Aula de Agrostologia (pastos), anos 50 na ESAP
ESAP-Escola superior de agricultura de Pernambuco
Foto do autor da crônica.
No tempo do Recife matuto
Agronomia (parte
2)
Tema: "NA
COVA DOS LEÕES"
Paulo Lisker
Israel
Como não tinha
outro jeito mesmo, tomei coragem e um calmante e numa noite dessas entrei na
"cova dos leões" (A sala de visitas onde costumavam sentar para
conversar os patriarcas membros da família).
Do lado de fora
chovia copiosamente, trovejava e relampejava no Recife.
É sempre assim
quando temos que tomar uma decisão por demais importante, assim como, que
carreira abraçar e logo comunicar aos nossos pais e família próxima. É "peia"
(muito difícil, no jargão da rua).
A cidade vivia
ameaçada de cheias (inundações) que carregavam o lixo da cidade, automóveis,
mocambos que o interventor Agamenon Magalhães não conseguiu derrubar, mas a
chuva levava sem grandes protestos tudo para o nosso oceano Atlântico das
lindas praias e exuberantes cortinas de coqueirais.
Foi numa dessas
noites que eu "o Spartaco" resolvi enfrentar a família na "cova
dos leões" com o comunicado que iria fazer o concurso para a agronomia.
Virgem Maria me acuda!
Na sala de jantar,
estavam sentados em volta da mesa, meus pais, meu avô, o tio Jorge, apelidado o
"sertanejo", pois grande parte da sua vida de solteiro vivia metido
no mato e vinha nos visitar quando se desocupava das suas fainas e cavalgadas
pelo sertão brabo.
Quando vem o azar
ele vem logo dobrado, deu um "apagão" (corte de energia), meu pai
mais as empregadas saíram correndo e logo trouxeram dois candeeiros (lampiões
de querosene), acenderam velas que sempre estavam de sobre aviso pelos inúmeros
cortes de energia que esta cidade, a capital do nordeste, sofria periodicamente
e colocaram sobre a mesa e noutras dependências do casarão, sempre se desvencilhando
das inúmeras goteiras que ameaçavam apagar as velas. Fecharam as janelas, mode
não deixar a ventania e a chuva entrar na casa. Desse jeito é que ficava um abafado
danado que dificilmente se podia respirar. O cheiro das velas acesas e o fedor
da chama do pavio do lampião de querosene predominavam no ar da sala de visitas.
As sombras das
pessoas se projetavam nas paredes e pareciam monstros imaginários que saíram de
um filme do celebre Hitchcock, ou era a minha imaginação? Sei lá.
O pessoal
conversava sobre o temporal que impediu do meu tio voltar hoje para Cabrobó
onde fazia um projeto com os famosos Coelhos (Família famosa na área ribeirinha
do Rio São Francisco).
As estradas
estavam inundadas, partes destruídas e interditadas para qualquer tipo de
veiculo.
E aqui em casa
estávamos preocupados com as inúmeras goteiras que exigiam uma rápida
intervenção para arrumar o telhado do nosso secular casarão da Gervásio Pires,
ainda antes da chegada do próximo aguaceiro.
No Recife quando chove não faz frio, às vezes muito
pelo contrario é ainda mais abafado e quente.
Tomar chá fervendo com biscoitos como era muito comum
lá em casa, deixou de ser costume nestas ocasiões.
Sem alternativa se passou a tomar chá frio mesmo, era
o famoso mate Leão, que vinha numa caixa de madeira e tinha um cheiro bom
danado.
Sorte que os amigos do meu avô não vinham, pois tinham
medo de resfriados e gripes da "bexiga lixa" que quando pega velho
desprevenido é mesmo de "lascar o cano" (motivo de sérias
complicações).
Este foi o
ambiente com que me deparei ao declarar a minha intenção de estudar agronomia.
Inocentemente pensei que com problemas tão sérios com
o clima e as goteiras o meu assunto seria rapidamente apresentado, resolvido
pacificamente e passado pra adiante sem muita faladeira e crises emocionais.
Quanto errado
estava eu.
