domingo, 22 de dezembro de 2013

Agronomia (parte 2)-- "NA COVA DOS LEÕES"


          Aula de Agrostologia (pastos), anos 50 na ESAP
                       ESAP-Escola superior de agricultura de Pernambuco
                       Foto do autor da crônica.
No tempo do Recife matuto
Agronomia  (parte 2)



Tema: "NA COVA DOS LEÕES"
Paulo Lisker
Israel

Como não tinha outro jeito mesmo, tomei coragem e um calmante e numa noite dessas entrei na "cova dos leões" (A sala de visitas onde costumavam sentar para conversar os patriarcas membros da família).
Do lado de fora chovia copiosamente, trovejava e relampejava no Recife.
É sempre assim quando temos que tomar uma decisão por demais importante, assim como, que carreira abraçar e logo comunicar aos nossos pais e família próxima. É "peia" (muito difícil, no jargão da rua).
A cidade vivia ameaçada de cheias (inundações) que carregavam o lixo da cidade, automóveis, mocambos que o interventor Agamenon Magalhães não conseguiu derrubar, mas a chuva levava sem grandes protestos tudo para o nosso oceano Atlântico das lindas praias e exuberantes cortinas de coqueirais.
Foi numa dessas noites que eu "o Spartaco" resolvi enfrentar a família na "cova dos leões" com o comunicado que iria fazer o concurso para a agronomia. Virgem Maria me acuda!

Na sala de jantar, estavam sentados em volta da mesa, meus pais, meu avô, o tio Jorge, apelidado o "sertanejo", pois grande parte da sua vida de solteiro vivia metido no mato e vinha nos visitar quando se desocupava das suas fainas e cavalgadas pelo sertão brabo.
Quando vem o azar ele vem logo dobrado, deu um "apagão" (corte de energia), meu pai mais as empregadas saíram correndo e logo trouxeram dois candeeiros (lampiões de querosene), acenderam velas que sempre estavam de sobre aviso pelos inúmeros cortes de energia que esta cidade, a capital do nordeste, sofria periodicamente e colocaram sobre a mesa e noutras dependências do casarão, sempre se desvencilhando das inúmeras goteiras que ameaçavam apagar as velas. Fecharam as janelas, mode não deixar a ventania e a chuva entrar na casa. Desse jeito é que ficava um abafado danado que dificilmente se podia respirar. O cheiro das velas acesas e o fedor da chama do pavio do lampião de querosene predominavam no ar da sala de visitas.
As sombras das pessoas se projetavam nas paredes e pareciam monstros imaginários que saíram de um filme do celebre Hitchcock, ou era a minha imaginação? Sei lá.
O pessoal conversava sobre o temporal que impediu do meu tio voltar hoje para Cabrobó onde fazia um projeto com os famosos Coelhos (Família famosa na área ribeirinha do Rio São Francisco).
As estradas estavam inundadas, partes destruídas e interditadas para qualquer tipo de veiculo.
E aqui em casa estávamos preocupados com as inúmeras goteiras que exigiam uma rápida intervenção para arrumar o telhado do nosso secular casarão da Gervásio Pires, ainda antes da chegada do próximo aguaceiro.
No Recife quando chove não faz frio, às vezes muito pelo contrario é ainda mais abafado e quente. 
Tomar chá fervendo com biscoitos como era muito comum lá em casa, deixou de ser costume nestas ocasiões.
Sem alternativa se passou a tomar chá frio mesmo, era o famoso mate Leão, que vinha numa caixa de madeira e tinha um cheiro bom danado. 
Sorte que os amigos do meu avô não vinham, pois tinham medo de resfriados e gripes da "bexiga lixa" que quando pega velho desprevenido é mesmo de "lascar o cano" (motivo de sérias complicações).
Este foi o ambiente com que me deparei ao declarar a minha intenção de estudar agronomia.
Inocentemente pensei que com problemas tão sérios com o clima e as goteiras o meu assunto seria rapidamente apresentado, resolvido pacificamente e passado pra adiante sem muita faladeira e crises emocionais.

Quanto errado estava eu.

Agora não só chovia a baldes e relampejava, também trovoava que dava até medo. Tudo tremia. Virgem Maria!
Meu tio Jorge a me ver perguntou se eu necessitava alguma coisa e logo averiguou se pretendia sair numa chuva destas.
-Vais sair? Perguntou.
Caso sim, leva um guarda chuvas ou uma capa e galochas ta? O aguaceiro não está mole, te cuida viu? Tem ruas cheias de água, os esgotos entupidos, te aconselho de ficar em casa e se vais sair calça aquelas botas de borracha que vai até o meio da canela, viu?

Juro por Deus ao ver aquele "quatrumviratum", quase desisti de apresentar minha demanda.
Mas um "choque elétrico" que me passou por toda coluna vertebral me pôs novamente consciente e exclamei:
-Preciso de vinte mil reis para viajar pra Dois Irmãos, amanhã o mais tardar e me inscrever para o concurso da Escola de Agronomia.
Chovia, relampejava, trovoava, o calor sufocante, (quem sabe só eu sentia), goteiras por todo lado, eu suava frio e uma tremedeira danada nas pernas até que me apoiei num canto da mesa, aí a mesa pesadíssima começou também a sacudir, depois de uns minutos parou.

