A venda de patos
(Trecho 6 da novela: UM AMOR IMPOSSÍVEL)
Fotos Google, Internet
Paulo Lisker
Israel.
Israel.
Noutra visita no sábado, o
céu estava muito anuviado e parecia aquele "chove não chove",
caracteristico dessa zona do agreste de Pernambuco.
A saída do
coronel mais Abelardo na charrete depois do café da manhã foi
curta neste sábado.
Foram acompanhar a
venda dos patos e perus.
Os
compradores chegaram logo cedo e sem perder tempo se puseram a
trabalhar.
Faziam um cercado rústico
de sacaria velha e pegavam as aves pelas patas com um arame dobrado
na ponta.
O sistema era muito simples
e funcionava com o mínimo de ferimentos das aves.
As juntas de bois
atrelados ás carroças, com os engradados de cipó, estavam esperando na
sombra das velhas árvores de Trapiá .
A coisa foi rápida e assim
também o pagamento.
Um total de 25 contos de
réis que não era suficiente nem para pagar a mão de obra e depois
também o milho e o farelo comprado na Casa Agrária, em
Triunfo.
Mas como já lembrado antes,
a criação de patos era uma tradição no "Ipê Roxo", ainda
nos tempos dos avós e assim continua até hoje em dia.
Dois patos e um
peru aleijados, resultado deste "pega pega", ficaram
para os trabalhadores fazerem um baita almoço que só gente
rica naquele tempo podia se dar a esse luxo.
Nos dias de venda o almoço
dos trabalhadores do ramo em apreço sempre recebia um bom suplemento
alimentar.
Antes da "caravana de
patos" seguir o seu destino nos carros de boi "chiando"
pelos caminhos do agreste afora, o coronel, para comemorar o
evento abria uma garrafa de "cachaça de cabeça" das boas
e cada um dos envolvidos na venda dava uns goles.
Dizem que o pessoal de
campo em Triunfo, toma seu golezinho em qualquer oportunidade, "quando
esfria o ar é para se esquentar e quando faz calor é para se esfriar"
então numa oportunidade como esta em que todos saíram satisfeitos, mais ainda.
Sempre existem as
necessárias condições para uma "bicada" (goles de cachaça).
O coronel agradeceu a todos
pelo trabalho rápido e bem feito e os desejou boa sorte nas vendas.
Se montaram na charrete e
voltaram para a casa grande.
De longe mesmo, já muito
afastados, ainda se ouvia o chiado dos carros de boi acompanhado do som do
chocalho (sineta rustica feita no campo) que ia pendurada no pescoço de alguns
deles. Parecia mais uma sinfonia caracteristica desta região que ficaria
para eternidade e que poeta nenhum ou compositor conseguiu colocar em
pauta musical ou a fazer passar pelas notas musicais. Quem sabe um dia o
farão.
No alpendre da Casa
Grande, como de costume, as duas senhoras os
esperavam para um pequeno lanche.
Desta vez
era refresco de graviola e fatias de torta de abacaxi, coisas que
dona Genoveva era exímia no seu preparo.
No dia
seguinte sentavam depois do café na sala de visitas a ler os jornais
que Dadinho trazia todo sábado para o Ipê Roxo.
Depois do almoço os dois
homens foram descansar nas redes do alpendre e dona Genoveva com Susana
foram trocar a agua das quartinhas para outras mais recentes.
Nunca despejavam a agua em
vão, as 10 ou 12 quartinhas elas despejavam na horta caseira que estava pertinho
da cozinha da casa grande. Nesta horta vegetava tudo que era verdura e
condimentos típicos para o preparo da comida crioula do pessoal da casa grande,
das empregadas e servidores da fazenda.
O coronel cochilou e
assim também Dadinho.
O importante nesta visita
foi a conversa "meia estranha" na noite de ontem.
Conversa vai conversa
vem, aí o coronel disse para Dadinho:
Olha menino, agora que
somos quase família, vou te contar uma coisa inacreditável, mas eu tenho prova dela.
Um belo dia veio bater aqui
um senhor barbudo com uma touca preta na cabeça.
Vinha munido de uma
carta de recomendação de um dos poucos judeus conhecidos em Maceió (pode ser
que haviam outros mas viviam escondendo sua religião), o senhor Don Isaac
Toledano, casado com dona Fortuna Mariscal de descendencia espanhola e cristã
de corpo e alma.
A família
Toledano, tradicional, cujos antepassados vieram fugidos da famigerada
Inquisição na Espanha, primeiro vieram fugitivos para o Peru,
e se instalaram em Iquitos na selva amazônica deste país.
A situação de Don
Isaac piorou com o seu casamento já aqui no Brasil com a cônsuleza
honoraria da embaixada espanhola no Recife.
