quarta-feira, 31 de julho de 2013

O "CHINA" DA LAVANDERIA





O "CHINA" DA LAVANDERIA

Paulo Lisker, de Israel

Na Praça Maciel Pinheiro todos conheciam o senhor Joseph, o meu avô, alvo, alto, cabelos brancos bem penteados, andava sempre engravatado com gravata "borboleta" e vestia o seu terno de brim de linho, super branco e engomado como se tivesse sido "passado no ferro" do "china", por nós conhecido como seu Júlio.
O nome original dele na China, era  Chu Li Óh, (parecido com Júlio), assim era mais fácil para o uso das lavadeiras matutas que vinham dos bairros pobres, Beberibe, Afogados, Sucupira e outros ainda mais afastados e que "ganhavam a vida" lavando roupa de ricos na lavanderia de seu Júlio, na Rua Gervásio Pires.
A "Lavanderia Chineza" (assim estava escrito na placa já surrada pelo tempo) ficava bem defronte da minha casa.
Meu avô era um bom cliente dela, pois andava nos arrabaldes do Recife, vendendo a prestação, nos dias de maior calor, sempre com seu terno de brim de linho branco, impecável, que necessitava sempre da lavanderia depois desta faina.
Quando menino, ia buscar o terno branco do meu avô, bem passado, cheirando a limpo e pendurado num cabide de arame. (quem sabe invenção chinesa).
Foi assim que travei conhecimento com o china Júlio e as suas lavadeiras da "LAVANDERIA CHINEZA".
Eu sempre perguntava a ele: 
-Seu Júlio, chegou carta com selos da China? Ele balançava com a cabeça afirmativamente, deixava o que estava fazendo ia numa gaveta emperrada dum comodo e trazia um ou dois envelopes das cartas que chegaram durante os dois últimos meses. Com cuidado rasgava os selos do envelope e me dava dizendo: 
-Vê qui bunitu menin os selos da minha terra, cuida quando discular pla num inutilizar!
- Isto não é da China seu Julio, cadê a foice e o martelo? E Lenin?
-Menin, isso é de Formosa, adonde mia familia fugiu prá lá e la non tem cumunitas, este aí é Xang Kay Chek, num qué num leva, dou prá Jaiminho, ele já, já vem bucá un telnu do seu Moisés. Enton quer ou no quer?
- Quero, quero seu Julio, muito brigado. Ta bom, quando chegar da China mesmo, guarda pra mim, tá?

Eu gostava de ver o "china" espirrando água da boca para umedecer a roupa na hora de passar o ferro a carvão.
Para esquentá-lo mais, abanava com um abanador de palha de bananeira, ai quantas chispas voavam pelo ar. Bonito danado!  

Já viu chinês gordo? Aonde?
Pois acredite se quiser, este "china" era bem gorducho!
"China brasiliense", isto já era resultado da assimilação aos costumes locais, a saber:
Primeiro: Vivia amigado com uma jovem mulata viúva sem filhos, de Beberibe,

Segundo: A comida brasileira que sempre alguma lavadeira no trabalho, preparava para o almoço do patrão.
Colocava no quintal o feijão mulatinho num caldeirão de barro no fogo de lenha e carvão. Seguia a carne de charque, o toicinho os condimentos crioulos e sem nunca esquecer a pimenta malagueta que picava tanto na entrada como na saída.
De vez em quando davam uma mexidinha e colocavam o maxixe, o quiabo, e no fim o jerimum que é mais mole no cozinhar.
Ao meio dia a "gororoba" estava pronta e com um cheiro que toda Gervásio Pires aspirava com gosto.
Sentado num tamborete comia com as mãos num prato fundo que já viu dias melhores, fazia pirão de farinha de mandioca com o caldo do feijão e de vez em quando dava um estalado com a  língua, sinal que encontrou um naco de carne ou toucinho e que estava saboreando e gostando demais.
Neste tempo sabiam todos que o "china" está almoçando, e não era hora de levar roupa suja ou ir buscar roupa lavada pronta, nem para casamento ou missa do sétimo dia!

Terceiro: Logo se acostumou a descansar e se balançar na rede com sua viúva, beber água de quartinha, comer feijão preto todo santo dia, e não terminava sua refeição sem uma fatia de goiabada Peixe (daquelas de lata redonda de Pesqueira) com uma fatia de queijo do Sertão de sobremesa. Comendo desse jeito, poderia não ser gorducho e pançudo?
Às vezes ele tomava uma "bicada de Pitú", mas era raro, só quando chovia muito. O sol não saía, e fazia um pouco de frio.
O "china" gorducho praguejava em português e também em mandarim.
Nesses dias de chuva, iria atrasar a entrega das roupas, por não estar seca e seu Júlio não gostava de atraso, nem quando foi súdito de Chang Kai Chek, na longínqua Formosa.

Quarto: Andava descalço no trabalho. Na rua de tamanco e quando ia tratar de sua naturalização, o seu calçado oficial era as sandálias com o solado de pneus usados.

Quinto: Sempre sorridente este "china", prestativo e principalmente barateiro, a metade dos preços das lavanderias dos italianos!
Na lavanderia "CHINEZA", mesmo que toda "operação", lavagem com sabão de coco, branqueadas com "Anil", batidas à pau antes de espremer,  tudo isto era feito manualmente pelas lavadeiras matutas e ele só engomava passando o ferro Guza à carvão. As roupas resultavam ultra-limpas, com um lustro ímpar e um cheirinho que não tem outro igual.

Sexto: Ademais o homem era mesmo generoso e depois de seis meses distribuía toda roupa que não era reclamada. Esvaziava a sala na qual se empilhava toda esta roupa durante meses e ninguém vinha recolher.
Ele dizia na sua maneira de falar o português, sempre com um sorriso de chinês na cara:
-"Ruopa no pude ficou sin donho, si rico no quere buscar, nois dá  prôs pobri".
Pobres ou não pobres, eu mesmo vi também judeus, não tão pobres, na fila para medir algo do seu tamanho e não se envergonhavam disto. Parece que no tempo do "Recife Matuto", não era vergonha, ser pobre!

Este "china" era mesmo um personagem inesquecível na Rua Gervásio Pires.
Então estava assimilado brasiliense, ou não?
Claro que sim!