Meu avô meio sarcástico perguntou em iídiche: "Hoste guefilt a kleine erdtsiternish" (sentiram um pequeno terremoto, será?). Juro que senti a mesa trepidar, vocês não? Tomou mais um sorvo de chá frio e se recostou na cadeira de balanço.
Uma situação dessas creia-me, não desejo nem para meus piores inimigos.
Voltou de repente à luz!
O "quatrumviratum" gelou "in loco" como se a etapa do gelo voltara de repente ao nosso planeta.
Não tenho palavras para descrever as fisionomias dos meus íntimos familiares sentados em volta da enorme mesa de sucupira, aqui e ali atacada pelo cupim, inseto daninho sempre presente nas peças de madeira do nosso querido Recife matuto.
-O que você quer fazer? Perguntaram em coro meu pai e meu tio.
-Agronomia, respondi, como se fosse a ultima palavra antes da ordem "Fogo"!
-Agronomia? Que te passa rapaz?
Queres ser jardineiro? Quem te botou na cabeça esta idéia doida!
Meu pai com um olhar fuzilante:
-Isto não é profissão para ganhar dinheiro, quem já viu judeu agrônomo, tem disso na nossa comunidade? Entendo engenheiro, medico, até dentista vai lá, mas agrônomo, onde foste buscar uma idéia idiota destas?
Minha mãe calada com cara de velório, mais um pouco teria um chilique.
Meu avô acendeu um dos seus cigarros Regência, mostrava sinais de nervosismo e logo tomou uma pitada de rapé, aí passou. Só meu tio Jorge, calmo e sereno "sorria de fininho" pra ninguém ver, mas eu vi, ou imaginei.
Numa hora dessas todo sistema nervoso entra em total "pane" e passa a ver coisas que nunca foram a realidade.
Meu avô tomou a palavra e disse ao meu pai:
-Não faz caso Méier (Maurício em iídiche), tu queres criar inimizade com teu filho e ter um inimigo dentro de casa?  Caso o contrárias ele irá viver quatro ou cinco anos numa republica de estudantes de goim (não judeus) lá nas "selvas" de Dois irmãos? É isto que você quer?
Ele se afastará de casa, da família e das tradições judaicas que já são minimalistas, estas que vocês ainda conservam e transmitem para os meninos.
Tua mulher nunca permitirá ele viver fora de casa. Então dorme com o problema e amanhã quem sabe pensarás de uma forma mais abalizada.
Aqui não é como nos "shteitel" (aldeias no interior do leste europeu) em que a voz dos anciões era a "voz de Deus" e cumprida ao "pé da letra" pela jovem geração, sem discussão ou um segundo pensamento.
O jovem judeu criado no Brasil é um "bicho diferente", livre de tudo que o amarrava ao passado dos seus pais. 
Você mesmo me disse uma vez que com força não se consegue nada com esta nova geração jovem de judeus brasileiros, quanto mais duro se pressiona, eles erguem mais a cabeça e não se entregam. Esquece do "molenga" judeu forjado pelas perseguições e "progroms" na Europa!
Esta gente é totalmente diferente e ainda bem que é assim. Gente com opinião própria e de cabeça erguida e peito estufado. Um judeu diferente daqueles medrosos da Europa que foram para as câmaras de gás nazistas como um rebanho de ovelhas.
Estes agora nascidos aqui são da estirpe dos Macabeus ou do Bar Kochba. (heróis do povo judeu no passado). E graças a Deus que assim é!
Foste tu mesmo que chegaste a esta conclusão, Maurício. Agora que a "sardinha chegou a tua brasa", estas esperneando?
Você viu como reagiu anos atrás meu filho "Tutcho" (meu tio Jorge, o sertanejo de chapéu de couro e tudo) quando eu quis que ele fosse trabalhar comigo vendendo prestação nos subúrbios do Recife. Ele me acompanhou uma ou duas vezes e pronto.
Num belo dia ele encheu uma mochila com seus troços e fugiu de casa.
Só depois de meio ano ficamos sabendo onde ele perambulava pelo sertão nordestino.
Plantava algodão no Cariri com a empresa "SANBRA" depois em São Lourenço produzia "raspas secas de mandioca" para exportar para os países nórdicos da Europa.
Prestamista absolutamente nunca quis ser.
Que discussões tivemos, nada adiantou, no "frigir dos ovos", fez o que achou melhor para si. Pior de tudo isso, com a idade de 40 anos, nessas suas andanças pelo interior ainda não casou, na realidade quem quer casar com um andarilho (usou a palavra andarilho para não usar "vagabundo").
Estás a ver Méier, não adianta "forçar a barra", porque a "barra" está na mão dessa gente.
Paciência com o garoto, que é para não esticar a "corda demais"!
Eita velho sabido este meu avô, falei para meus botões.