Nem os pais dela nem os
dele eram a favor dessa amizade que depois virou amor de
verdade e vivem até hoje amigados e sem status formalizado.
Ele era
o proprietario da maior joalharia de Maceió, "As
Esmeraldas".
Gente boa, muito
prestativo.
Eu o conheci
quando estive viajando a negócios para vender parte das terras do Ipê
Roxo.
Lá comprei as alianças para
o meu casamento e jóias lindas, incrustadas com águas marinhas e esmeraldas lindíssimas.
Mas voltando á "vaca
fria".
- Esse barbudo se apresentou
dizendo que através da recomendação de Don Isaac veio pedir a
minha colaboração para realizar a sua tese na universidade de Paduá na
Itália.
Dadinho escutava a estoria
como se estivesse hipnotizado, nem piscava, só engolia em seco.
Continuou o coronel a
estoria:
-Veja meu senhor, eu
não sou letrado, me explique o que o senhor quer exatamente.
Aí o barbudo se apresentou:
- Estimado coronel
Barbosa, eu me chamo Licenciado Efraim Flores Castanheiras, sou de
descendencia portuguesa no passado longínquo e judeu!
Meus antepassados fugiram
de Portugal no tempo da Inquisição e foram viver na Itália, meus pais
foram a ultima geração na Itália, eu mesmo nasci lá.
Passados
muitos séculos meus pais resolveram voltar para Portugal e
voltamos a viver na região de Trás
Montes, onde no passado nossos longínquos antepassados tinham propriedades e
pequenos vinhedos para produzir o vinho para a Pascoa dos judeus ("Yain
Kasher le Peissach", em hebraico), que em todo o processo da produção tem
que ser manuseado por judeus unicamente, caso não, fica inutilizado, ("nessach"
em hebreu).
Claro que com
o passar dos séculos, ao voltarmos da Itália para Trás Montes, dos pertences da minha família não ficou mais
nada!
Meus pais preferiram
terminar as suas vidas onde viveram seus antepassados. Nos fomos a
ultima geração na Itália. Voltei com meus irmãos e irmãs e passamos a viver em
Portugal, daí o meu português, o senhor me entende bem?
-Entendo, entendo. Respondeu o coronel.
Pois bem, continua o
barbudo Senhor Efraim (da touca na cabeça).
- Atualmente estudo na
Itália e agora estou na etapa de apresentar minha tese para o doutorado.
O tema que escolhi foi
"A Presença e Influencia dos Cristãos Novos (ou Marranos, como
pejorativamente denominavam os judeus naqueles tempos dos descobrimentos), na
América Latina e Principalmente no Nordeste Brasileiro".
Estes Cristãos Novos,
senhor coronel, foram judeus que os obrigaram no passado na península
Ibérica a converter-se ao cristianismo, para continuarem suas vidas normalmente.
Os que se negaram
foram torturados e queimados em praça publica.
Então na primeira
oportunidade fugiram com o roupa do corpo e dinheiro (se tinham), para
qualquer lugar seguro do mundo onde não pairava o perigo do
extermínio.
Hoje como estudante
na Itália, ainda escuto "sussurros " persistentes,
que no tempo das perseguições aos judeus, também à família de Colombo, o
navegante veneziano, foi vitima pois era de origem judaica.
Assim contam, que um irmão
de Colombo se rebelou contra a conversão forçada, a Santa
Sé o condenou como herege e foi queimado em praça publica.
Se é verdade não sei, cabe
a alguém que se interessa, fazer uma pesquisa seria neste sentido.
Muitos desses foragidos da
Inquisição vieram bater no Brasil, em especial no nordeste brasileiro. Como
chegaram esses descendentes de judeus ao Brasil?
Segundo as cartas que
ficaram arquivadas, assim como, documentos da Casa Real Portuguesa encontrados
na Torre do Tombo, se têm detalhadas informações sobre quem vinham nas naves de
Cabral e os seus sucessores, e não se surpreenda senhor coronel, esses eram: soldados, degredados e judeus!
Eu já estou rodando para
coletar estas informações quase 3 meses e tudo financiado pela universidade de
Pádua, pois ela também tem um grande interesse em estar entre as
primeiras a publicar descobertas sui generis deste emocionante tema.
Estive no Peru, nas ilhas
do Caribe e no Brasil comecei pela Bahia, Parahiba, Alagoas e agora em
Pernambuco.
Em Alagoas recebi esta
informação que o senhor coronel poderia me "dar uma mãozinha" em
detectar remanescestes desses Cristãos Novos" na área.
Vou lhe confessar uma
coisa, em todos os lugares encontrei cemitérios dessa gente, exclui o Brasil.
O senhor sabe e se não
sabe lhe conto, que essa gente tem em todo tanto do mundo o seu próprio cemitério,
é questão de tradição religiosa milenar.