Vocês precisavam o ver esculhambando com as lavanderias modernas. Não muito distante, na Rua da Conceição, quase vizinha ao Leilão Maia, estava a Lavanderia PAPALEO, (os donos e a tecnologia italiana). Esta já tinha até lavagem à seco, caixa registradora e luz florescente no estabelecimento.
Seu Júlio, sempre sorridente de bochechas rosadas dizia:
-"Itaiano é bom pa macalonada, no é pa lavá rôpa".
Cheira o loupa de lavar seco dele, tem cheilo di quelozene!
 Vai pra festa chelando a candeeio, o diabu fuge, inda mais a mulhé, no é mismo?
Eta, "china" pai d'égua.
Todos os direitos autorais, reservados.
Cuidem com os créditos.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

CINEMA POLYTEAMA DA MINHA INFANCIA NO RECIFE


Tempo Politeama


LEMBRANÇAS DO RECIFE MATUTO (ANOS 40 DO SECULO XX) 

TEMPO POLITEAMA - (Parte 1)

Paulo Lisker, de Israel

Quando o Recife era o Recife da minha infância, o Cine Politeama (ou Polytheama) era muita coisa importante para nós.
-Primeiro: Era um cinema popular, o custo do ingresso era barato, um Cruzado* para meio, destinado a crianças e estudantes e para adultos, mil réis, uma entrada inteira.
-Segundo: Era a alegria dos pixotes que alcançavam à idade de ir sozinho a primeira sessão, que começava impreterivelmente às 18h. 00m e terminava às 19h. 30m, para dar tempo de arrumar o salão para a segunda sessão às 20h. para um publico bem maior.
-Terceiro: Era o "educador" na mão de nossas mães quando queriam nos castigar por mau comportamento, usarmos palavrões ou quando recebíamos notas baixas na escola.
Nestes casos era usado o pior dos castigos para um menino na época em que o cinema e seus seriados "machistas" eram a única diversão existente, logo depois que abandonamos a "A bola de gude" e saltar "Academia" na calçada e outras brincadeiras tolas em conjunto com as meninas, nossas conhecidas das famílias judaicas no nosso bairro.
Esse castigo era proibir de ir ver o seriado das quintas feiras no Politeama e ficar em casa a espera do encontro com os amiguinhos no final de semana para escutar como se salvou Tarzan ou o Zorro ou se Flash Gordon conseguiu pousar em Marte para guerrear contra os marcianos que queriam invadir o nosso planeta.
Aí que tempo, acreditávamos que tudo era possível mesmo antes que qualquer ser humano tivesse pisado na lua, Flash Gordon sim lá chegaria sim senhor, não bote nem "peninha" (duvida em nordestino), ta ouvindo seu besta.
Para resumir minha gente, o Politeama podia ser mal conservado, sujo, usavam para ele nomes pejorativos ("Poleiro", "Polipulga", "Pulgueiro", "Bancada de maloqueiro") e daí pra pior.
Porém era o centro das nossas atenções "culturais".
Assim também foi o famoso Gibi, no tempo que aprendemos a ler o "bê a bá".
Frequentar aquele recinto primitivo em comparação a outros cinemas da cidade onde nos identificávamos com os heróis da nossa juventude ("Bukijones", "Tom Mix", "Zorro", "Flash", o "Sombra" "Arsen Lupen" e a Agulha Oca", e não importa que tudo fosse uma grande mentira, ninguém no mundo viveu assim, nem se vestiu assim, nem deu tanto tiro assim ou foi à lua matar o "Dragão que cospe fogo" montado num foguete do ar de São João.
Quem sabe, assim só o famoso "Lampião", mas sobre este herói com sua Maria Bonita (cangaceiros) ninguém fez cinema. Uma pena.
Quando estávamos livres de castigos era uma alegria encontrar os amigos no portão de ferro do cinema, comprar no lado esquerdo do prédio, para aqueles que vinham do lado do Pátio da Santa Cruz, milho assado na grelha (não pipoca, milho mesmo, milho verde assado) no tabuleiro de dona Celina ou do seu Estácio que a substituía nos dias de ventania e muita chuva.
Infelizmente não tenho o suficiente dom e não posso descrever o cheirinho gostoso do milho verde trazido da rocinha deles em Água Fria, todo assadinho de "cabo a rabo" e salpicado com sal bem moído. Aí que bom danado, mesmo que os beiços ficassem ardendo um bocado de tempo, valia a pena o sofrer.
-Quarto: Era o cine Politeama também um premio pela nossa boa atuação na escola, boa educação com as visitas em casa, ajuda nas compras na venda do senhor Lopes, e ciscar o quintal das folhas secas caídas no chão com a mudança do clima ou estação. O premio era quase sempre um "patacão" (um cruzado) o custo de meio ingresso de entrada neste cinema saudoso.
Agora livre de compromissos nos danávamos pelas ruas circunvizinhas até chegar ao Cine Politeama.
Comprávamos o bilhete na janelinha junto ao portão pintado de encarnado (vermelho em nordestino), onde quase sempre estava sentado o senhor Bonifácio que contava a todos que estavam dispostos a escutar as suas estórias cheias de heroísmo, que no passado foi sargento na guerra do Paraguai e tinha uma perna de pau (naquele tempo era assim).
Com os bilhetes na mão íamos entregá-los ao senhor Tiburcio ("o manda chuvas" do cinema que comandava quem entrava "por direito" ou era "barrado" por ser de "menor idade" ou outros motivos), ele rasgava o bilhete e nos devolvia o "canhoto" como comprovante legal de entrada.
Caso o "lanterninha" (já me esqueci o nome do velhinho) perguntasse algo, tínhamos como provar a nossa presença legal e que não saltamos o muro como faziam alguns moleques da rua e do pátio da Santa Cruz.
Pra quem já esqueceu o Cine Politeama foi fundado no ano de 1911 ou 1916 (historiadores discordam) ** e estava localizado na esquina das Ruas Barão de São Borja e José de Alencar, no meio de um bairro cheio de casas de família com uma porção de meninos, adolescentes e adultos (muitas deles eram judeus imigrantes da Europa), a população judaica e o cinema se estabeleceram nos mesmos anos no Bairro da Boa Vista.
Desta população, possivelmente emanariam os espectadores das "fitas" (filmes em nordestino), fosse à qualidade que fosse e ninguém reclamava, pois este cinema estava bem perto das moradias e quem quisesse iria vestido como bem entendesse, até de chinelos ou tamancos, isso já era uma grande vantagem em relação a outras "casas de projeção" que estavam bem mais distantes e às vezes barravam a mocidade por estar mal vestido ou ser anarquista conhecido, já viu né.
Arretados (aborrecidos em nordestino), ficava o publico quando ocorria um "apagão" (comum no Recife) ou um curto circuito no próprio prédio do cinema, que como já foi dito, estava muito mal cuidado ou acontecia que se rasgava a fita, então acendiam a luz para dar tempo ao senhor Firmino (o passador das fitas e autoridade máxima junto a maquina de projeção), colar as duas partes com acetona.
Era o momento que os vendedores com seus tabuleiros de balas, rapaduras, amendoim ou castanhas de caju, chicletes ou guaraná Fratteli Vitta entrassem quase correndo para atender o pessoal que queria comprar algo do tabuleiro dessa gente e sempre tinham fregueses para tal.
Tudo arrumado, a escuridão tornava a reinar no recinto da projeção.
Voltávamos a ouvir o tique taque e os cliques do filme de celulóide correndo entre as engrenagens e roldanas da maquina de fabricação alemã e que produzia a luz para projetar o filme a distancia por intermédio de carvões incandescentes.
Agora no escuro quase total, não tanto, pois os pirilampos no ar e algumas lâmpadas nos postes elétricos das ruas perto do prédio, ainda permitiam ver aqui e ali alguma silhueta das pessoas sentadas em volta de nós.
Era a hora das empregadas e seus namorados aproveitarem o ambiente criado para se beijar e "garanhar" (termo usado para caricias e algo mais e se você não sabe é porque nunca foi garoto no tempo do Politeama).
Sempre era a empregada quem pagava a entrada dela e do seu "maloqueiro" (vagabundo em linguagem da terra), pois este nunca tinha um tostão furado no bolso, mas desta simbiose os dois saiam lucrando. Tudo bem.
Quando começava o filme mesmo (depois do seriado), muitos meninos iam embora. Não tínhamos muito interesse em filme que não fosse de guerra ou espionagem. Coisa de romance era para as garotas e empregadas.
Aqueles que voltavam para casa, no caminho tomavam no Largo da Santa Cruz no "Bar do Olavo" um caldo de cana com gelo com um pão doce, noitada mais que completa. Caminhavam e peidavam à vontade no caminho, isso era um resultado natural da reação da sacarose do caldo de cana e o trigo branco do pão doce, dois elementos de primeira para fermentar e produzir gases (peidos) e quando passavam rente aos postigos abertos das casas de família, só se ouvia as senhoras murmurando: Virgem Maria , mais o que é isso, o São João ainda está tão longe e já tem gente soltando "peidos de véia" (um tipo de fogos juninos). Credo Cristo! E este ano estão tão fedorentos, vixe.
As películas eram românticas e do "tempo da onça" (produzidas há muitos anos passados) e muito remendado, às vezes faltando pedaços de cenas inteiras.
Mas mesmo o que restava ainda era bom para as meninas e garotas que choravam por qualquer coisa que se passava na tela do cinema.
Os meninos e garotos que ficavam, não era pelo filme, que em geral não os interessava e sim pelas "coisas" que faziam as empregadas que em casa não tinham coragem em faze-lo. Quantas "punhetas" elas bateram na meninada que tiveram paciência de ver parte do filme chato (enfadonho em nordestino), foram elas quem botaram os meninos no "mau caminho".
Coitados, tinham aqueles ainda tão jovens que ainda estavam "secos" não espirravam gala (esperma), mas gostavam, pois no dia seguinte saiam correndo para contar o acontecido aos amiguinhos.
Uns perguntavam aos de mais idade se disso poderiam pegar uma gonorréia (o passaporte para ser macho).
Quando uma vez perguntei a um deles se ele tinha alguma preferência das dezenas de empregadas que frequentavam o Politeama, a resposta foi espetacular para um menino de "menor idade": No escuro, todas as negas são tudo igual. Sei lá! É gostoso demais, só espero que não vá contar a mamãe, vige!
Ai Politeama tu fostes também a nossa introdução a "educação sexual" que nossos pais nunca souberam nos ministrar.
*Cruzado= Quatrocentos réis.