-Com todo o respeito senhor Joseph, mas eu acho que Tutcho, o teu filho que andou dando maus conselhos e isto foi o catalisador desta precipitada escolha do teu neto da "raça dos Macabeus". És ridículo, só tu mesmo acreditas nestas lendas do passado. Macabeus, coisa nenhuma, isso é preguiça de sem vergonha, ser jardineiro no Recife, uma vergonha perante a comunidade iídiche (judaica), "Oi hafintstere bishe" (negra vergonha, em iídiche).
Já viu judeu estudar para agrônomo? Quem na nossa comunidade estudou esta profissão "dreck" (merda em iídiche). Diga-me, se têm dois ou três, são uns fracassados que não dariam mesmo para nada, não achas?
-Aí eu entrei em ação e coloquei:
-Primeiro: meu irmão mais novo irá para a engenharia, assim como na família de Senha, um agrônomo e um engenheiro para o bem da família e a honra salva perante a comunidade israelita.
Porém o destino é matreiro, o segundo filho, meu irmão, foi no mesmo meu caminho e terminou a agronomia com distinção. Mas quem poderia saber naquela ocasião de um "desastre" desta natureza.
-Segundo: Não estou preparado para fazer concurso em outra qualquer universidade. Na semana passada, mãe me mandou aconselhar com Professor Sino Lazer, um primo de segunda ou de terceira, não sei bem.
Ele disse que só tem tempo às 6 da manhã, cambaleando de sono cheguei a sua casa. Sentei junto a sua escrivaninha, me deu um Polinômio para resolver. Eu não sabia para onde ia à coisa, depois um Determinante, pior ainda, Me dei por rendido aí ele se pronunciou: Olha rapaz diz a tua mãe que tu não tens base nenhuma (me lembro exatamente das suas palavras). 
E continuou o seu veredicto: Eu estou na banca examinadora no concurso de engenharia e arquitetura, se tu te apresentas lá eu sou o primeiro a te "por no pau" (desclassificar). Tu não estas preparado para fazer concurso. Vai para agronomia, quem sabe lá te aprovam.
Então pai, onde a vergonha para com a comunidade será maior, fazer agronomia ou levar pau noutra universidade. O que será mais vergonhoso? Levar pau, não é?
-Que vergonha, diz meu pai. Um menino judeu burro, só se o trocaram na maternidade do Derby, vá lá saber.
-Pai, a coisa não é tão preta assim, veja Senha (José Alexandre Ribemboim), está cursando a agronomia e a família dele não fez uma tragédia como vocês aqui.
Meu pai ainda não conformado com esta minha decisão sai com essa:
-Senha é filho de uma família que negocia com ouro e fabrica medalhas, trancelins, pulseiras, tudo em ouro. No dia que este teu amigo resolver não continuar a estudar ele se passa a outra universidade. E se resolver não continuar a perder tempo estudando e não achar emprego vai trabalhar com o pai, tem lugar garantido, pois quem está metido no ouro, onde cabe um caberá mais um, sem problemas. Contigo não é a mesma coisa, eu sou prestamista se tu fracassas na agronomia, queres ser prestamista?  Estás a ver a diferença?
-Pai não te preocupa, eu não vou fracassar. Lá se faz herbário, caixa com insetos espetados em alfinetes, enxertos de manga, olhar no microscópio pra ver se a folha esta doente, classificar as famílias das plantas, tu sabes pai a que família pertence o feijão?
-Pergunte a Josefa à empregada, ela saberá te dizer, não precisa estudar agronomia para isso.
Meu filho o teu fim é estar com "as mãos mexendo com merda de vaca e os pés metido na lama". Este será o teu futuro, uma vergonha para um jovem judeu.
"Puto da vida" ele continua:
O povo judeu a mais de 2000 anos não tem terras, nem plantações, nem bandeira, nem país, somos um povo errante por perseguições constantes. Ter terras não é negocio para nós! Ouro, diamantes e sabedoria isto sim é mercadoria que em qualquer momento de perigo levamos conosco para outro lado onde nos deixam viver em paz.
Então me dê uma razão lógica porque por todos os profetas e juizes da Bíblia sagrada, agora vamos ter agrônomos, para que? Me diz!
Houve uma pausa nesta discussão, só se ouvia a empregada tirando a louça daqueles que tomavam o chá frio.
O pessoal se entreolhava e enxugava o suor, alguém perguntou: Abrir a janela para deixar entrar um arzinho fresco, aqui dentro a atmosfera já está pesada demais.
Aproveitei a "dica" (oportunidade, no jargão da rua) e disse em voz alta e segura: Então vão me dar os vinte mil reis ou não, depois de tanta verborréia e discussão, perguntei na maior tranquilidade!
Meu pai ainda aborrecido:
Graças a Deus que os estudos são grátis, viva o Brasil, de mim não verás um tostão para esta profissão de jardineiro de merda.
Logo encerrou a conversa, tirou a dentadura postiça, colocou num copo deágua com uma pastilha de sal de frutas desses efervescestes e foi dormir.
Tio Jorge olhou pra seu pai (meu querido avô), tirou da carteira uma nota de 100 mil reis e me deu.
Disse-lhe: Não tenho troco tio.
Ele se riu.
-Alguém aqui falou em troco tolo. Vai paga a inscrição e com o resto vá limpar a cuca na zona do Pina seu besta, lá ta cheio de mulatas enxutas uma beleza para este teu estado de espírito, vai lá menino. Só não conta nada a tua mãe, ela é capaz de não me deixar mais entrar em casa.
Agora satisfeito da vida e "realizado", abracei meu tio e meu avô e todos rimos a beça, vi até uma pequena umidade nos cantos dos olhos do meu Zeide Joseph, esse avô arretado!

Fim da parte 2
 Paulo Lisker.
Todos os Direitos Autorais Reservados.
Cuide com os créditos.

     

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

AGRONOMIA (PARTE 1)- "ardua resistencia"


ESCOLA SUPERIOR DE AGRICULTURA-COMPLEXO DE SALAS DE AULA E LABORATÓRIOS. No primeiro plano o campo de futebol. ESAP RECIFE,
Fotos Google-Internet
        

No tempo do Recife matuto
Agronomia  (parte 1)


Tema: Incidente ao escolher a carreira de Agronomia.
Paulo Lisker-Israel.
10-06-2011.
                                                   
Parte 1 – Árdua resistência no primeiro front, meus pais e minha família.

Para chegar ao auge deste acontecimento, o ato solene de formatura e recebimento do almejado diploma de Engenheiro Agrônomo, precisamos voltar cinco anos atrás.
Ao terminar o curso secundário no celebre colégio Osvaldo Cruz, urgentemente se fazia necessário decidir qual concurso e qual faculdade escolher.
Caso "matutasse" demais, perderia um ano sem fazer nada e isso era chato demais para mim, minha família e também para os amigos de tantos anos de convivência, amizades nos diversos colégios. Eles com certeza seriam estudantes universitários com carteira de estudante, passeatas, excursões, festas e eu ficaria um ano esperando até a nova época de concursos das diversas universidades. Ai meu Deus que fazer?
Comecei a pensar com meus botões:
-Engenharia é muita matemática, esta carreira é para quem gostava de cálculo infinitesimal, diferencial, logaritmo, demonstrações de teoremas que não tem fim, formula do cone, pirâmide cilindro, cubo, tudo que era forma geométrica... Virgem Maria, só pensar me dava medo.
Isso é para Moisés Roizman, Júlio (gordo) Singer, Jaime Zimilis, Bernardo Katz, Walter e Nussi Ghelfond, Lhova Krutman e outros deste quilate que eram esforçados pra cacete e estudavam "feito a peste" pra passar no concurso sempre ou quase sempre, como os primeiros qualificados.
Isso não é para "burros" na matéria feito eu.

