segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Meu avô foi-se embora pra sempre. "Das conversas com meu avô"

                                              Recife do tempo do meu avô
                                                  Foto Google, Internet

"Das conversas com meu avô"
Tema: Meu avô foi-se embora pra sempre.
Paulo Lisker, Israel.

Este capitulo "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ", levou um tempão danado para ser escrito.
Não tive coragem, mesmo depois de velho, me sentar e resumir o seu ultimo período de vida com a família e especialmente comigo que o admirava mais que meus próprios pais. 
Para mim quando garoto, ele é quem deveria ser considerado o "Sol dos Povos" e não Stalin que só trouxe desgraças a sua gente e a humanidade em geral. Já o meu zeide (avô em iídiche), foi "uma mão na roda" ( orientava e ajudava), tanto a mim como aos seus amigos.
Explicação lógica coerente, única, não tenho, era uma amizade sem limites e sem preço. Ele nunca me deu presentes que me lembre, nem dinheiro, pois não dispunha do "metal precioso" em fartura, nem me ensinava para as provas da escola, era admiração, uma amizade pura 24 quilates e pronto.
Desculpem-me a comparação, mas era um "gigante pela sua própria natureza", assim eu o considerava e por tanto esse meu apego a ele.
Tudo que não perguntava a meus pais, recebia deste velho avô a maioria das respostas e quando menino não nos falta o que perguntar é uma faculdade normal de todo ser humano quando jovem. Queremos saber de tudo e nem tudo está escrito no Gibi (revista infantil), nossa literatura predileta.
O tempo não "dá pé" (chance, em linguajar da rua) a velhos. Ele vai minando aos poucos a saúde deles até destruí-la e transformar essa gente, nesse caso, meu avô, numa pessoa que já não tinha mais alegria para viver como antes e vai se acabando "feito uma vela" (a expressão vem do iídiche, "azoi vi a licht").
De vez em quando vinha visitá-lo um amigo ou outro. Ele não era o mesmo homem, o braço direito, este com o eczema, sempre coberto com um talco medicinal, tentava mostrar otimismo para os estranhos, porém sabia muito bem que a coisa não era um "café pequeno"(problema passageiro).
Quem diria que este "gigante", que administrava o seu trabalho vendendo a prazo com dois vendedores nos subúrbios do Recife, terminasse seus dias sentado triste numa cadeira de balanço no terraço do nosso casarão da Rua Gervásio Pires.
Eu menino, vivia rodando em volta dele e tentava encontrar assuntos para conversar e pedir um trago do seu cigarro "Regência" ou uma pitada de rapé.
No tempo que não existia ar condicionado nas casas, pelo menos no terraço a brisa da noite e o cheiro embriagante das camélias e jasmim no nosso quintal formavam um clima ideal para descansar do calorão do Recife durante as horas do dia.
Era nesses momentos que vinham na minha mente as pequenas coisas que fazíamos juntos e disso falávamos quase sempre.
Derrubar uns abacates do secular "pé de pau", cujo tronco quase todo comido pelo cupim. Era um milagre que ainda produzia uma ou duas dúzias de frutos todo ano. Ele com a vara derrubava as frutas e eu com minha esperteza infantil tentava pegá-las ante de caírem no chão.
Depois ele me ensinou o "macete"(artificio), para o abacate amadurecer bem depressa. Para isso tens que "abafá-lo". Isto fazíamos colocando as frutas "inchadas" (uma etapa antes do total amadurecimento), entre os panos no caixão de roupa suja. Com mais 3-4 dias estavam completamente maduros.
Eita fruta boa danada essa do nosso quintal.
Abacate não tem gosto nem cheiro, a polpa verde amarelada feito às cores da bandeira brasileira, uma pena que ela não pode ser a fruta representativa do Brasil, pois é natural do México se não me engano.
Naquela época na nossa casa ele substituía a manteiga no pão da manhã, mais barato e mais sadio.
O que não se faz desta fruta, vitamina com leite, açúcar e gelo no liquidificador (aqueles que já possuía um desses), machucado no garfo, com limão e açúcar para sobremesa, sorvete com leite condensado, ou come-lo diretamente ao natural com ou sem uma colherzinha de açúcar e uns pingos de limão. 
No fim da minha vida fiquei sabendo que o abacate também é usado como verdura na salada com sal e vinagre. Virgem Maria tem mais usos do que a soja.