Fim da primeira parte e assim como nos seriados das quinta feira que dizia: "CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA".
O mesmo com esta croniqueta infantiloide, se Deus me permitir mais uma semana com sanidade física e mental rebuscarei no meu cerebelo mais passagens da minha infância e o Politeama.
O desenho do cinema, segundo as lembranças do autor,
Todos os direitos autorais reservados.


Tempo Politeama (Parte 2)



LEMBRANÇAS DO RECIFE MATUTO
(ANOS 40 DO SECULO XX)

 TEMPO POLITEAMA (Segunda parte)
Tema: "Barulho do aguaceiro e das mangas no teto de zinco"
01-03-2013
       
Paulo Lisker, Israel.


O cinema Polyteama era um tema central na nossa vida infantil.
Sempre a meninada tinha algo pra contar sobre os heróis da tela ou da realidade deste cinema.
Os "heróis da tela", dependendo da época eram temporários de acordo com o seriado.
Podia ser Tom Mix e seu cavalo branco (acho de era Silver), O Zorro, Flax Gordon, Bug Jones, e muitos outros que eram projetados uma vez por semana e durante dezenas destas, pois atraiam o publico mirim, em geral de meninos.
Não sei se havia naquele tempo qualquer outra atividade social que reunisse tanta meninada como nestes encontros no Politeama nos dias do seriado. Era "pêia", uma festa danada!
As meninas preferiam as fitas (filmes) de Shirley Temple ou de Walt Disney, assim como, Branca de neve, Chapeuzinho Vermelho e comedias, "O Gordo e o Magro" e até "Carlitos" (Charles Chaplin), esse negocio de índios ou de estar dando tiros, não era para elas.
Já os "heróis da realidade" (em carne e osso) eram os "furadores" que conseguiam por mil e umas "manobras", entrar sem comprar o ingresso de entrada.
Era no "empurra-empurra", na hora de muita gente pressionando para entregar os bilhetes da família ao senhor Tibúrcio, o "gerente" e o único "pica ingressos", na porta de entrada do salão de projeção.
Tinha horas que havia um publico enorme, aí aproveitavam os "furadores" esse bafafá para entrar sem pagar. Mesmo que senhor Tibúrcio os visse, não sairia correndo atrás deles.
Outra maneira ainda mais audaciosa era colocando uns caixotes vazios de cerveja encostados ao muro e galgar com facilidade para o lado de dentro do cinema. Apesar do muro ser bastante alto, pelo menos para um pixote que via tudo em relação ao seu tamanho.
Um sistema mais elegante era entrar durante o fim da tarde quando só as faxineiras faziam à limpeza e logo se metiam no grande pátio que circundava o salão em forma de galpão (com colunas e aberto dos lados), ficar inocentemente brincando de "se esconder" e ao se aproximar à hora da chegada da equipe da bilheteria e o maquinista, então como gatos trepavam nas frondosas mangueiras (pés de manga) e lá se escondiam até que escurecia um pouco. Quando começava o Jornal Nacional, desciam e logo se enfronhavam numa das fileiras de cadeiras no salão.
Diga-se de passagem, que estas cadeiras eram incomodas pra chuchu, feitas de madeira, que rangiam ou de velhas ou carpintaria de aprendiz ou as duas coisas juntas.
De vez em quando passava "o lanterninha" acendia a sua "pilha" (lanterna) em direção dos meninos que estavam fazendo zoada (barulho), batendo com o assento de madeira no encosto da cadeira e quando muitos moleques agiam desses jeito ao mesmo tempo, faziam um barulho infernal .
Eu francamente não tenho idéia se este senhor (o lanterninha) pegou algum moleque (menino anarquista), que entrou de alguma maneira ilegal no cinema, fazendo bagunça (desordem) ou dando "cascudos" e "lixas" (batendo na cabeça da vitima) naqueles que estavam sentados na fila mais adiante.
Esse ritual era quase um costume que a meninada trazia da rua para o cinema.
O lanterninha com sua pilha de baterias, sim acompanhava casais idosos e alumiava o caminho até as cadeiras que preferiam sentar para assistir o filme. Não havia cadeiras numeradas e se haviam era só para "inglês ver" (para constar).
O cinema tinha uma forma toda especial era um galpão com teto de zinco, aberto nos flancos, de ventiladores nem se fala, a ventilação era o vento natural, quando soprava, colunas que apoiavam o teto, "plantadas" no meio do salão.
Coitado daquele que sentava numa cadeira onde havia uma dessas colunas na sua frente.
Lembro-me que tinha um toca disco que já sabíamos de cor as músicas, pois tocava as mesmas todo santo dia no intervalo de uma sessão para outra. Um dispositivo que diminuía a intensidade das luzes do salão, lentamente até apagar de todo, este apetrecho não era especial no Polyteama, existiam em outros cinemas também, no Cine Parque, por exemplo, na Rua do Hospício.
Quando caia um aguaceiro, o barulho dos pingos no teto de zinco era infernal, não se ouvia nada, o filme parecia ser mudo. Mesmo para dizer algo ao colega do seu lado era preciso gritar e logo o lanterninha aparecia com sua pilha enfocando o lugar que fazia zoada (barulho) e perguntava:
 -Tem alguém que quer ir para casa nesta chuva? Tão fazendo anarquia é? Logo boto pra fora, querem ver?
Na realidade, nunca o vi mandar ninguém pra fora do cinema, "boa praça" este velhinho, gostava de dar "travos" (carão) naqueles que não se comportavam num lugar publico, segundo o seu entender.
As duas ou três enormes mangueiras (pés de manga), quando carregavam de frutas maduras, uma produção de centenas de quilos, começava a despencar dos galhos, parte delas caia no teto de zinco e fazia tanto barulho como quando caia o aguaceiro. Um inferno de zoada, depois da queda no teto inclinado de zinco, as mangas rolavam pra baixo até cair no pátio, aí o pessoal gritava: "Caiu manga bosta", e todo mundo ria.
Três lindas Palmeiras Real enfeitavam o pátio em volta do salão galpão do cinema.
Que idade tinham estas arvores não sei dizer, porém eram muito velhas.
O pátio estava cheio de plantas rasteiras e de meia altura que serviam de esconderijo para os "penetras" (aqueles que saltaram o muro ou entraram com as faxineiras).
Um belo dia apareceu lá em casa como era o seu costume de há tempos, o meu amigo Jaime Zimilis, companheiro de escola e traquinagem. Conta-me ele, que viu num cartaz na parede do cinema Polyteama e que anunciava um filme de Tarzan na próxima semana, porém proibido até 14 anos.
Ai que vexame, ele queria muito ver o filme, mas receava ser barrado na entrada pelo senhor Tibúrcio o "gerente pica bilhetes" por ser menor de idade, e isto era muito fácil, pois o conhecia ainda desde menino.
Pergunta-me se eu tenho alguma idéia de como entrar sem causar problemas na entrada, na frente do povo todo.
