domingo, 6 de abril de 2014

A VENDA DE PATOS E PERUS

 A venda de patos
(Trecho 6 da novela: UM AMOR IMPOSSÍVEL)  



                                        Fotos Google, Internet
Paulo Lisker
Israel.
                        
                                 
Noutra visita no sábado, o céu estava muito anuviado e parecia aquele "chove não chove", caracteristico dessa zona do agreste de Pernambuco.
A saída do coronel mais Abelardo na charrete depois do café da manhã foi curta neste sábado. 
Foram acompanhar a venda dos patos e perus.
Os compradores chegaram logo cedo e sem perder tempo se puseram a trabalhar.
Faziam um cercado rústico de sacaria velha e pegavam as aves pelas patas com um arame dobrado na ponta.
O sistema era muito simples e funcionava com o mínimo de ferimentos das aves.
As juntas de bois atrelados ás carroças, com os engradados de cipó, estavam esperando na sombra das velhas árvores de Trapiá .
A coisa foi rápida e assim também o pagamento.
Um total de 25 contos de réis que não era suficiente nem para pagar a mão de obra e depois também o milho e o farelo comprado na Casa Agrária, em Triunfo. 
Mas como já lembrado antes, a criação de patos era uma tradição no "Ipê Roxo", ainda nos tempos dos avós e assim continua até hoje em dia.
Dois patos e um peru aleijados, resultado deste "pega pega", ficaram para os trabalhadores fazerem um baita almoço que só gente rica naquele tempo podia se dar a esse luxo.
Nos dias de venda o almoço dos trabalhadores do ramo em apreço sempre recebia um bom suplemento alimentar. 

Antes da "caravana de patos" seguir o seu destino nos carros de boi "chiando" pelos caminhos do agreste afora, o coronel, para comemorar o evento abria uma garrafa de "cachaça de cabeça" das boas e cada um dos envolvidos na venda dava uns goles.
Dizem que o pessoal de campo em Triunfo, toma seu golezinho em qualquer oportunidade, "quando esfria o ar é para se esquentar e quando faz calor é para se esfriar" então numa oportunidade como esta em que todos saíram satisfeitos, mais ainda.
 Sempre existem as necessárias condições para uma "bicada" (goles de cachaça). 
O coronel agradeceu a todos pelo trabalho rápido e bem feito e os desejou boa sorte nas vendas.
Se montaram na charrete e voltaram para a casa grande.
De longe mesmo, já muito afastados, ainda se ouvia o chiado dos carros de boi acompanhado do som do chocalho (sineta rustica feita no campo) que ia pendurada no pescoço de alguns deles. Parecia mais uma sinfonia caracteristica desta região que ficaria para eternidade e que poeta nenhum ou compositor conseguiu colocar em pauta musical ou a fazer passar pelas notas musicais. Quem sabe um dia o farão.
No alpendre da Casa Grande, como de costume, as duas senhoras os esperavam para um pequeno lanche.
Desta vez era  refresco de graviola e fatias de torta de abacaxi, coisas que dona Genoveva era exímia no seu preparo.

