para os judeus no Recife, pois nada mais era elaborado segundo o "procedimento" das leis religiosas, Há Halachá.
Não ficou herdeiros nesta profissão que era considerada uma "mitzvá (Preceito ou Mandamento).
Assim sendo, quando a necessidade aperta, o povo aprende a se comportar segundo o ditado: "Quem não tem cão caça com gato" (Na realidade o ditado certo é: "Quem não tem cão caça como um gato) e fim do dilema.
Se come de tudo e ninguém diz nem pergunta nada!
Esta inteligente frase: "NÃO DIGA, NÃO PERGUNTE" era o "modus vivendi" desta comunidade que ficou sem as autoridades espirituais.
Comiam de tudo e ninguém piscava, nem diziam e nem perguntavam. Enfim, excelente solução, sem comentários!
Contam que numa noite calorosa de calmaria, destas aconteciam muito no Recife, passou Abrãozinho, um rapazola da comunidade pela Rua da Alegria (nomes bonitos tinham as ruas do Recife, parece que já disse isso alguma vez) e viu através de um postigo aberto o senhor Frumkin, judeu, comendo na ceia do sábado umas fatias de presunto (Shinken).
Assustado com a cena não comum nas casas judaicas, não se conteve, se aproximou do postigo aberto e perguntou quase sussurrando:
-Senhor Frumkin, que aconteceu? Que estás comendo?
Respondeu o senhor Frumkin:
-Peixe, isto é peixe, meu filho!
Retruca meio envergonhado Abrãozinho:
-Senhor Frumkin, isto é porco!!!
 Pego "de supetão com a mão na massa" (surpreendido sem aviso prévio, na língua do povo) e aborrecido com essa gente que mete o "focinho" (cara, quando se tratar de animal), nas coisas dos outros, responde o senhor Frumkin, aborrecido:
Rapaz, eu te perguntei o nome desse peixe? Isto é peixe e não me interessa o nome dele. Anda, vai e deixa de encher o saco! (deixa de molestar no linguajar da rua.
A dieta do Recife judaico naquela época era regida pela filosofia: "NÃO DIGA, NÃO PERGUNTE", mas sempre apareciam estes "fuinhas" pra botar "peninhas" em tudo. Oh gente chata!
Contudo isso a vida corria as mil maravilhas na cidade Mauricea do Capibaribe!
Dizia meu amigo goi, Argemiro, sem maldade nenhuma:
-Vocês judeus, vivem entre judeus e são enterrados entre judeus,nem a morte vos separa, coisa muito estranha para um mortal qualquer entender!
Agora voltando a Dona Shprintze, o tema desta crônica.
Dona Shprintze tinha também o seu pregão e no Recife caloroso de postigos escancarados (abertos) dos casarões antigos, ela anunciava:
"PITER, PITER MIT ZALTZ UND NISHT GUEZALTZN. GANTZ REIN, SHEIN, HÁ GUESHMAK, GURNISHT GUELT, KIMT SHOIN ICH HOB NISHT KAIN TSAIT, ICH HOB IN SHTIB KINDER TZU GUIBN ESSN. SHOIN, SHOIN SHABES…. PITER, PITER, IZ SHOIN DU PITER, REIN UND GUESHMAK. NISHTÚ KAIN MILHUME"
Do iídiche: "Manteiga, com e sem sal, clara, fresca e gostosa e bem baratinha. Venham rápido, pois estou "avexada" (com pressa em nordestino). Tenho meus filhos em casa pra dar de comer. Já, já entra o sábado. Manteiga, manteiga chegou agorinha a manteiga gostosa e cheirosa, a guerra, até de medo fugiu".
Sabíamos que estávamos sendo "tapeados" (enganados em nordestino), com o preço que pagávamos pela caixinha de manteiga, às vezes até comprávamos duas ou três com o medo doentio caso ela viesse faltar e só o diabo poderia nos dizer se é um sinal de tempos ruins que vem por aí.
Melhor ter de reserva, como diz o refrão popular: "Melhor prevenir do que remediar", os judeus sempre se conduziram desse jeito.
Coisa parecida como conta a Bíblia quando José interpretava o sonho do Faraó no Egito.
Sonhou que apareciam "7 vacas gordas e depois 7 vacas magras".
José interpretou o significado do sonho (ou pesadelo) desta forma: Depois de 7 anos de fartura (7 vacas gordas) viriam anos de secas (7 vacas magras) e grandes dificuldades para toda a população.
Ele aconselhou ao Faraó, armazenar na época de fartura para usar nos anos de carência e assim atravessar o período difícil de uma maneira mais amena e segura. Por incrível que pareça, resultou certo!
Quando algo falta no mercado sabemos que o preço vai às nuvens, assim funciona a economia de mercado livre e de dona Shprintze.
Ninguém discutia o preço da caixinha de manteiga, pagavam o exigido e ficavam com a consciência tranquila e o espírito descansado era uma maneira de ajudar a uma viúva que criava 3 filhos sozinha.
Naquele tempo não havia as "bolsas" governamentais para ajudar aos necessitados como hoje, então pagar o que ela ditava era um tipo de filantropia!
Muitos anos depois a colônia judaica ficou ciente de mais e mais casos parecidos. Estes casos se acentuaram depois da segunda guerra mundial.
Chegaram imigrantes sem posses, destituídos de tudo, necessitavam urgentemente de ajuda
As ONG's judaicas redobraram os esforços para ajudar aos mais necessitados, entre elas estavam como sempre, o Relief, Wizo, Pioneiras, Kempner. Creditem se quiser cada uma dessas organizações tinha sua tendência política, de direita ou de esquerda, sionistas e anti sionistas, mas nesse momento em que a ajuda se fazia extremamente necessária as cores e as tendências desapareciam.
Naquele tempo "que se amarrava cachorro com linguiça" a colônia israelita do Recife tinha vergonha de confessar que alguns de suas famílias eram extremamente pobres.
Era um mínimo que podiam fazer para manter estes necessitados com "a cabeça fora da água" e conviver na comunidade judaica do Recife de uma maneira mais ou menos decente e humana.
Assim foi minha gente o cotidiano da colônia israelita durante a primeira metade do século XX.

P.S. Perguntariam vocês, por que o governo estadual ou a prefeitura do Recife nunca deram ajuda nenhuma a essa gente necessitada, verdade?
Perguntam sério?
Eu só poderia rir um bocado (gargalhar, no bom português).

Postado neste blog em: 07/10/2011 e
atualizado em 20/6/2013
(Todos os direitos autorais reservados)

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