E falando como para si mesmo e pouco esperançoso, me diz:
-Sabes o que é ser barrado na entrada, que vergonha nem imaginas.
Pensei, diz ele, em pedir ajuda a Chico "lourinho" que morava na esquina do Giriquiti e que às vezes jogava bola conosco na nossa rua. Ele nunca pagou ingresso para ver filme nenhum no Polyteama, quem sabe ele poderá ajudar-me a entrar pulando o muro como ele e os irmãos fazem toda semana e ninguém os pegou com a "mão na moita"(vistos por alguém, dentro ou fora do cinema).
Que achas? Será que teremos chance? Que diz tu?
Matutei um pouco e respondi:
-Eu não me arrisco a pular o muro, confesso que tenho medo, ainda mais que colocaram cacos de vidro de garrafas em cima do muro e é preciso muita habilidade para não se ferir nesta "missão perigosa", só era o que me faltava chegar em casa sangrando e me levarem para o Pronto Socorro e lá ser costurado com dezena de pontos, ta doido? Que Tarzan vá para a puta que o pariu, nessa não me aventuro, queres ir, vai tu e depois me conta o porquê deste filme estar proibido até 14 anosJane vai desfilar nuinha com os elefantes ou o que? Vai e depois me conta!
Jaiminho foi pra casa e só faltava chorar por não ter encontrado suporte do seu amigo para tal aventura.
Uns dois ou três dias não nos falamos, até que dona Inês, sua mãe, curiosa com falta de encontros entre nós, perguntou a minha mãe se "um gato preto" (ha shvartze katze, em iídiche), algo de ruim se passou entre os meninos. Logo ela que era muito supersticiosa e lembrando "gato preto", não era preciso muito mais para ele ficar alvoroçada.
Minha mãe não sabia de nada, me chamou para averiguar o que se passou, pois dona Inês estava preocupada com estas "relações tensas".
- Brigaram de novo por causa do time de botão?Foi?Pergunta ela.
Expliquei que estava tudo normal, só que não concordei com um plano meio doido de Jaiminho e possivelmente ele se ofendeu. Aí terminou a coisa e nossas mães ficaram descansadas.
Depois soube que Jaiminho foi falar com "lourinho" e este no principio se negou a ajudar nesta missão perigosa, alegando que isso não é coisa pra judeus, vocês são um bando de "molengas" (medrosos, na língua da rua), porém no "final dos trocados" (final da conversa), concordou mediante de um pequeno pagamento que era mais caro que duas entradas inteiras. Isto esfriou o animo de Jaimezinho e o fez pensar noutro caminho, ou seja, tentar entrar noutro cinema de algum arrabalde quando o filme chegar por lá e ninguém na porta de entrada o conhece.
Molenga, molenga, mais sabido que nem só judeu é.
Quem não quer ver o filme de Tarzan? Ainda mais com gente nua, indígenas dançando sem roupa em volta de um caldeirão cozinhando um missionário branco, a imaginação voava a todo vapor, comecei também a matutar como entrar sem que ninguém desse fé que ainda não completei nem 13 anos,
Fui falar com meu pai que conhecia o pessoal do Cine Royal na Rua Nova, quem sabe eles teriam uma solução viável. Talvez o porteiro do Royal dissesse uma "palavrinha" ao senhor Tibúrcio do Polyteama para que faça "vista grossa" quando aparecer lá com meu pai para entregar os bilhetes de entrada.   
O seu conhecimento com os empregados do cine Royal na Rua Nova era pelas inúmeras vezes que frequentou este cinema depois que voltava do trabalho de prestação nos subúrbios
Ao descer do bonde, antes de voltar para casa, entrava no cinema, tomava assento, assim descansava os pés e não importava qual fita estivessem passando naquele dia.
Dizia ele que um dia chegou a dialogar com o Sr. Joaquim Matos, o dono do cinema sobre uma possível sociedade.
Meu pai tinha um sonho e sempre falava nisso, queria ser sócio de um cinema e deixar de ser prestamista, mas este dialogo não resultou em nada, pois esta sociedade exigia uma inversão em dinheiro muito alta.
Os empregados os viam de vez em quando nos encontros casuais entre Sr. Joaquim e meu pai, sempre se cumprimentavam como velhos conhecidos por isso pensavam que o tal senhor (meu pai) era quase dono do cinema e o tratavam de acordo.
O fato do filme de Tarzan, Jane e Boy, andando nus entre os "antropófagos africanos" também nus da cintura pra cima, despertava a curiosidade de qualquer um. Quem não ficaria?
Depois de velho fiquei sabendo que filme nenhum desta serie foi filmado na África, será?
Tudo truques cinematográficos de Holiwood e animais de circo. Imagina Boy sentado numa enorme folha de "Victória Regia" no meio de dezenas de crocodilos famintos, vixe!
Tudo camuflagem de papelão, que mãe de um garoto permitiria que seu filho se arriscasse a fazer uma cena como essa na realidade. Tudo ilusão e nós acreditávamos cegamente que era uma estória de verdade.
Porém, também tomado pela curiosidade despertada pela puberdade das primeiras "espinhas" na cara, tomei coragem e fui falar com meu pai para que ele me desse uma idéia que fazer para entrar neste filme.
Ele em lugar de me por no lugar merecido de um menino que ainda nem fez "Bar Mtzva" (treze anos, idade em que os judeus comemoram a maior idade dos jovens deste povo), ele escutou toda estória e disse vamos ver o que fazer para convencer o Senhor Tibúrcio de não te "barrar" na entrada.
Eu fiquei tão satisfeito com a resposta que até esqueci do encontro marcado com os amigos na "Rifa de fogos" de São João, que em geral o vizinho Sampaio, Goi (não judeu), colocava na parede de sua casa durante as festas de São João e São Pedro.
Tinha de tudo, "peido de veia", "traco de massa", "cascatinha" até "foguetes do ar", vê lá, tudo pólvora.
Era o tempo que o Recife todo se enchia destas "Rifas", para a venda de fogos de artifício e cada uma delas com uma vela acesa dentro de uma lamparina de papel colorido pendurada na frente da caixa desses fogos. Imaginem o perigo de uma explosão e incêndio que isto poderia causar, mas quem pensava nisso.
As festas de São João e São Pedro eram mesmo para "botar pra quebrar", soltar "peidos de veia", jogar os "tracos de massa" quando as garotas passavam na calçada, e lá pras 22 horas, "mandávamos brasa" era à hora de soltar os foguetes do ar e fazer rodar as cascatinhas. Eita alegria "filha duma peste", pena que era só uma vez no ano.
Até o Polyteama ficava para outra semana, não tem nada não!
-Até aqui a segunda parte da croniqueta "TEMPO POLYTEAMA E NOSSA INFANCIA".
A continuação, se Deus quiser na próxima semana.
P.S. Segundo documentos do passado o nome do cinema era POLYTHEAMA, perdoem por usar Politeama ou Polyteama. Espero ser perdoado.
Todos os direitos registrados.
Cuidem com os créditos.
25-02-2013
Israel.