No dia seguinte sentavam depois do café na sala de visitas a ler os jornais que Dadinho trazia todo sábado para o Ipê Roxo.
Depois do almoço os dois homens foram descansar nas redes do alpendre e dona Genoveva com Susana foram trocar a agua das quartinhas para outras mais recentes.
Nunca despejavam a agua em vão, as 10 ou 12 quartinhas elas despejavam na horta caseira que estava pertinho da cozinha da casa grande. Nesta horta vegetava tudo que era verdura e condimentos típicos para o preparo da comida crioula do pessoal da casa grande, das empregadas e servidores da fazenda.
O coronel cochilou e assim também Dadinho.
 O importante nesta visita foi a conversa "meia estranha" na noite de ontem.
Conversa vai conversa vem, aí o coronel disse para Dadinho:
Olha menino, agora que somos quase família, vou te contar uma coisa inacreditável, mas eu tenho prova dela.
Um belo dia veio bater aqui um senhor barbudo com uma touca preta na cabeça.
Vinha munido de uma carta de recomendação de um dos poucos judeus conhecidos em Maceió (pode ser que haviam outros mas viviam escondendo sua religião), o senhor Don Isaac Toledano, casado com dona Fortuna Mariscal de descendencia espanhola e cristã de corpo e alma.
A família Toledano, tradicional, cujos antepassados vieram fugidos da famigerada Inquisição na Espanha, primeiro vieram fugitivos para o Peru, e se instalaram em Iquitos na selva amazônica deste país.
 A situação de Don Isaac piorou com o seu casamento já aqui no Brasil com a cônsuleza honoraria da embaixada espanhola no Recife.
Nem os pais dela nem os dele eram a favor dessa amizade que depois virou amor de verdade e vivem até hoje amigados e sem status formalizado.
Ele era o proprietario da maior joalharia de Maceió, "As Esmeraldas".
Gente boa, muito prestativo.
Eu o conheci quando estive viajando a negócios para vender parte das terras do Ipê Roxo. 
Lá comprei as alianças para o meu casamento e jóias lindas, incrustadas com águas marinhas e esmeraldas lindíssimas.
Mas voltando á "vaca fria".
- Esse barbudo se apresentou dizendo que através da recomendação de Don Isaac  veio pedir a minha colaboração para realizar a sua tese na universidade de Paduá na Itália.
Dadinho escutava a estoria como se estivesse hipnotizado, nem piscava, só engolia em seco.
Continuou o coronel a estoria:
-Veja meu senhor, eu não sou letrado, me explique o que o senhor quer exatamente. 
Aí o barbudo se apresentou:
- Estimado coronel Barbosa, eu me chamo Licenciado Efraim Flores Castanheiras, sou de descendencia portuguesa no passado longínquo e judeu!
Meus antepassados fugiram de Portugal no tempo da Inquisição e foram viver na Itália, meus pais foram a ultima geração na Itália, eu mesmo nasci lá.
Passados muitos séculos meus pais resolveram voltar para Portugal e voltamos a  viver na região de Trás Montes, onde no passado nossos longínquos  antepassados tinham propriedades e pequenos vinhedos para produzir o vinho para a Pascoa dos judeus ("Yain Kasher le Peissach", em hebraico), que em todo o processo da produção tem que ser manuseado por judeus unicamente, caso não, fica inutilizado, ("nessach" em hebreu).
Claro que com o passar dos séculos, ao voltarmos da Itália para Trás Montes,  dos pertences da minha família não ficou mais nada!
Meus pais preferiram terminar as suas vidas onde viveram seus antepassados. Nos fomos a ultima geração na Itália. Voltei com meus irmãos e irmãs e passamos a viver em Portugal, daí o meu português, o senhor me entende bem?
-Entendo, entendo. Respondeu o coronel.
Pois bem, continua o barbudo Senhor Efraim (da touca na cabeça).
- Atualmente estudo na Itália e agora estou na etapa de apresentar minha tese para o  doutorado.
O tema que escolhi foi "A Presença e Influencia dos Cristãos Novos (ou Marranos, como pejorativamente denominavam os judeus naqueles tempos dos descobrimentos), na América Latina e Principalmente no Nordeste Brasileiro".