Agora não só
chovia a baldes e relampejava, também trovoava que dava até medo. Tudo tremia.
Virgem Maria!
Meu tio Jorge a me
ver perguntou se eu necessitava alguma coisa e logo averiguou se pretendia sair
numa chuva destas.
-Vais sair?
Perguntou.
Caso sim, leva um
guarda chuvas ou uma capa e galochas ta? O aguaceiro não está mole, te cuida
viu? Tem ruas cheias de água, os esgotos entupidos, te aconselho de ficar em
casa e se vais sair calça aquelas botas de borracha que vai até o meio da
canela, viu?
Juro por Deus ao
ver aquele "quatrumviratum", quase desisti de apresentar minha
demanda.
Mas um
"choque elétrico" que me passou por toda coluna vertebral me pôs
novamente consciente e exclamei:
-Preciso de
vinte mil reis para viajar pra Dois Irmãos, amanhã o mais tardar e me inscrever
para o concurso da Escola de Agronomia.
Chovia,
relampejava, trovoava, o calor sufocante, (quem sabe só eu sentia), goteiras
por todo lado, eu suava frio e uma tremedeira danada nas pernas até que me
apoiei num canto da mesa, aí a mesa pesadíssima começou também a sacudir,
depois de uns minutos parou.
Meu avô meio
sarcástico perguntou em iídiche: "Hoste guefilt a kleine
erdtsiternish" (sentiram um pequeno terremoto, será?). Juro que senti a
mesa trepidar, vocês não? Tomou mais um sorvo de chá
frio e se recostou na cadeira de balanço.
Uma situação dessas creia-me, não desejo nem para meus
piores inimigos.
Voltou de repente
à luz!
O
"quatrumviratum" gelou "in loco" como se a etapa do gelo
voltara de repente ao nosso planeta.
Não tenho palavras para descrever as fisionomias dos
meus íntimos familiares sentados em volta da enorme mesa de sucupira, aqui e
ali atacada pelo cupim, inseto daninho sempre presente nas peças de madeira do
nosso querido Recife matuto.
-O que você quer
fazer? Perguntaram em coro meu pai e meu tio.
-Agronomia,
respondi, como se fosse a ultima palavra antes da ordem
"Fogo"!
-Agronomia? Que te
passa rapaz?
Queres ser
jardineiro? Quem te botou na cabeça esta idéia doida!
Meu pai com um
olhar fuzilante:
-Isto não é profissão
para ganhar dinheiro, quem já viu judeu agrônomo, tem disso na nossa
comunidade? Entendo engenheiro, medico, até dentista vai lá, mas agrônomo, onde
foste buscar uma idéia idiota destas?
Minha mãe calada
com cara de velório, mais um pouco teria um chilique.
Meu avô acendeu um
dos seus cigarros Regência, mostrava sinais de nervosismo e logo tomou uma
pitada de rapé, aí passou. Só meu tio Jorge, calmo e sereno "sorria de
fininho" pra ninguém ver, mas eu vi, ou imaginei.
Numa hora dessas
todo sistema nervoso entra em total "pane" e passa a ver coisas que
nunca foram a realidade.
Meu avô tomou a
palavra e disse ao meu pai:
-Não faz caso
Méier (Maurício em iídiche), tu queres criar inimizade com teu filho e ter um
inimigo dentro de casa? Caso o contrárias ele irá viver quatro ou cinco
anos numa republica de estudantes de goim (não judeus) lá nas
"selvas" de Dois irmãos? É isto que você quer?
Ele se afastará de
casa, da família e das tradições judaicas que já são minimalistas, estas que
vocês ainda conservam e transmitem para os meninos.
Tua mulher nunca
permitirá ele viver fora de casa. Então dorme com o problema e amanhã quem sabe
pensarás de uma forma mais abalizada.
Aqui não é como
nos "shteitel" (aldeias no interior do leste europeu) em que a voz
dos anciões era a "voz de Deus" e cumprida ao "pé da letra"
pela jovem geração, sem discussão ou um segundo pensamento.
O jovem judeu
criado no Brasil é um "bicho diferente", livre de tudo que o amarrava
ao passado dos seus pais.