Tempo Polyteama (Parte 3)

Entra ou é barrado



LEMBRANÇAS DO RECIFE MATUTO
(ANOS 40 DO SECULO XX)

TEMPO POLYTHEAMA (terceira parte)
Tema: "Entra ou é barrado"
03-03-2013
       
Paulo Lisker,
de Israel.

Chegou à semana da projeção do tal filme de Tarzan, proibido para menores de 14 anos. Dizem que nos primeiros dias o publico do bairro acudiu em cheio e todos falavam sobre a proibição.
Uns diziam que não havia nada demais para proibir os meninos de ver o filme e umas cenas de "nudismo nas selvas africanas". Como queriam que a meninada tomasse conhecimento da nudez humana? Na zona do Pina? Lá seria mais decente? No cinema e nos filmes de Tarzan, seria o melhor e mais educativo que qualquer outro lugar.
Já os moralistas, e havia muitos deles no Recife, achavam à decisão da censura do Juizado, mais que justa.
Para eles, todo e qualquer nudismo ou pouca roupa mesmo na tela do cinema era pura safadeza, sem-vergonhice que deveria ser poupada dos menores de idade. Tudo no seu devido tempo, diziam.
A discórdia entre estes e estes se fazia ouvir tanto dentro como do lado de fora do cinema.
Numa terça feira meu pai me chamou de manhã antes de sair para o trabalho e me disse:
-Paulo, hoje eu volto mais cedo. Vamos aproveitar e iremos ver o tal filme de Tarzan no Polytheama. Sem que tua mãe veja e tome conhecimento, retira a tua roupa da naftalina, aquela que foi preparada para teu Bar Mitzva, pendura no arame no quintal para tirar o cheiro, pega uma gravata de teu avô, te veste como adulto (como gente e não como moleque), sapato engraxado, esquece das alpargatas (sandália), estás ouvindo? Vamos ao cinema como se nada tivesse acontecido.
Assim foi, quando ele voltou do trabalho eu estava prontinho, a empregada que passou a ferro a camisa branca de tricoline, caprichou e no fim da obra de arte disse: - Tu estás feito um noivo antes de ir casar na igreja.
Para encurtar a estória, chegamos ao cinema havia se formado uma fila enorme, da bilheteria até o Pátio da Santa Cruz. Em iídiche é costume dizer: "Comprida como a diáspora*" (Lang vi der Guless).
Meu pai disse: - As condições estão a nosso favor, tanta gente assim, muito dinheiro rolando, quem vai ter tempo para te barrar na entrada.
Eu nervoso, suava nas palmas das mãos e impaciente, a fila não caminhava, parecia que todos queriam um monte de ingressos e pagavam com notas de cem mil réis e o troco feito manualmente naquele tempo exigia ficar plantado um tempão na bilheteria e ainda tinham aqueles que tiravam uma conversinha com o senhor Bonifácio, o eterno bilheteiro que nunca errava no troco, então pra que contar? Isso só faz levar mais tempo.
Começou a chuviscar. Puta merda, logo agora.
Bom que meu pai era daqueles que dizia que "um homem prevenido vale por dois" e levou um guarda chuva do "porta chapéu" que estava no corredor na entrada do nosso casarão, encostado a verga que levava a "Mezuza", apetrecho abençoado ( assim crêem os judeus, ainda de tempos remotos), que ao sair ou entrar em casa tocávamos com dois dedos e os trazíamos até aos lábios como se tivéssemos beijando, pedindo sorte e proteção ao Senhor. Costume tão arraigado neste povo que até os totalmente laicos também assim procedem.
Parece que "Ele" nos ouviu e colocou o guarda chuva nas mãos de meu pai.
Finalmente compramos os bilhetes, nos mandamos para o salão de entrada onde estava o "gerente, pica bilhetes", o Senhor Tibúrcio, que daria a sentença final, "entra ou é barrado".
Pela primeira vez vi sentado junto ao senhor Tibúrcio um Guarda Civil, possivelmente mandado pelo juizado de menores, caso houvesse discussões por causa da idade e precisavam uma autoridade para fazer cumprir a lei.
Virgem Maria, quase me cago, só isso era o que me faltava, um apoio logístico da guarda civil para o "pica bilhetes". Ele por si só já era um problema danado, agora ainda com a ajuda dum guarda civil, estou "frito" (complicado), pensei.
Juro que só de medo quase começo a "chupar dedo" e queria pedir a meu pai que fossemos embora e deixássemos este suplicio para outros.
Que Tarzan e sua família, os negros antropófagos safados, a macaca "Chitta" e todos os elefantes, que se vão à merda e à puta que os pariu, eu desisto.
Despertei do meu pesadelo ao ouvir a voz do senhor Tibúrcio dizendo: - Passem, passem adiante minha gente, o jornal nacional começa já, já, adiante, entrem, entrem. O senhor aí com o garoto, chegue a cá, as entradas faz favor.
Pronto, agora chegou a hora "da onça beber água"(decisão fatal).
Olha os ingressos e diz: - O garoto tem 14 anos?
Responde meu pai: - Claro, veja como ele está vestido. Menino com menos de 14 anos se veste desse jeito? Paletó e gravata, calça comprida de brim de linho do melhor, sapato engraxado, bem penteado e barbeado a navalha, se isto não é sinal de maior idade, então o que será? Carteira de identidade, só com 18 anos, então como posso provar que meu filho tem 14 anos, logo mais completará 15 e vem acompanhado comigo, uma pessoa adulta.
O garoto é gente de bem, não um moleque da rua!