Outras vezes íamos apanhar (colher) araçás, depois das chuvas.
Eu trepava no pé de pau e ele apontava onde estavam as frutas no emaranhado dos galhos. Eu catava e ele as recebia e colocava numa lata grande de leite em pó. No fim, comíamos um bocado delas e o resto levava para as empregadas não antes que a minha mãe espiando (olhando) pela janela da saleta gritava:
- Não comam tanto araçá "inchado", faz mal, dá dor de barriga e "prisão de ventre", cospe as sementes senão entope as tripas, cuidado. Já viu, o Zeide dando mau exemplo ao neto malcriado. Cuidado menino pra não cair do pé de araçá. Ta tudo molhado da chuva e escorrega pra burro, cuidado menino!
Caso caia um cisco no olho de um de nós a empregada dava uns "sopros" e o cisco caia fora e não voltava mais, era um alivio. Essas empregadas do mato sabiam muitos macetes mesmo. Já viu tirar cisco de olho com sopro? Só nordestino mesmo!
O araçá maduro tem um cheiro muito bom que fruta nenhuma tem. Nem a manga Itamaracá que segundo minha opinião é a melhor manga do mundo, a polpa não tem fibra, doce danada e o caroço fino feito uma folha de papel.  É cheirosa também, porém nem se compara com o cheiro do araçá madurinho.
A geléia do araçá que fazia a nossa empregada era a mais gostosa do mundo (pelo menos do mundo que eu conhecia na época).  
Íamos também ver se as bananeiras no fundo do quintal. Algumas quando estavam "vingando" (pencas já amadurecendo), cortávamos aquelas pencas (cachos) para os passarinhos não beliscar. Levávamos para os quartos no fundo do quintal, pendurávamos até o total amadurecimento. Quem não comeu banana maçã amadurecida em casa (nada de carbureto) não sabe o que é bom e gostoso. Às vezes tinha também pencas de banana prata, dessas altonas, verdadeiros "espanadores da lua", mas meio insípida (sem gosto), boa só para banana frita ou "cartola"( uma sobremesa composta de bananas e queijo do sertão frito na caçarola). Quando éramos meninos comíamos esta delicia na sorveteria Nice, na Rua da Imperatriz, bem defronte da igreja da Matriz. Que bom lembrar desta delicia.
Quando vinha a lavadeira do meu avô, a dona Socorro na segunda feira trazer a roupa lavada, engomada, cheirando à "anil" e levar de volta a roupa suja, ele não estava à disposição para ninguém, nem para seu neto companheiro de conversas e aventuras no quintal.  
Ela era uma mulher beirando os 50, bonitona, cabelos grisalhos, escondendo o passado loiro e de olhos vedes. Era viúva, vivia em Paulista e para ter estes dotes deveria ser descendente de uma mistura com holandeses que viveram por aqui no passado durante 24 anos e devem ter deixado muito produto aloirado resultado de amores furtivos com o mulherio local da cidade. Ela com certeza era um produto dessa qualidade. Todos de casa sabiam quando a dona Socorro vinha com a roupa ninguém aperreava (perturbava em nordestino) ao senhor José. Ele se dedicava inteiramente a ela e a "roupa lavada"!
Quando ela entrava em casa, o rosto do meu Zeide irradiava luz e alegria.
Subiam ao sótão e se trancavam.