-Medicina, ta doido, vou lá cortar gente viva e defuntos, depois trabalhar nos hospitais de indigentes, envolto daqueles cheiros de éter e outros solventes, estar todo tempo apavorado para não dar um remédio errado, isto fica pra gente de sangue frio, já viu, né.
-Direito, Advocacia, nem me fale. Passar a vida decorando leis e no fim ir defender a bandidos e ladrões. Deus me livre e guarde, nem penso nisso.
Assim fui matutando e passando de Faculdade por Faculdade, Ciências Econômicas, Odontologia, Veterinária, etc.etc.etc. em todas elas só encontrei defeitos.
Na expectativa, assim de mansinho no "final da picada" ficou coitadinha só a Agronomia, em Dois Irmãos.
Bom, é com essa que eu vou, decidi!
Meu bom Deus, agora como direi isso a meus pais.  
Como explicar esta minha escolha não convencional para um estudante judeu, ainda mais no Recife "matuto". Estou lascado (totalmente perdido), no jargão da nossa terra, pensei.
Anunciar a pais judeus que vais abraçar a agronomia seria como confessar a teus entes queridos que te criaram a base de "pão de ló" até aquele momento, que es um "fresco" (homossexual passivo), gostas de homem, odeias mulheres e já tens um amante escurinho a tua espera para formar um lar de "bixas" na zona do "Bom Jesus". Pôrra tem coisa pior que uma situação dessas?
É mesmo que se meter numa "camisa de onze varas", entrar num beco sem saída e lá te espera o lobisomem e uma cobra de sete cabeças pra te comer vivo. Que Deus me acuda!
Não dormi bem umas noites matutando com o problema até que me lembrei que o meu amigo de infância Senha Ribemboim. Ele fez no ano passado concurso de Agronomia na ESAP em Dois Irmãos.
Foi otimamente bem sucedido, passou e já cursava o primeiro ano da faculdade e o mundo não veio abaixo.
Como ele também é judeu, me veio à idéia de ter uma conversinha sobre o assunto e saber dele que estratégia ou diplomacia usou para comunicar a sua escolha aos seus pais.
Pois bem, amanhã mesmo vou procurá-lo para que me instrua como agir perante aos meus pais neste dilema que me parecia insolúvel e que poderia causar um rompimento total nas relações familiares, ademais com o filho primogênito, a esperança de ter um doutor ou engenheiro na família e fim dos suplícios do trabalho de bater de porta em porta vendendo a prestação, como foram eles quando chegaram ao "novo continente".
Foi assim mesmo que procedi.
Fui à casa de Senha (o nome dele era Alexandre), na Avenida Conde da Boa Vista onde no passado jogávamos pela tarde uma "zorrinha" com seu irmão Duda que era um exímio jogador de "zorrinhas" de terraço.
Sua genitora dona Clara, amiga de minha mãe e uma grande ativista (inesquecível figura na comunidade judaica do Recife), em prol dos necessitados e novos emigrantes judeus, me atendeu e perguntou o que desejava.
Perguntei por Senha e ela me disse que ele estava estudando por que amanhã tem uma prova de Botânica e favor não molestar agora.
-Quando posso bater um papo com Senha, perguntei a dona Clara.
-De noite lá pras 22hora, ele já terá encerrado os preparativos para a prova. Não basta saber a matéria acrescenta dona Clara, ele precisa preparar um herbário, sabes o que é isso?
-Sei não dona Clara, mas vou saber, pois quero estudar agronomia como Senha é por isso que quero falar com ele, vou fazer este ano concurso desta Escola em Dois Irmãos.
-Ótimo vem mais tarde e ele estará a tua inteira disposição. Diz-me uma coisa Paulinho, teus pais, tua família, já sabem desta tua decisão de ir estudar agronomia?
Meu Deus pra que, me deu um troço, um rebuliço na barriga, quase me cago de medo só em pensar na situação complicada na qual iria me meter.
Mais tarde voltei e falei com Senha e ele nesta oportunidade me mostrou o herbário (uma pasta de papelão cheia folhas e flores dessecadas, com seus nomes vulgares e em latim). Depois me mostrou uma caixa com uma tampa de vidro, cheia de insetos espetados em alfinetes (para as aulas de entomologia no terceiro ano da escola).  
Ele comprou esta coleção de outro estudante que frequentava o quarto e ultimo ano da Escola e já não necessitava mais dela.
Senha sempre foi um bom aluno, inteligente demais e tinha um acurado senso de comerciante. Pressentindo que uma caixa destas para organizar daria no futuro muita correria pelo mato "caçando" insetos e um trabalho com a paciência de Jô para encher a caixa de tantos "bichos alados" (insetos), espetados em alfinete, imagina.
Para contornar tudo isso ele resolveu comprar mesmo que ainda estava no primeiro ano da escola, uma das melhores coleções de um aluno que já estava às vésperas de terminar seus estudos. Puro senso comercial, comprar já no primeiro ano esta caixa com os insetos para usar só ao chegar ao terceiro ano da Escola. (Investimento de futuro no valor presente, quem não entende do que falo que pergunte a um economista). 
Tudo isto me entusiasmou mais ainda.
Esta é a Faculdade do meu inteiro gosto, falei com "meus botões".
Vi no herbário as folhas secadas ao sol de mangueira, laranjeira, videira, tomate, chuchu, melão de São Caetano, jurubeba, goiabeira, urtiga, capim santo, até erva mate. Muitas delas, minhas conhecidas que vegetavam no nosso quintal e no sitio de seu Ramos, encostado na parede dos fundo do nosso casarão.
No fim perguntei meio matreiro:
- Qual foi o motivo forte que usaste para que teus pais aceitassem esta tua decisão de estudar agronomia?
-Já não me lembro, faz tempo. Meus pais não fizeram grandes empecilhos a esta minha decisão.... Espera, espera aí um momento, agora me lembro, quando eles perguntaram por que não engenharia, eu respondi que na família já temos um estudando engenharia, o irmão Duda, eu quero agronomia, pois gosto muito das coisas que ensinam lá.
Nisto mais ou menos terminou a apresentação da minha "tese", resumiu Senha Ribemboim, meu amigo da infância e acrescentou:
-Eles até ficaram muito satisfeitos quando passei o concurso em primeiro lugar e a família toda foi ver na Rua da Imperatriz o desfile dos "feras" (o Trote), que os veteranos faziam com os calouros do primeiro ano. Eu desfilava com os outros calouros todo melado de tinta e salpicado de farinha de trigo parecia mais um fantasma do além.
Tu podes alegar o mesmo, tens um irmão e ele seria a estrela brilhante da família e iria estudar Engenharia ou medicina para honrá-la. Que tu achas, funcionará, com teus pais também?
-Sei lá vou tentar, respondi meio indeciso.
Saí do encontro noturno com meu amigo Senha quase que saltitando de contente pela Avenida Conde da Boa Vista até a minha casa na Gervásio Pires.
Esta noite dormi mais descansado e crente que meus pais receberiam de bom agrado a minha decisão como fato consumado, um agrônomo, o primogênito deles, depois viria um engenheiro ou um medico.
Quem sabe, tudo resolvido da melhor maneira possível à moda judaica na diáspora no "novo continente".  
As cores naturais me voltaram à pele, meio tremulo e cambaleante fui dormir, tomei um calmante para sossegar, coisa que normalmente nunca faço,
Vejam só que merda.
Até aqui a primeira parte "Escolher a carreira profissional"
Todos os direitos autorais reservados.
Cuidem com os créditos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

"DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ" EPILOGO (NO SOTÃO). Capitulo Final

 "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ"
Capitulo final


Cais de Santa Rita e o chuchu
Fotos Google internet

Tema: EPILOGO (NO SÓTÃO).
Rehovot, 24-06-2011.
PAULO LISKER-Israel.

Depois do sumiço (desaparecimento, em nordestino) do meu avô para sempre, as coisas mudaram muito.
O casarão na Gervásio Pires e os personagens do cotidiano já não eram a mesma coisa como antes.
Os amigos do meu avô parte faleceram e outros já não nos visitavam e as reuniões dos "bebedores de chá" se acabou.
Não é fácil se acostumar com esta lacuna que se formou na nossa vida.
Os verdureiros já não traziam mais o chuchu para a dieta, as "Mães de Santo" dos terreiros do Xangô não precisavam mais invocar pela ajuda no restabelecimento da saúde do velho galego da prestação. 
Seus dois ex-vendedores de mercadorias a prazo nos subúrbios deixaram de nos visitar depois que faliram trabalhando por conta própria e pela vergonha do fracasso, não vinham mais a nossa casa.
O pior de tudo era ver a cadeira de balanço vazia no terraço e a sua cadeira junto à mesa de cear que ninguém tinha coragem de sentar-se nelas durante meses, depois do seu falecimento.
Minha mãe às vezes se saia com umas "crenças da Idade Media" e quando via a cadeira de balanço se mover (pela brisa) dizia: Papa que nos visita. Quando caia um prato, um copo ou qualquer outra coisa na cozinha e fazia barulho, dizia: Papa está querendo transmitir algo que não teve tempo de nos comunicar quando moribundo.

 Minha tia Dina que era meio supersticiosa pediu um encontro com a "vidente" Madame Jael da Rua Visconde de Goiana, para botar em "pratos limpos" estas coisas que insinuava minha mãe a "três por quatro".

Agora vá conseguir um encontro com ela de hoje para amanhã. Era impossível.

A fila de gente já começava as 4 da madrugada e não terminava nunca.

Um encontro com ela pelos caminhos normais poderia levar pelo menos três meses.

Com tudo isso resolveram marcar este encontro e pagaram algo adiantado.

Entretanto minha tia Dina mais seu irmão o tio Jorge "o sertanejo", resolveram ir falar com o Senhor Arigó, outro vidente e curador de doentes incuráveis em Belo Horizonte. Dito e feito.

Custou os "tubos", a viagem de ônibus (carro leito) e o que cobrava o senhor Arigó pela seção extraordinária com o alem.

Voltaram de avião, pois não aguentariam outra viagem de ônibus de volta ao Recife.

Estavam muito desapontados com o que revelou o "feiticeiro", o tal "Arigó de galochas". Assim o chamavam os laicos, pois andava em casa com um "guarda pó e de galochas".

Dizia ele entre outras, que o "imortal Joseph" está bem instalado, muito satisfeito e que ainda não mandou mensagem nenhuma.

O que está acontecendo no casarão eram "capetas" mandados pelo satanás para espantar a vocês e nada mais!

Levem este frasco de "água benta" e gotejem algumas gotas em cada quarto sem deixar nenhum.

Estes "capetas", no mesmo dia fugirão e nunca mais vos importunarão! Eles têm terror à Água Benta do Jordão.

Agora vá saber se esta água é do Rio Jordão na Palestina ou de uma torneira da cidade Campos de Jordão em Minas, eu acho que é desta ultima. O preço era igual a uma dúzia de garrafas de Uísque irlandês.

Ao voltar de Minas relataram para toda família a decepção total e a "safadeza" deste vidente "de pés descalços", desculpem de galochas.

Tudo estória para "boi dormir", mas aqui está o frasco que ele mandou para gotejar em todas as dependências da casa e a paz celestial voltará a reinar no nosso casarão, pois tudo que está acontecendo é um produto de "mau olhado" de gente invejosa!