Você mesmo me
disse uma vez que com força não se consegue nada com esta nova geração jovem de
judeus brasileiros, quanto mais duro se pressiona, eles erguem mais a cabeça e
não se entregam. Esquece do "molenga" judeu forjado pelas
perseguições e "progroms" na Europa!
Esta gente é
totalmente diferente e ainda bem que é assim. Gente com opinião própria e de
cabeça erguida e peito estufado. Um judeu diferente daqueles medrosos da Europa
que foram para as câmaras de gás nazistas como um rebanho de ovelhas.
Estes agora
nascidos aqui são da estirpe dos Macabeus ou do Bar Kochba. (heróis do povo
judeu no passado). E graças a Deus que assim é!
Foste tu mesmo que
chegaste a esta conclusão, Maurício. Agora que a "sardinha chegou a tua
brasa", estas esperneando?
Você viu como
reagiu anos atrás meu filho "Tutcho" (meu tio Jorge, o sertanejo de
chapéu de couro e tudo) quando eu quis que ele fosse trabalhar comigo vendendo
prestação nos subúrbios do Recife. Ele me acompanhou uma ou duas vezes e pronto.
Num belo dia ele
encheu uma mochila com seus troços e fugiu de casa.
Só depois de meio
ano ficamos sabendo onde ele perambulava pelo sertão nordestino.
Plantava algodão
no Cariri com a empresa "SANBRA" depois em São Lourenço produzia
"raspas secas de mandioca" para exportar para os países nórdicos da
Europa.
Prestamista
absolutamente nunca quis ser.
Que discussões
tivemos, nada adiantou, no "frigir dos ovos", fez o que achou melhor
para si. Pior de tudo isso, com a idade de 40 anos, nessas suas andanças pelo
interior ainda não casou, na realidade quem quer casar com um andarilho (usou a
palavra andarilho para não usar "vagabundo").
Estás a ver Méier,
não adianta "forçar a barra", porque a "barra" está na mão
dessa gente.
Paciência com o
garoto, que é para não esticar a "corda demais"!
Eita velho sabido este meu avô, falei para meus botões.
-Com todo o
respeito senhor Joseph, mas eu acho que Tutcho, o teu filho que andou dando
maus conselhos e isto foi o catalisador desta precipitada escolha do teu neto
da "raça dos Macabeus". És ridículo, só tu mesmo acreditas nestas
lendas do passado. Macabeus, coisa nenhuma, isso é preguiça de sem vergonha,
ser jardineiro no Recife, uma vergonha perante a comunidade iídiche (judaica),
"Oi hafintstere bishe" (negra vergonha, em iídiche).
Já viu judeu
estudar para agrônomo? Quem na nossa comunidade estudou esta profissão
"dreck" (merda em iídiche). Diga-me, se têm dois ou três, são uns
fracassados que não dariam mesmo para nada, não achas?
-Aí eu entrei em
ação e coloquei:
-Primeiro: meu
irmão mais novo irá para a engenharia, assim como na família de Senha, um
agrônomo e um engenheiro para o bem da família e a honra salva perante a
comunidade israelita.
Porém o destino é matreiro, o segundo filho, meu
irmão, foi no mesmo meu caminho e terminou a agronomia com distinção. Mas quem
poderia saber naquela ocasião de um "desastre" desta natureza.
-Segundo: Não
estou preparado para fazer concurso em outra qualquer universidade. Na semana
passada, mãe me mandou aconselhar com Professor Sino Lazer, um primo de segunda
ou de terceira, não sei bem.
Ele disse que só
tem tempo às 6 da manhã, cambaleando de sono cheguei a sua casa. Sentei junto a
sua escrivaninha, me deu um Polinômio para resolver. Eu não sabia para onde ia
à coisa, depois um Determinante, pior ainda, Me dei por rendido aí ele se
pronunciou: Olha rapaz diz a tua mãe que tu não tens base nenhuma (me
lembro exatamente das suas palavras).