O encontro só acabava quando ela descia com a trouxa de roupa suja na cabeça e seguia para a parada do bonde para Paulista (Ou era Beberibe), desculpem já não me lembro mais é a idade), para lavar a dita cuja no "riacho das lavadeiras" que corria todo o ano na localidade.
Ela saia satisfeita do encontro. A amizade que se renovava duas vezes no mês, o pagamento que recebia toda vez que vinha entregar a roupa, mais um extra para duas barras de sabão amarelo ou de coco, passagem do bonde e pela "enorme satisfação" que causava ao meu avô.
As empregadas gozavam e cochichavam entre si:
- "Hoje dona Socorro saiu rica daqui".
- A outra dizia: "Não só de dinheiro", e caiam na gargalhada, ai seu Josef, seu Josef, hoje ganhaste mais anos de vida, olha só na cara dele quando descer do sótão para tomar banho. Vê como até as rugas desaparecem de tão feliz que fica!
Acho que esta "amizade" não era segredo para ninguém na nossa família.
Depois de velho quando eu conversava com meus primos, eles me confirmaram que sabiam disso ainda quando eram crianças, pois ouviam seus pais conversando em iídiche em casa e pensavam que os miúdos não entendiam. Eita avô "pai d égua".
Agora, não me perguntem nunca mais, por que ele nunca casou de novo depois que enviuvou na Áustria, Ok?
Parece que ele era daqueles que gostava das crioulas. Vá saber!
Hoje vê-lo sentado na cadeira de balanço no terraço, pálido, triste, e esperando o pior, era para todos nós de casa uma situação desesperadora.
O numero de amigos "bebedores de chá" no terraço, diminuiu quase para zero. Dizem que é sempre assim, quando estás com muita saúde e vitalidade os amigos são até demais, quando estás enfermo e depressivo, os amigos desaparecem.
Cabe salientar que alguns deles mesmo nesta situação "terminal" vinham e se faziam de não saber da situação e rolavam conversas até tarde da noite, isto animava bastante o meu avô.
Entre eles estava o velho Shwalbman que trazia jornais no dialeto iídiche, em geral muito atrasado, pois vinham por via marítima dos Estados Unidos.
Outros era a família Newman, conhecidos das conversas em alemão, a "língua mãe" deles e do meu avô. Sr. Kurt (der Becker), mestre em especialidades culinárias e guloseimas européias e sua esposa. Ela conversava muito com minha mãe na sala de visitas e tomavam um "shnaps" (licor de baunilha) com as "mil folhas", fatias do "Apfel shtrudel" (torta de maçã azeda) e Keis kuchen (torta de queijo) que eles sempre traziam nestas visitas e eram as especialidades do senhor Kurt. 
Ele infelizmente já estava altamente acometido de Diabete porem nunca se esqueceu de trazer estas lembranças culinárias germânicas do velho continente europeu. Desta família me lembro do tio Max e o respeitável chefe do clã o velho senhor Isidoro. (se me engano nos nomes favor desculpar, é a idade).
Senhor Goldberg, muito amigo do meu avô, depois de velho casou com uma "goia" (não judia) vinha de tempos em tempos saber dele, mas não entrava, conversava com minha tia Dina na porta do casarão pra saber da situação de saúde do seu amigo, o senhor Joseph.
De outros frequentadores amigos do meu avô não me lembro ter visto na ultima etapa de sua vida.