Meu pai que não era muito crente nessas coisas ria como se tivesse assistindo a comedia divina e murmurava em iídiche:

"Tipshim, machen zich hoizik", (Tolos, imbecis, estão se ridicularizando).

Minha mãe depois de uns dias que o nego Capitulino fez uma limpeza geral na casa toda foi e pingou em todas as dependências, água benta da garrafa mandada pelo Arigó e que custou uns bons contos de reis.

Meu pai até hoje ri desta idiotice e diz, "tolos não morrem nunca, sempre existirão outros, para cair nestas esparrelas".

Depois disso, como um milagre, a calma voltou a reinar no casarão da Rua Gervásio Pires.


A luz dos acontecimentos resolveu-se não ir ao encontro com a tal madame Jael, mesmo perdendo o pagamento em adiantado que fizeram para garantir este encontro. Se o de galochas não vale nada que dirás esta madame da Rua Visconde de Goiana, na entrada da Ilha do Leite.

Pronto, fim de crendices idiotas, tudo voltou a girar em torno do eixo normal da vida.


Agora ficou vazio o sótão do falecido e a casa sem assombrações.



Foi aí que me veio à idéia de instalar-me lá.
Deixar o andar térreo onde antes habitava, controlado a cada instante pela família e até as empregadas muitas vezes eram quem semeavam encrencas (discórdias em nordestino) com meus pais e eu "pagava o pato", (eterno culpado, o "bode expiatório").
Elas reclamavam para minha mãe ou tia Dina quando ainda morava conosco:
-"Ele escondeu o nosso fumo e os cachimbos"...
- "Peguei ele espiando (olhando, em nordestino) por baixo da porta nós nuinhas tomando banho"...
-"Ele emborcou uma caixinha inteira de pimenta do reino no nosso feijão"....
- "Esse menino faz muita traquinagem, entra com os pés cheios de lama depois de nós lavarmos o chão da saleta e da cozinha"...
Eram queixas sem "pé nem cabeça" e que não tinham fim e minha mãe sempre dava razão a elas.

-Agora minha gente, vou-me embora lá pra cima, vou viver no sótão e lá faço o que quiser e nem quero ver mais vocês!
Quero ver quem vai escrever ou ler os recados dos namorados de vocês, né? A quem vocês vão pedir agora, eu não quero nem ouvir mais!!!
Porém para esta proeza deveria receber o consentimento de meus pais.

Uma noite quando entrei em casa encontrei todos sentados na sala de jantar a minha espera para cear. Fui lavar as mãos e junto à pequena pia sem desviar o olhar para ninguém, como que falando para a parede disse:
-Meus queridos, de amanhã em diante vou morar no sótão de Zeide e sobre isto não quero discussão nenhuma. Tia Dina também já foi morar na "republica de estudantes de enfermaria" da FEB junto do hospital Pedro Segundo. (Preparar enfermeiras alfabetizadas para servir a "Cobrinha Fumando" na Força expedicionária Brasileira, na Europa).

Agora o sótão ficou vazio e eu vou morar lá e fazer dele a minha casa.
Meus pais se entre olharam e me miraram espantados e com certa admiração, pois sentiram com certeza que estou "ficando gente grande" e este era o meu "Grito de Independência" ainda muito antes de completar os 13 anos.
Sem nenhuma discussão, reinou um silencio quase sepulcral e minha mãe exclamou:
-Amanhã mesmo Maria do Carmo (a empregada), fará toda a mudança de tuas coisas para o sótão, agora come o jantar que já deve estar frio.

Minha vida de menino mudou completamente.
De repente fiquei mais independente, trocava as lâmpadas queimadas, reparava as vidraças partidas, estudava e fazia os deveres porque queria e não obrigados por minha mãe, vestia o que me dava na veneta e tomava decisões eu mesmo quando cortar o cabelo, tomar banho, mudar de roupa ou mandar a suja para a lavadeira lavar. Um ser independente! (não totalmente é claro).
Eu ainda usava algumas mordomias no térreo, mas logo subia para o meu mundo particular, muito orgulhoso de mim mesmo.
Acabaram-se os carões (repreensões) por qualquer coisa, eu evitava os contatos com o mundo de baixo ao mínimo necessário e pronto.
Foi o meu avô que com seu sumiço me herdou o primeiro passo da independência e me fez sentir como homem! Aí vô não te esqueço, te agradeço, parece que tu estas olhando pra mim pela clarabóia do telhado cheio de goteiras.

Logo me transformei numa espécie de "fantasma da opera", comecei a explorar todos os quartos, as salas, abria os baús que ainda vieram com a mudança da Áustria na velha Europa.  Os guarda roupas cheios de mostruários, cortes de fazenda, sombrinhas, lista de devedores, passaportes, dezena de chapéus, mas eu procurava uma pistola, besteira de menino. Deve ter alguma arma escondida por aqui, não é possível que não, dizia eu a meus botões.
Aí meu Deus, se encontrar uma pistola daquelas dos filmes de "caubói", virgem Maria, todos meus amigos vão ficar com uma inveja danada. Vou pedir a eles segredo absoluto, pois se isso chega aos ouvidos dos meus pais é bem capaz que me internem numa escola de padres!
Vige, vou ter que ir a procissão carregando santos, servir nas missas do domingo, sabe lá que mais. Nunca festejarei o meu "Bar Mitzva". (Evento judeu comemorado para os jovens de13 anos de idade, quando o menino se torna homem e responsável por suas ações com todos os direitos religiosos deste povo).
Pistola, não achei e quem sabe foi até bom diante do que a imaginação me levou em relação ao castigo que meus pais poderiam impor-me.