E continuou o seu
veredicto: Eu estou na
banca examinadora no concurso de engenharia e arquitetura, se tu te apresentas
lá eu sou o primeiro a te "por no pau" (desclassificar). Tu não estas
preparado para fazer concurso. Vai para agronomia, quem sabe lá te aprovam.
Então pai, onde a
vergonha para com a comunidade será maior, fazer agronomia ou levar pau noutra
universidade. O que será mais vergonhoso? Levar pau, não é?
-Que
vergonha, diz meu pai. Um menino judeu burro, só se o trocaram
na maternidade do Derby, vá lá saber.
-Pai, a coisa
não é tão preta assim, veja Senha (José Alexandre Ribemboim), está cursando a
agronomia e a família dele não fez uma tragédia como vocês aqui.
Meu pai ainda não
conformado com esta minha decisão sai com essa:
-Senha é filho
de uma família que negocia com ouro e fabrica medalhas, trancelins, pulseiras,
tudo em ouro. No dia que este teu amigo resolver não continuar a estudar ele se
passa a outra universidade. E se resolver não continuar a perder tempo
estudando e não achar emprego vai trabalhar com o pai, tem lugar garantido,
pois quem está metido no ouro, onde cabe um caberá mais um, sem problemas.
Contigo não é a mesma coisa, eu sou prestamista se tu fracassas na agronomia,
queres ser prestamista? Estás a ver a diferença?
-Pai não te
preocupa, eu não vou fracassar. Lá se faz herbário, caixa com insetos espetados
em alfinetes, enxertos de manga, olhar no microscópio pra ver se a folha esta
doente, classificar as famílias das plantas, tu sabes pai a que família
pertence o feijão?
-Pergunte a Josefa
à empregada, ela saberá te dizer, não precisa estudar agronomia para isso.
Meu filho o teu
fim é estar com "as mãos mexendo com merda de vaca e os pés metido na
lama". Este será o teu futuro, uma vergonha para um jovem judeu.
"Puto da vida"
ele continua:
- O povo
judeu a mais de 2000 anos não tem terras, nem plantações, nem bandeira, nem
país, somos um povo errante por perseguições constantes. Ter terras não é
negocio para nós! Ouro, diamantes e sabedoria isto sim é mercadoria que em
qualquer momento de perigo levamos conosco para outro lado onde nos deixam
viver em paz.
Então me dê uma
razão lógica porque por todos os profetas e juizes da Bíblia sagrada, agora
vamos ter agrônomos, para que? Me diz!
Houve uma pausa
nesta discussão, só se ouvia a empregada tirando a louça daqueles que tomavam o
chá frio.
O pessoal se
entreolhava e enxugava o suor, alguém perguntou: Abrir a janela para
deixar entrar um arzinho fresco, aqui dentro a atmosfera já está pesada demais.
Aproveitei a
"dica" (oportunidade, no jargão da rua) e disse em voz alta e
segura: Então vão me dar os vinte mil reis ou não,
depois de tanta verborréia e discussão, perguntei na
maior tranquilidade!
Meu pai ainda
aborrecido:
Graças a Deus que
os estudos são grátis, viva o Brasil, de mim não verás um tostão para esta
profissão de jardineiro de merda.
Logo encerrou a
conversa, tirou a dentadura postiça, colocou num copo deágua com uma pastilha
de sal de frutas desses efervescestes e foi dormir.
Tio Jorge olhou
pra seu pai (meu querido avô), tirou da carteira uma nota de 100 mil reis e me
deu.
Disse-lhe: Não
tenho troco tio.
Ele se riu.
-Alguém aqui falou
em troco tolo. Vai paga a inscrição e com o resto vá limpar a cuca na zona do
Pina seu besta, lá ta cheio de mulatas enxutas uma beleza para este teu estado
de espírito, vai lá menino. Só não conta nada a tua mãe, ela é capaz de não me
deixar mais entrar em casa.
Agora satisfeito
da vida e "realizado", abracei meu tio e meu avô e todos rimos a
beça, vi até uma pequena umidade nos cantos dos olhos do meu Zeide Joseph, esse
avô arretado!
Fim da parte 2
Paulo Lisker.
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