Uma noite isto aconteceu. Eu acordei com a correria de toda família pra lá e pra cá. 
Ele desceu do sótão meio cambaleando dizendo que se sentia mal, ânsias de vomitar e já - já desmaiava e dores na parte inferior do tórax. Trouxeram água, não quis beber. Telefone não era comum ter em casa na época para chamar a assistência (ambulância) e leva-lo para o Pronto Socorro, apesar de sabermos da situação da saúde dele, num momento como este todo mundo perde as "estribeiras" (controle em nordestino).
Meu pai grita para minha tia Dina a solteirona que vivia conosco numa sala no sótão, cujas janelas davam pro nosso quintal.
-Vai chamar um medico!
- Onde a essa hora da madrugada vou achar um medico? Respondeu apavorada a minha tia.
Minha mãe segurando umas toalhas brancas como neve e uma bacia com água morna caso o medico necessite.
Meu pai insiste:
- Corre na casa de dona Clara Bacal, lá tem telefone ou bate mesmo na porta.
Esta família morava defronte de nós. A filha mais velha é medica e para esta gente acudir a enfermos não tem hora.
Minha mãe: - Vai mulher, corre a situação esta preta, vê como ele está todo torcido de dores, vai, vai.
Correu minha tia, atravessou a rua vazia naquela hora da madrugada, bateu forte na porta, Demorou uns minutos e a velha Bacal abriu o postigo e só pela cara desesperada da minha tia, adivinhou o que se passava, foi logo chamar a doutora, ela veio de pijama e disse:
-Dona Dina eu sou medica legista eu não trato de pacientes vivos eu faço biopsia, autopsia, laudos para a policia...
Minha tia agarrou a sua mão e disse:
-Aí na placa na porta da sua casa diz:
Dra. Anita Bacal, Medico.
Não diz se é medico de morto ou de vivos, vamos menina!
Agora você para mim é o "salvador" do meu pai, vem ver o que se pode fazer, ele esta sofrendo muito.
-Ok dona Dina, me deixe ir buscar minha caixa de instrumentos médicos.
Eu não sei o que se passou depois disso, pois me tiraram da minha cama e deitaram nela o meu avô agonizando.
Levaram-me para o "Quarto das Bonecas", parecia um daqueles desenhados nas propagandas comerciais de moveis para crianças. Nunca ninguém dormiu lá e segundo o meu entender foi um quarto preparado para o nascimento de uma futura irmãzinha que nunca nasceu.
Ficou um quarto "mal assombrado".
Quando alguém perguntava o porquê de eu não querer dormir lá, tudo cheirando a novo, moveis coloridos, iluminação com abajours e lâmpadas coloridas parecia um quarto de nenê rico em Holiwood.  Foi comprado num remate do leilão Maia aquele junto da lavanderia Papaleo, na Rua da Conceição. 
Eu sempre dava a mesma desculpa
-Gente, aquele quarto está cheio de morcegos, d`eu dormir lá? Nem a "purso" (forçado)!
Estes bichos se enroscam no cabelo da gente e quando tu não dás fé eles te chupam o sangue das veias. Vige, eu dormi lá? Nem amarrado com cordas de agave e com nós cegos.  Deus me livre!
Como nesta ocasião a cama de meus pais estava vazia, saí de mansinho, tremendo de medo dos mal-assombrados e fui me deitar na cama deles.
Eu só sei o que se passou quando vi no dia seguinte a empregada limpando o sangue já seco na parede junto da minha cama onde Zeide estava deitado quando a doutora legista veio tratar dele.
Contou-me a minha tia que a doutora achou que meu avô estava com uma pressão muitíssima alta e que tinha o perigo de infarto ou derrame cerebral.
Imediatamente executou uma "sangria" perfurando uma veia grande no meio do braço e daí os espirros de sangue que vi no dia seguinte a empregada limpando.
Sorte que quase toda a casa era pintada com tinta a óleo de maneira que era mais fácil limpar com água e sabão.
Não sei também como levaram ele para o hospital Centenário.
Fui visitá-lo com minha tia dois dias depois. Por um lado muito queria vê-lo e por outro o clima que reina num hospital me deixava meio amedrontado.
Mas no fim fui e conversei com ele.
-Estou esperando o senhor sair do hospital para irmos juntos a um novo filme de Tarzan que está passando no Politeama, mas é proibido para menores de 14 anos. Indo com o senhor que conhece o senhor Tibúrcio, o porteiro do cinema, ele nos deixará entrar.
Prometo ir de sapato, paletó e gravata para parecer mais adulto. Juro! Sem isolar.
Meu avô mesmo na situação que estava riu e perguntou se no Cinema Moderno, não estarão passando (projetando, na língua do povo) um filme de mistério? Quem sabe era melhor que o de Tarzan.
-Sim, respondi, estão passando um filme de Hitchcock, mas este está proibido até 18 anos. Eu prefiro este de Tarzan, pois Jaimezinho, meu amigo, o filho de dona Inês,  me contou que ouviu dizer que lá aparece Jane nuazinha tomando banho com Boy no meio de meia duzia de jacarés. Boy estava boiando, sentado numa folha enorme de Victoria Regia. Este é o que eu quero ver, com Jane nua no meio dos jacarés. Concordas Zeide? Diga-me mais uma coisa, o senhor que é um "sabidão", como é que a verdadeira mãe do Boy deixa ele entrar naquela água cheia de jacarés ainda mais boiando numa folha e o besta ainda fica sorrindo bem juntinho dos jacarés e a Jane também não se importa.
Zeide, como a policia permite uma coisa dessas, perigoso da peste, tu sabes?
Ele já não respondeu e se eu não estava imaginando coisas, ele disse a minha tia em alemão: "Daqui deste lugar eu não saio vivo" e adormeceu. Deviam estar dando-lhe morfina.
Faleceu naquela mesma noite. Parece que não lhe deram nenhum tratamento, pois a coisa estava mesmo perdida. Anos depois me disseram que foi câncer no pâncreas que se espalhou para os ossos e quem sabe para aonde mais.
Nós judeus evitamos fazer autopsia, pois o corpo deve ir a Deus assim como faleceu, sem botar nem tirar nada. Segundo a "lenda" todos nós ressuscitaremos no dia que o Messias vier nos visitar para reconstruir o sagrado templo no monte "Har há Bait", no centro de Jerusalém. Uma promessa milenar que permite a um povo inteiro viver esperançoso e aguentar os dissabores do cotidiano.