Num baú achei muitos livros de atas de reuniões realizadas talvez na Maçonaria ou em alguma organização "clandestina ou subversiva", tudo escrito numa caligrafia linda e talvez só fosse a febril imaginação de um menino vendo mistério em tudo.
Nunca me aprofundei para saber qual a procedência daquele material. Hoje tenho remorsos, pois se soubesse o que continha aqueles escritos, poderia com muito mais categoria relatar o passado desta comunidade.
Hoje só me restam as lembranças do que presenciei e ouvi quando menino e adolescente, as estórias contadas por outrem e os boatos que alimentavam a colônia judaica do Recife que tornavam o seu cotidiano mais interessante e alegre. Eu andava atrás de achar um revolver, menino que queria ser Tom Mix.

Jayme Zimilis foi o primeiro dos meus amigos da infância á visitar-me no sótão. Ele me ajudou a espantar os casais de morcegos que habitavam no telhado, isto fazendo vibrar uma longa vara, dessas de espanador. O "radar" dessas "pestes voadoras" não captavam e se chocavam contra a vara e saiam por qualquer fenda chiando de dor e já não voltavam mais. 
Vocês sabem e que é dormir com morcegos voando em volta da cama? Nem queiram saber, um suplicio.
Depois dessa feliz experiência com a vara, este suplicio acabou de vez. 
Aqui e ali entrava algum morceguinho para visitar a sua antiga moradia, mas logo iam embora. A vara, sempre estava presente encostada num canto da parede para qualquer emergência. Parece que os morcegos aprenderam do famoso "efeito de Pavlov"( o tal reflexo condicionado).   
Me faz até lembrar de um comercial de Detefon contra insetos caseiros, que dizia: "Na sua casa tem baratas? não vou lá. Na sua casa tem formigas? Não vou lá, peço licença pra mandar Detefon no meu lugar". Alguém lembra? Agora quem funciona é a "vara" e os morcegos acabaram de vez. "Na sua casa não tem vara, não vou lá".

Com o tempo vieram os outros amigos, podias sentir a inveja de todos ao ver o que alcancei nesta idade vivendo quase que independente.
Eu no sétimo céu. Me "amostrando"! (termo nordestino para regozijar).
Um dia avisei a todos os amigos na escola que iria transformar uma das salas num local para fazer "experimentos", armar radio de galena, maquina de projeção de cinema e um estúdio de pintura.
Tem lugar para tudo e tempo não falta.
Logo pintei uma parede de branco para a tela de projeção e comecei a procurar como armar uma câmara de cinema de cacos, ferro velho e uma caixa de madeira de sabão, que recebi do senhor Lopes o dono da venda de "Secos e Molhados" na esquina das Ruas Gervásio Pires e da Conceição.  
Nomeei Jaimezinho de sócio e ficamos de falar com Honório nosso vizinho de defronte que botava todo ano uma "rifa" de venda de fogos na época junina. Ele entendia de muitas coisas, até conseguia captar eletricidade grátis por "indução" dos fios de alta tensão que passavam rente as nossas casas.  Porem sua participação nesta "sociedade de inventores" seria mais adiante, caso encontrássemos dificuldades nos nossos "projetos" futuros.
O primeiro problema não demorou a chegar. Encrencou (complicou em nordestino) com a câmara de passar cinema, então fomos à busca do Honório e propomos a ele ser também sócio dos nossos "projetos e invenções".
Honório veio e olhou a "maquina de passar cinema" que bolamos (inventamos, no linguajar da rua). Uma caixa de madeira, de lado uma janela com dobradiças e fechadura, dentro um lâmpada de 100 velas com interruptor, uma lente que fazia zoom manual dentro de duas latinhas de Pó Royal, uma manivela, polias, correias, tudo que deveria fazer uma "maquina de cinema", mas resultado zero. Que decepção!
Logo de saída tivemos dois problemas:
Primeiro: O calor da lâmpada queimava o filme de celulóide.
Segundo: O filme corria porem as calungas não se moviam na tela.

Honório não titubeou e achou logo soluções para os problemas. Primeiro, afastar a lâmpada do filme e colocar um espelho para aumentar a claridade perdida com o afastamento.
Segundo, introduzir um "corta quadro" que desta forma evita a nossa visão ver quando correm as fotos entre a luz e a lente. Genial, as duas idéias resolveram os problemas e as "calungas" que formavam o elenco da "fita" (filme em nordestino), começaram a se mover na tela.
Pedaços de filmes de verdade conseguíamos com os senhores Sampaio e Álvaro os faxineiros do cinema Politeama na Rua Barão de São Borja e do cine Parque na Rua do Hospício respectivamente. Eles juntavam estes "fitas" sobrantes nas casas de maquina do cinema e queimavam no fim da limpeza, até que um dia descobrimos e fizemos negocio. Eles não mais queimariam e nós compraríamos por uns tostões cada pedaço de metragem dos filmes jogados no lixo.
Sempre eram pedaços curtos, mas nós aprendemos a colar com esmalte de pintar unhas e em pouco tempo já tínhamos um rolo significativo.
Um dia compramos por 2mil reis um desenho animado completo. O maquinista do Cinema Parque se "arretou" (ficou abusado), pois cada 2 minutos o filme se arrebentava, então ele jogou o rolo todo, em pedaços é claro, no lixo. De lá chegou as nossas mãos, com muita paciência colamos tudo de novo, acabamos com duas garrafinhas de esmalte de minha mãe e tivemos que mentir dizendo que não fomos nós "os cineastas" os responsáveis pelo desaparecimento dos ditos cujos.

Este desenho animado era uma estória de um grupo de esqueletos músicos que saiam das covas com seus instrumentos e começavam a tocar e dançar no cemitério, entre as sepulturas.
Este sim, depois dos arranjos que fez Honório, as calungas (esqueletos) se "buliam" na tela que era uma beleza.
Não éramos tão sofisticados, pois musica não acompanhava este "tragicômico desenho animado", mas Jaimezinho propôs trazer uma velha vitrola que estava na garage da sua casa, um par de discos, aqueles de baquelita, uma caixa de agulhas usadas e pronto teria até som no nosso cinema.
Vejam só que "alcance espetacular" chegamos, só com um pequeno atraso de meio século. Mas que importa, estávamos orgulhosos e já nos comparávamos com os estúdios da "Metro Goldwin Maier" de Holiwood, que por acaso também são judeus, estávamos em família.