Senhor Tibúrcio nada se impressionou com o discurso do meu pai (mentindo de cara lisa), tudo em defesa do filho.
Eu imaginava loucamente ver as "neguinhas africanas" nuas dançando e cantando "GAR-GAR GARGAREJO HEI, GAR, GAR GARREJO AI, GAR, GAR, GAREJO HEI" e repetiam o texto com a melodia monótona que dava até azia (sensação de enjôo). 
Atiçavam o fogo debaixo do grande pote, com a lenha que apanharam num campo meio pelado em volta das "malocas" (vivendas primitivas para gente ainda mais primitiva).
Em todos os filmes de Tarzan eram sempre as mesmas africanas, as mesmas "malocas" e as mesmas cantigas. Cenário que sempre se repetia e recorde-se que tudo era filmado nos estúdios de Holiwood e nunca na selva africana. Sacanagem.
Festa da tribo em volta dum grande pote de barro, onde seria cozinhado para a janta da noite, o missionário escocês,mister Mac Barrik, que no passado foi juiz de futebol no Reino Unido e agora estava a serviço de Deus o todo poderoso. Vejam em que "camisa de onze varas" o pobre coitado se meteu.
Eu "acordei" dos meus pensamentos imaginários, quando o Senhor Tiburcio seguro de como estava agindo pergunta meio sarcástico a meu pai:
- Me diga senhor, só para o meu "governo" (Para entendermelhor), se o garoto é maior de idade como quer entrar com um "meio ingresso"? Só criança paga meio ingresso!
Responde meu pai (nunca pensei que este velho prestamista fosse tão rápido de pensamento):
-Senhor Tiburcio, aí é que o senhor está enganado, o meio ingresso foi por ter pago como estudante, ele está cursando um curso extra curricular por correspondência e por isso tem carteira de estudante. Mas se o senhor exige, ele irá à bilheteria e trocará por um ingresso de pessoa adulta. Mas que "enche saco". Desculpe-me ser grosseiro!
- A carteira de estudante está aí, pra eu ver?
- Quem pensava em problemas na entrada para provar que o garoto tivesse o direito de entrar para ver o filme. A carteirinha de estudante ficou em casa. Agora não dá mais tempo de voltar pra trazê-la. Pois até que retorne, já perderia metade do filme.
Criou-se o impasse, meu pai por um lado e pelo outro Sr. Tibúrcio e o guarda civil que de vez em quando se aproximava para escutar a contenda e se minha imaginação não estava por demais ativa o escutei perguntando:
-Levar essa gente pra fora?
Agora mais esse vexame na frente de todo o mundo.
Nem meu pai nem Sr. Tibúrcio podiam provar nada, pois não havia como, e sem um documento para tal, o impasse ficava como começou.
Porém como "na terra de cego quem tem um olho é rei",
no cinema Polytheama quem manda é o "gerente picador de ingressos" o Senhor Tibúrcio e o guarda civil ao seu lado.
A defesa da lei tornou a contenda unilateral. Não tínhamos chance nenhuma.
-O filme já começou, voltem quando eu acreditar que o garoto tiver completado 14 anos, aí entrará sem problemas,diz o Sr. Tibúrcio amparado pela presença ameaçadora do guarda civil.
Zombava de nós pela vitória conseguida no portão de entrada do Cinema.
Todo o nosso plano desmoronou como uma estrutura feita de cartas de baralho.
Demos a meia volta e ficamos ainda uns minutos olhando na sala de entrada as fotos dos filmes em cartaz.
Sair de baixo deste "toró" (chuva forte), mesmo com o guarda chuva, significava chegar em casa todo molhado e certamente com um resfriado da porra (forte e complicado).
Não sei se era a minha imaginação, porém escutei o "pica bilhetes" conversando com o guarda:
-Estes judeus queriam me enrolar (enganar, na gíria da rua), com a tal carteira de estudante. Eu não acredito numa palavra dessa gente, ademais se aparece aqui um fiscal do juizado de menores, o cinema pega uma multa danada, retiram uma parte do meu ordenado e o garoto se não estiver acompanhado de um adulto possivelmente poderá ser julgado pelo tribunal do Juizado de Menores e ser condenado a "passar umas férias" na Colônia de Recuperação Santa Isabel no Cabo.
Responde o guarda: - Ainda bem que foram embora e deixaram de "encher o saco" (perturbar a paciência), tava na cara que o garoto não tinha 14 anos. Nós dizemos lá no Brejo da Madre Deus, que "o menino ainda tem os lábios manchados de leite materno", por ser jovem demais.
Caíram os dois na risada, fecharam o portão principal do cinema e foram tomar Guaraná no quiosque e ficaram esperando o final da fita para abrir e deixar o povo sair.
Fim da terceira parte.
* Diáspora - Depois de expulsos da "Terra Santa" a dispersão dos judeus pelo mundo afora, durou aproximadamente 2000 anos até que retornaram. Então é costume usar o termo nas conversações em hebraico ou em iídiche, quando algo demora demais: "Long, vi der Gules ou Orech ha Galuth". Tradução literal: "Longo que nem a diáspora"

O desenho que acompanha esta croniqueta é da autoria do autor do texto.
Continua na próxima semana se Deus quiser, o trecho final.
Todos os direitos autorais registrados.
Cuide com os créditos.


Polytheama querido que o vento levou



A foto tomada na atualidade pelo Engenheiro Izaias Rosenblatt, do seu apartamento na Rua José de Alencar, no Recife em frente ao descampado que restou do nosso querido cinema.