Dentro das selvas
amazônicas do Peru ou nas ilhas do Caribe (até em Moçambique, na costa leste da
Africa), encontrei sepulturas com os nomes em hebraico, datas de
nascimento e óbito, filiação e até a origem da família.
Para minha grande surpresa,
nas áreas que visitei, e estamos falando da mesma época da chegada dos judeus
fugidos da Península Ibérica, no Brasil, até agora não encontrei uma lapide sequer.
Meu Deus, como se explica
isso senhor coronel?
Por um lado dizem que
a influencia desses judeus no Brasil foi mais acentuada que em qualquer
outra parte do "novo mundo", como é possível que não haja restada uma laje sequer, nem "pra remédio"?
Para mim é ainda um
mistério a desvendar e quem sabe o senhor coronel vai me ajudar.
O coronel medita e se sai
com esta:
-Olhe aqui licenciado
Senhor Castanheiras, de cemitério eu não sei bulhufas!
Nunca ouvi falar nem vi
pela região um cemitério para um determinado tipo de gente, ainda
mais exclusivo para os judeus! Nunca.
Aqui é praxe enterrar todos os
defuntos no mesmo cemitério.
Pensando bem vou lhe fazer
uma pequena surpresa para que não tenha perdido sua viagem e seu tempo aqui no
Ipê Roxo.
Escute bem, a minha família
paterna parece que tem alguma coisa a ver com a historia que o senhor
investiga.
O nome original dos
meus antepassados longínquos não foi Barbosa e sim Barbur. Me disse um
senhor da colônia judaica do Recife, quando por lá andei comprando uns remédios
que aqui não achei, que este nome Barbur significa Cisne em hebraico, se é
verdade não sei!
Saberia vosmecê? Acho que trocaram numa
determinada situação em que o "fogo estava beirando os seus
pés"na Península Ibérica, assim acho, também não estou muito certo disso!
Fugiram, não sei se para
Grécia ou Turquia, pois nunca me interessei por demais saber estes detalhes e
eles também nunca deram informações precisas.
O visitante estava
realmente surpreendido por ter encontrado finalmente no nordeste, uma
pessoa que "abre o jogo" e se declara que no tempo
dos patriarcas, à muitas gerações atrás, possivelmente seria
descendente de uma familia de judeus. Ele quis abraça-lo mas se
conteve.
O coronel continua sua
narração.
Dadinho, sentado tenso
para saber como seria o desfecho deste drama.
Diz o coronel para
Dona Genoveva:
-Minha querida, sirva uma
limonada para o nosso visitante e prepara um quarto para ele pernoitar, pois a
esta hora pode ser perigoso voltar para a cidade.
Vou buscar para o senhor
ver, uma caixa que tínhamos durante anos e anos guardada no "quarto
escuro", era assim chamado pois não tinha janelas e sempre estava na
penumbra, nós ás vezes guardávamos presuntos, garrafas de vinho, coisas que
precisam não sofrer muitas alterações de temperatura.
Sente aí, esteja a vontade,
a casa é sua ! (hospitalidade nordestina ou não?).
Tome com calma o
seu refresco e coma umas passas de caju, feito pela minha Genoveva.
Isto será pra enganar o estômago até chegar a hora da ceia, tá bom?
Quando o coronel se foi
trazer a tal caixa, o Licenciado tentou trocar algumas palavras em italiano
com Dona Genoveva quando trouxe o lanche para ele, porem sentiu que ela não
estava interessada.
Tudo que era o passado com
o judaísmo da família do marido não lhe "passava bem pela
goela".
O coronel voltou com a
caixa fechada e toda empoeirada.
Com um espanador limpou a
tampa da caixa e a abriu!
Os olhos do visitante
estavam esbugalhados de ansiedade, como se fosse sair da caixa os
tesouros perdidos do Templo Sagrado de Jerusalém, que se procuram por
mais de 2000 anos e ninguém até hoje sabe aonde estão. Será que agora
nesse fim da tarde, iriam encontra-lo em Triunfo de Pernambuco?
-Isto com certeza
pertenceu aos meus antepassados diz o coronel tirando peça por peça, com o
máximo cuidado.
Em que geração foi
utilizado e para que foi utilizado não tenho a mínima ideia. Aqui no Brasil
eles estavam fechados nesta caixa e nunca tiveram algum uso normal ou ritual.
O licenciado Efraim
Flores Castanheiras, suava frio, sentou-se na poltrona de vime e chorava como
uma uma criança.
"Achei o meu passado,
achei o meu passado", murmurava entre um soluçar e outro! (
sussurrava em hebraico no sotaque "sefaradí": matzati et avarí,
matzati et avarí, Adonai, avarí nimtza gam can...)
PAULO
LISKER, Israel, novembro 2010.
Cuidem os créditos.