Estes Cristãos Novos, senhor coronel, foram judeus que os obrigaram no passado na península Ibérica a converter-se ao cristianismo, para continuarem suas vidas normalmente. 
Os que se negaram foram torturados e queimados em praça publica.
Então na primeira oportunidade fugiram com o roupa do corpo e dinheiro (se tinham), para qualquer lugar seguro do mundo onde não pairava o perigo do extermínio.  
Hoje como estudante na Itália, ainda escuto "sussurros " persistentes,  que no tempo das perseguições aos judeus, também à família de Colombo, o navegante veneziano, foi vitima pois era de origem judaica.
Assim contam, que um irmão de Colombo se rebelou  contra a conversão forçada, a Santa Sé o condenou como herege e foi queimado em praça publica.
Se é verdade não sei, cabe a alguém que se interessa, fazer uma pesquisa seria neste sentido.
Muitos desses foragidos da Inquisição vieram bater no Brasil, em especial no nordeste brasileiro. Como chegaram esses descendentes de judeus ao Brasil?
Segundo as cartas que ficaram arquivadas, assim como, documentos da Casa Real Portuguesa encontrados na Torre do Tombo, se têm detalhadas informações sobre quem vinham nas naves de Cabral e os seus sucessores, e não se surpreenda senhor coronel, esses eram: soldados, degredados e judeus!  
Eu já estou rodando para coletar estas informações quase 3 meses e tudo financiado pela universidade de Pádua, pois ela também tem um grande interesse em estar  entre as primeiras a publicar descobertas sui generis  deste emocionante tema.
Estive no Peru, nas ilhas do Caribe e no Brasil comecei pela Bahia, Parahiba, Alagoas e agora em Pernambuco.
Em Alagoas recebi esta informação que o senhor coronel poderia me "dar uma mãozinha" em detectar remanescestes desses Cristãos Novos" na área.
Vou lhe confessar uma coisa, em todos os lugares encontrei cemitérios dessa gente, exclui o Brasil.
O senhor sabe e se não sabe lhe conto, que essa gente tem em todo tanto do mundo o seu próprio cemitério, é questão de tradição religiosa milenar.
Dentro das selvas amazônicas do Peru ou nas ilhas do Caribe (até em Moçambique, na costa leste da Africa), encontrei sepulturas com os nomes em hebraico, datas de nascimento e óbito, filiação e até a origem da família.
Para minha grande surpresa, nas áreas que visitei, e estamos falando da mesma época da chegada dos judeus fugidos da Península Ibérica, no Brasil, até agora  não encontrei uma lapide sequer.
Meu Deus, como se explica isso senhor coronel?
Por um lado dizem que a influencia desses judeus no Brasil foi mais acentuada que em qualquer outra parte do "novo mundo", como é possível que não haja restada uma laje sequer, nem "pra remédio"?
Para mim é ainda um mistério a desvendar e quem sabe o senhor coronel vai me ajudar.
O coronel medita e se sai com esta:
-Olhe aqui licenciado Senhor Castanheiras, de cemitério eu não sei bulhufas!
Nunca ouvi falar nem vi pela região um cemitério  para um determinado tipo de gente, ainda mais exclusivo para os judeus! Nunca.
Aqui é praxe enterrar todos os defuntos no mesmo cemitério.
Pensando bem vou lhe fazer uma pequena surpresa para que não tenha perdido sua viagem e seu tempo aqui no Ipê Roxo.
Escute bem, a minha família paterna parece que tem alguma coisa a ver com a historia que o senhor investiga.
O nome original dos meus antepassados longínquos não foi  Barbosa e sim Barbur. Me disse um senhor da colônia judaica do Recife, quando por lá andei comprando uns remédios que aqui não achei, que este nome Barbur significa Cisne em hebraico, se é verdade não sei!  
Saberia vosmecê? Acho que trocaram numa determinada situação em que o "fogo estava beirando os seus pés"na Península Ibérica, assim acho, também não estou muito certo disso!
Fugiram, não sei se para Grécia ou Turquia, pois nunca me interessei por demais saber estes detalhes e eles também nunca deram informações precisas.
O visitante estava realmente surpreendido por ter encontrado finalmente no nordeste, uma pessoa que "abre o jogo" e se declara que no tempo dos patriarcas, à muitas gerações atrás, possivelmente seria descendente de uma  familia  de judeus. Ele quis abraça-lo mas se conteve.
O coronel continua sua narração.
Dadinho, sentado tenso para saber como seria o desfecho deste drama.
Diz o coronel para Dona Genoveva:
-Minha querida, sirva uma limonada para o nosso visitante e prepara um quarto para ele pernoitar, pois a esta hora pode ser perigoso voltar para a cidade.
Vou buscar para o senhor ver, uma caixa que tínhamos durante anos e anos guardada no "quarto escuro", era assim chamado pois não tinha janelas e sempre estava na penumbra, nós ás vezes guardávamos presuntos, garrafas de vinho, coisas que precisam não sofrer muitas alterações de temperatura.
Sente aí, esteja a vontade, a casa é sua ! (hospitalidade nordestina ou não?).
Tome com calma o seu refresco e coma umas passas de caju, feito pela minha Genoveva. Isto será pra enganar o estômago até chegar a hora da ceia, tá bom?

Quando o coronel se foi trazer a tal caixa, o Licenciado tentou trocar algumas palavras em italiano com Dona Genoveva quando trouxe o lanche para ele, porem sentiu que ela não estava interessada.
Tudo que era o passado com o judaísmo da família do marido não lhe "passava bem pela goela".
O coronel voltou com a caixa fechada e toda empoeirada.
Com um espanador limpou a tampa da caixa e a abriu!
Os olhos do visitante estavam esbugalhados de ansiedade, como se fosse sair da caixa os tesouros perdidos do Templo Sagrado de Jerusalém, que se procuram por mais de 2000 anos e ninguém até hoje sabe aonde estão. Será que agora nesse fim da tarde, iriam encontra-lo em Triunfo de Pernambuco?
-Isto com certeza pertenceu aos meus antepassados diz o coronel tirando peça por peça, com o máximo cuidado.
Em que geração foi utilizado e para que foi utilizado não tenho a mínima ideia. Aqui no Brasil eles estavam fechados nesta caixa e nunca tiveram algum uso normal ou ritual.
 O licenciado Efraim Flores Castanheiras, suava frio, sentou-se na poltrona de vime e chorava como uma uma criança.
"Achei o meu passado, achei o meu passado",   murmurava entre um soluçar e outro! ( sussurrava em hebraico no sotaque "sefaradí": matzati et avarí, matzati et avarí, Adonai, avarí nimtza gam can...)

PAULO LISKER, Israel, novembro 2010.


Cuidem os créditos.