LEMBRANÇAS DO RECIFE MATUTO
(ANOS 40 DO SECULO XX)

TEMPO POLYTHEAMA (Quarta parte. Final)
TemaPOLYTHEAMA QUERIDO QUE O "VENTO LEVOU"
04-03-2013
Paulo Lisker, Israel.

Passou a chuva (no Recife era assim), ao anoitecer, lá pro lado do porto, sopravam umas lufadas (ventos), com cheiro de maresia, "voaçava" (espalhava) a papelada jogada nas ruas e trazia um aguaceiro danado. Depois de um verdadeiro dilúvio que não durava mais que uma hora já estavam às estrelas no céu como se nada houvesse acontecido.
Ficava só o aroma do mato na terra molhada e o bafo (cheiro ruim) que exalavam os paredões e as calçadas quentes do dia todo sob o intenso sol tropical.
Ficamos eu e meu pai, junto ao portão de saída do cinema (Polytheama), esperando a chuva passar.
Deduzimos que a batalha contra o "porteiro picador de bilhete" e o guarda civil, armado com um cacetete ameaçador, estava perdida, executamos uma retirada estratégica, visto que o filme de hoje não assistiríamos.
Saímos com o "rabo entre as pernas" (tristes, ofendidos e deprimidos), nem por isso íamos urgentemente consultar um psicoterapeuta infantil, como hoje. Éramos "fortes" e nos curávamos sozinhos e como dizia a meninada, "saíamos para outra".
Caminhamos pelas calçadas esburacadas da Rua Barão de São Borja, pisando em cima dos "frutos" (pequenas bolinhas), que caiam das enormes arvores de Fícus Benjamin, cujas raízes eram verdadeiros "rebenta calçadas".
Atravessamos o Pátio da Santa Cruz, não paramos para tomar (beber) caldo de cana no bar do Olavo, pois meu pai para compensar o meu desgosto me prometeu que iríamos saborear um sorvete na sorveteria NICE.
Lembram-se dela?  Ficava na esquina da Rua da Imperatriz com a Rua do Hospício. Era uma das melhores depois que a Gemba do japonês fechou e se acabou de todo.
Curioso, depois de velho me pergunto, para onde teria ido o sorveteiro japonês Heiji Gemba, que produzia o melhor sorvete do Recife naquela época.
Iniciou na Praça Joaquim Nabuco e depois se instalou na Rua da Aurora, no quarteirão que fica entre duas pontes, a da Boa Vista e a Duarte Coelho. Tudo no Recife poderia ser orientado pelas suas inúmeras pontes, melhor que os azimutes geográficos. Será que no mundo tem outra cidade assim, com tantas pontes? Pensamento de menino ingênuo, mas quem sabe? Talvez!
A Rua da Aurora (nomes bonitos tinham as ruas do Recife), as margens do Capibaribe era uma das ruas mais ventiladas desta cidade calorenta.
Que fim levou o Gemba depois que fechou a sorveteria?
Será que foi novamente plantar morangos, cogumelos (fungos comestíveis) e flores, como fazia quando foi "degredado" para fora do Recife (Garanhuns de clima temperado), no tempo da segunda guerra mundial por ser súdito do Eixo (japonês)?
Agora voltando a "vaca fria" (assunto em pauta). 
Passamos rapidinho pela Praça Maciel Pinheiro, meu pai cumprimentou uns amigos conversando ou lendo algum jornal no idioma iídiche, sentados naqueles bancos não confortáveis que circundavam a linda fonte com os quatro leões jorrando água pela boca (quando não faltava água no centro da cidade).
Antes de chegar à praça pedi a meu pai que não contasse a ninguém sobre o nosso fiasco (fracasso) na entrada do Politeama. Se essa gente soubesse, de alguma forma chegaria aos meus amigos e seria um motivo de gozação (zombar com prazer).
-Pai, tas escutando (sempre foi meio surdo):
-Se alguém perguntar por que estamos a esta hora da noite vestidos desse jeito, para aonde vamos ou de que festa viemos,
diga que vamos tirar retratos (fotos) no "estúdio" de senhor Sadigursky, pois faz tempo que prometemos enviar para os nossos parentes da Europa.
Passamos à primeira "prova de fogo", atravessamos a praça sem olhados enviesados (desconfiados) depois atravessamos a Rua da Matriz e entramos na sorveteria NICE.
Olhamos o cardápio, tinha sorvete de tudo e para todos os gostos. No fim resolvemos pedir "cartola" e vitamina de abacate. Para quem não sabe o que é "cartola" é um pôster que só vi servir no Recife. Consiste numa grossa posta de queijo do sertão e duas bananas por cima, tudo frito em manteiga e quando pronto ainda quente, salpicam açúcar cristal e canela, se come com faca e garfo e é uma delicia.
A "vitamina" é feita no liquidificador com leite bem gelado, abacate de quintal bem maduro e açúcar. Tudo isso é um manjar excelente para terminar uma noite de resultado amargo. Pagamos com gosto e até deixamos uma boa gorjeta.
Chegamos em casa e minha mãe nos recebe perguntando por que chegamos tão cedo e donde esta mancha horrível no paletó novinho.
- Vocês iam para o cinema não era? Esta mancha está parecendo com mancha de abacate.  Tu de novo andaste traquinando e trepando nas arvores pra tirar frutas?
Diz menino!
Logo com a roupa nova que custou uma fortuna e era para ser estreada especialmente para o teu Bar Mitzva*. Menino tu estás louco e teu pai não te disse nada? Eu vejo que ele não é muito melhor que tu. "A fruta não cai longe da arvore", agora vejo como este ditado é a pura verdade!
Tu não sabes que mancha de abacate não "larga" nunca mais? 
Meu santo Deus, logo no terno novo, "bist gantz meshigue"? (Estás louco? Em iídiche).
E se dirigindo ao meu pai: "Un di zugst gurnisht? Noch dus hot mir guefeilt, a zoi fil guelt betsult der shnaider her Severino, oi a krenk" (do iídiche: Tu não dizes nada? Só era isso que me faltava, tanto dinheiro gasto com o alfaiate senhor Severino. Mas que desgraça)!
Eu e meu pai riamos da situação criada e minha mãe só faltava arrancar os cabelos, quase gritando:
-Amanhã bem cedo, corre a lavanderia do china, seu Julio e leva o terno para lavar.
Pede a ele fazer todo o possível para tirar esta nodoa feia do paletó, ai meu Deus não é só uma, tem uma na gola e outra no bolso. Você come feito um débil mental, espirrando pra todo lado, me diga?
Conte ao china a verdade, que a nodoa é de abacate, pra ele saber qual material usar, nem que seja a" pau e a pedra"( de qualquer jeito).
Diga a ele que é o teu terno para uma festa, que sem o paletó não haverá festa, isto eu juro por Deus, nunca farás Bar Mitzva em quanto eu for viva.
Coitada da mãe, vendo nós rindo, "perdeu as estribeiras".
-Diga ao china da lavanderia, que tua mãe confia nele e que só pagará, custe o que custar, se o paletó voltar limpo sem a nodoa. Tas ouvindo? Não me responda, menino malcriado. Esses meninos brasileiros são mesmo uma coisa seria!