Comunicamos na escola e vinham muitos amigos e conhecidos ver o milagre daquela caixa de sabão transformada em projetor de cinema com musica e tudo, e bem baratinho, cobrávamos entrada que custava só um cruzado.
Ganhamos um dinheirinho até que o publico raleou e não comparecia mais. Foi nesta situação que passamos a "fabricar" Radio de Galena.
O especialista neste campo era o Honório. Ele fez o primeiro, ensinando a nós que coisas seriam necessárias conseguir e depois como montar.
Outro milagre que historicamente antecedeu ao aparelho de radio com válvulas ou o portátil de pilhas
Esse funcionava sem pilhas ou eletricidade, tudo baseado em cristais de Galena, imãs e bobinados que conseguiam captar as ondas sonoras transmitidas palas estações de radio. Era preciso uma antena arretada de grande e um fio pegado a uma torneira ou cano d'água.
O problema da antena resolvemos com um artefato que Honório conhecia dos seus experimentos anteriores, era só meter num dos orifícios de uma tomada elétrica (evitava passar corrente elétrica) e toda rede do Recife era a nossa antena. Melhor que isso, impossível!

Não dávamos maiores informações sobre o "invento" para não perder a "patente", mas todos que viam o tal milagre, falando e tocando as musicas transmitidas pela Radio Clube De Pernambuco ficavam deveras muito surpresos e não importa se eram meninos ou adultos. Toda tropa de "boca aberta" em volta do radio a Galena e nós no sétimo céu.
Aqui entre nós este "engenho" era do vosso tempo?
A garotada de "papai rico" que podiam pagar 5 mil reis (uma moeda de prata com a esfinge de Santos do Mont) comprava a "maravilha". Nunca antes de deixar bem claro que o tempo de funcionamento nós não garantimos mais de um mês, apesar de que no interior do Estado eles aguentavam muito tempo, não menos que um candeeiro e só um baque (queda) os inutilizava.
Foi vendida pelo menos uma dúzia deles.
Com o tempo Honório foi estudar eletricidade e motores elétricos na Escola Técnica do Derby. Só o víamos quando colocava junto à porta de sua casa a "Rifa" para a venda de fogos juninos. Aí íamos conversar com ele e aproveitávamos para soltar uns "peidos de velha" e quando passavam as garotas, jogávamos entre elas uns "traques de massa", elas saltavam feito cabritas no mato. Eita tempo bom danado!
A "sala dos engenhos" no sótão virou Studio de pintura. Era o tempo que já tínhamos ingressado no movimento socialista juvenil judaico denominado "Hashomer Hatzair" (Jovem Guarda).
Garotos e garotas pertencentes a este movimento vinham visitar o nosso Studio.
Todo o material necessário, assim como, pinceis, tintas, molduras com telas, cavaletes, etc., estavam à disposição dos que queriam se meter na arte da pintura.
Foi o tempo que conhecemos o grupo de artistas plásticos de Abelardo da Hora cujo atelier era na Rua Velha.
Passávamos pelo Largo da Santa Cruz para tomar um copo de caldo de cana bem gelado com um pão doce, num bar da esquina desta praça tão frequentada pela meninada das ruas das adjacências.  
Nas visitas ao atelier de Abelardo íamos aprender a arte da pintura com um grupo que era formado por jovens super talentosos e de ideologia radical vermelha.
O nosso movimento juvenil judaico admirava este grupo porem com uma diferença que nós éramos mais pacíficos e a nossa ideologia vermelha, levava o nosso pessoal no fim do caminho a galgar a pátria dos judeus, Israel. Lá trabalhando duro para produzir alimentos nas terras desérticas que nos herdou o Senhor.
Na realidade iríamos praticar o socialismo nas áreas rurais do país e não mais pichar paredes ou pintar faixas para as demostrações estudantis ou de sindicatos de trabalhadores no Recife.
Em tempo útil seria bom lembrar que a Segurança Publica do Recife não nos via com bons olhos e até "batidas" eram realizadas nos nossos centros de reunião, studio ou mesmo na casa dos lideres procurando algum material subversivo.
Alguns artistas deste grupo (de Abelardo da Hora) nos visitavam no nosso sótão, não me lembro se o próprio Abelardo também esteve por lá. A amizade entre os grupos era bastante forte e até uma das nossas pintoras principiantes, Guita, que depois se passou ao grupo de Abelardo, se transformou numa artista de renome nacional.
Ai sótão, sótão bom danado.
Quantos namoros não começaram por lá, os primeiros beijinhos, coisa de namoros inocentes, as vezes não deva certo, ai ficávamos de mau, mas no fim continuávamos amigos. Coisa da mocidade.
Ao entrar na universidade passávamos as noites estudando para as provas. Usávamos o sótão para virar noites em claro, metendo na cabeça o material de ensino superior. Era uma "decoreba danada" (decorávamos, memorizávamos)  o assunto, mesmo sem entender patavina (nada), o importante era tirar uma boa nota e passar de ano.
Minha mãe mandava com a empregada os lanches para meus amigos, os estudantes noturnos. Era café e sanduíches e sempre perguntava se queremos algo mais. Estes lanches noturnos eram lembrados muitos anos depois quando por acaso encontrava amigos do passado já formados e exercendo a profissão de agrónomo pelo Brasil afora.
Como também o meu irmão mais novo enveredou na mesma profissão, então o
ritual continuava da mesma maneira, virando noites estudando e deliciando os lanches noturnos preparados pela mamãe.
Derrubaram o casarão depois que toda nossa família viajou para Israel.

Fim da serie "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ".
Todos os direitos autorais registrados.
Cuidem com os créditos