Eu e meu pai continuamos rindo a bessa.
Vejam só, uma nodoa verde num paletó branco novinho, nos fez voltar ao cotidiano e deixar o amargor da discussão com senhor Tiburcio pra trás e seguir a vida esperando que em breve esta fita de Tarzan chegasse a um cinema suburbano e lá iríamos assistir  sem falta, com toda certeza e a ajuda de Deus, sem o senhor Tibúrcio para nos barrar.
Espero que seja o mais pronto possível, pois se demorar muito completarei os 14 anos, então toda a aventura não terá mais graça nenhuma.
O importante agora é que o "china" da minha rua, seu Julio, com suas substancias exóticas originarias da Formosa, consiga tirar a mancha e trazer o meu paletó branco de volta "novinho em folha" para o bem geral da nação, pra eu festejar o "Bar Mitzva" que se realizará no próximo mês de Janeiro, isto acontece uma vez na vida e o mais importante era acalmar os nervos tensos da minha querida mãezinha.
Quase ia esquecendo, a foto que acompanha esta croniqueta infantiloide, representa o que ficou do nosso querido POLYTHEAMA depois de mais de meio século prestando serviços a comunidade do Bairro da Boa Vista e a população em geral.
Restou um descampado. Nada mais que lembre o que foi este local no passado.
Não ficou nada, nem tiveram piedade das arvores seculares, botaram tudo abaixo a espera do "desenvolvimento urbano" que deveria chegar à esquina formada pelas ruas Barão de São Borja e José de Alencar.
Tomara que assombrações, espíritos do alem, catimbó de dona Elvira e a burocracia pernambucana impidam a consumação desse projeto.
Que a Mata Atlântica volte a tomar conta deste terreno.
Que a meninada volte a colher pitangas vermelhinhas, doces feito mel de uruçu e as sapotas das arvores seculares (cuidado com o leite dessas frutas gostosissimas, pingou no olho, cegou), encostadas ao muro que dava com os fundos das casas da Avenida Manuel Borba.
Das mangas e manguitos, toneladas delas e para todos os gostos como foi com toda certeza no passado longínquo.
Até que isso aconteça, volto as minhas lembranças da infância, Jaiminho Zimilis, sempre com seu sanduíche de queijo do reino, Julio "magro" Charifker, dono da bola de couro oficial (numero cinco), Julio (gordo) e Marleno Singer com as camisas do Esport e do Náutico, Senha e seu irmão Duda Ribemboim, sempre bem vestidos e penteados, Vivi Jacubovich que driblava feito uma peste, Zeca Guitsis que trepava nas mangueiras para tirar para nós frutas maduras, Meira, que os boatos diziam que se não fosse estudar medicina, poderia ser o melhor back central do Brasil (afirmação do técnico do Sport, senhor Perini), Rubão que era denominado "casquinha, Itiel o atleta, Wauti, meu primo, David "gordinho", Meraldo ,  hoje psicoterapeuta e seu irmão Fernando (goleiro de mão cheia), Moishe Kertzman o único ponta esquerda juvenil da nossa colônia, os irmãos Rosenblatt, Germano Haiut, exímio no ping pong e depois artista de teatro e cinema, os irmãos Baras, filhos do livreiro, Simão Bernstein o intelectual, Jorge Verffel o comunista, Bernardo Katz que tinha no quintal na sua casa um pé de cajá um dos poucos que restaram no Recife e ainda sobrava bastante terreno para "bater uma zorra" (fufibó de quintal), os irmãos Frost, bem educados e sempre de paletó na quentura do Recife, os irmãos Krutman, netos de um dos poucos "mata galinhas" (abate casher para os judeus) e que abandonaram o Bairro da Boa Vista e foram embora morar na Madalena. Sales Zaicaner, Leão e Ildo Mazur, Berto Lisker, sempre bom aluno, os irmãos Hulak, filhos de judeus "progressistas" e (antisionistas), Moises Roizman, auto didático e aluno brilhante. Uziel, Marcos e Roberto Muchnick, netos do outro "mata galinhas" e autorizado na pratica da circuncisão dos recém nascidos judeus masculinos, os Margolis, os Gorodovich, Ramiro Katz, bom em química, Rubinho do sobradão da Praça Maciel Pinheiro, Helinho e Jorge Lederman, Mucio Mandel o violinista, os nossos instrutores no movimento juvenil: Ary Ruchansky, David Mancovietsky, Isaac Frechtman, Marcos Blanche, e muitos outros mais.
As meninas, nossas amiguinhas, Leica, Pêra, Bertinha, Sarita, Lourdinha, Ester, Ruth, Belinha, Lucia, Guita, Miriam, Belinha, Sarita, Sluva, Geny, Nely e quem não?
Quase toda juventude da comunidade judaica, de uma maneira ou outra tinham algo a ver com o cinema Polytheama no bairro da Boa Vista e me desculpem todos aqueles que sem más intenções esqueci de citar porem continuam vivos no meu coração.
Onde estará hoje esta gente toda? Onde?
Para onde debandaram? Será que tudo isso se acabou, assim como dizia 70 anos atrás um cartaz anunciando que no próximo mês no cine Polytheama, ocorreria à projeção de gala do famoso filme "E O VENTO LEVOU".
Será que este mesmo vento carregou para sempre a comunidade judaica do Recife e o cinema? Dele só restou um descampado? (ver foto no inicio da crônica). É de doer mesmo.
E o resto da comunidade judaica do Recife, aquele grupo de imigrantes que chegou sem nada, analfabeto e depois se dedicaram a vender de porta a porta (ambulantes, mascates, prestamistas) e que geraram os doutores de hoje. 
Não se passou nem sequer um século e as novas gerações desta comunidade, infelizmente, muito interesse pelo seu passado, não desperta.
Isto no nosso jargão se chama "assimilação".
Uns dizem que é um processo natural e sadio para qualquer minoria que se integra a população geral da nação e outros defendem a tese que neste especial caso será o fim do judaísmo local.
Espero que fique alguém para guardar as luzes, as memórias e os alcances desta comunidade tão brilhante que tanto participou no desenvolvimento econômico e cultural da cidade. E por favor, não esqueçam também de colocar uma laje com o escrito: "AQUI JAZ".
Fim da croniqueta "TEMPO POLYTHEAMA" de Paulo Lisker, espero que outra gente mais letrada e com maior conhecimento, acrescentem mais e mais fatos, sobre este cinema que foi de capital importância para a diversão sadia da juventude recifense.
*Bar Mitzva: Comemoração judaica quando o menino completa 13 anos e é considerado adulto com todos os deveres e obrigações perante seu povo.

-Todos os direitos reservados.
Fim da crônica POLYTEAMA DA MINHA INFANCIA NO RECIFE.