Essa doença desgraçada não começou de repente, ele já era portador dela durante muito tempo, nunca reclamou e se sofreu dores aguentou como macho de verdade, não pediu compaixão ou ajuda de ninguém.
Os amigos nunca desconfiaram que aquele "gigante" estivesse se desmelinguindo, moribundo. Sempre estava de cabeça erguida e bem humorado.
No fim morreu o meu querido Zeide (avô em iídiche).

Não sei como o corpo voltou do hospital para nossa casa, mas isto foi um fato.
Era necessário preparar o defunto judeu para o enterro, segundo as tradicionais regras religiosas ortodoxas. 
O enterro seria no pequeno cemitério judeu no Barro.
Deveriam encomendar o carro fúnebre da casa Agra ou da Casa Batista e pedir que retirem os enfeites e símbolos cristãos do carro, importante que retirassem as cruzes e os santinhos que sempre acompanham o féretro católico, disso se preocupou o meu tio Jorge que conhecia o Bacelar, filho do dono da casa Batista.

No dia seguinte presenciei 15 a 20 segundos uma situação que me ficou gravada para o resto da vida no sub consciente.

Eu estava no meu quarto quando quis passar pela sala de visitas e chegar à saleta onde fazíamos refeições, sem intenção alguma vi o seguinte:
O corpo nu do meu avô estava em cima da enorme mesa de Sucupira aberta dos dois lados para possibilitar colocar o enorme corpo do falecido em cima dela.
O meu querido avô estava totalmente despido e só um trapo lhe cobria o órgão genital, mesmo assim algo do pênis e saco escrotal aparecia debaixo do trapo.
Na mesa algumas bacias cheias de um liquido (depois fiquei sabendo que era uma mistura da água e álcool) para lavar o corpo (das pontas dos dedos, de debaixo das unhas até a cabeça, inclui os cabelos).  
O defunto deverá ser colocado na sua sepultura, limpo de "cabo a rabo", sem levar nem um grão de poeira deste mundo.
Os encarregados desta tarefa são os membros da "HEVRE KADISHA" (Grupo Sagrado).
A verdade que fiquei tão desnorteado com o que vi, que nem contei quantos eram os que lavavam o corpo dele e faziam outras tarefas fúnebres. Talvez 10, como necessário num "Minian", este é o numero mínimo obrigatório de adultos judeus para abrir a Toráh (O rolo sagrado do velho Testamento da Bíblia) e rezar.  
Não deixavam nem um cantinho sem esfregar com trapos umedecidos no liquido das bacias preparado previamente.

O corpo balançava com a fricção de limpeza. A cabeça caia de um lado para o outro, às vezes abria os olhos, o corpo todo em cima da mesa se movia segundo as fricções dos "lavadores de defunto", dava a parecer que ali não estava um morto na sua ultima hora, antes do enterro.
De lado numa cadeira estava a mortalha que logo vestiria depois de lavado. 
Esta seria a sua ultima indumentária para ir-se ao reino celeste. 
Depois de vestido, ele ficou parecido com um anjo daqueles que estão nos quadros onde aparece Jesus, apóstolos, e anjos com azas e tudo.

Foi aí que vi uma cena das mais fortes que presenciei como menino e me deixou atônito.
Escutem bem, pois até hoje ando perguntando o seu significado.
Senhor Benjamim, um desses da "Hevre Kadisha", abriu a boca do meu avô para ver se ficou algo como dentadura postiça e se tivesse a retiraria, pois do mundo nada se leva, vais para a eternidade do jeito que vieste para cá ao nascer. Depois ele recebeu das mãos de senhor Lemle um saquinho de pano, abriu e derramou na palma da mão. Murmuraram uma prece e meteram o conteúdo do saquinho na boca do meu avô.
Não tive tempo nem de piscar, o grupo que estava tão atarefado nos seus afazeres preparando o féretro, de repente me descobriu e num sinal feito com os dedos, sem falar, me mostraram o caminho para que saísse imediatamente da sala de visitas, pois aqui não é lugar para menino, ademais com menos de 13 anos (no judaísmo só ao alcançar os 13 anos és considerado adulto e podes participar de todas as atividades religiosas).
Assim fiz, sai correndo feito um desesperado para a saleta e cai nos braços de Maria do Carmo a nossa empregada, eu mais ela choramos. 
Só fiquei sabendo depois de adulto que este conteúdo era de "terra santa" de Israel.
Perguntei o porquê deste costume e recebi respostas diversas, confesso que não fui perguntar a nenhuma autoridade rabínica (religiosa), mas a gente próxima das tradições judaicas.

Meu pai me disse; Para que sinta o gosto da pátria dos nossos ancestrais, pois nunca a visitou.
Um amigo que se tornou entendido da coisa, disse:
Não é na boca que põe a terra e sim sobre os olhos, pois nunca viu a terra bíblica do povo judeu que um dia foi a nossa pátria, esta pratica lhe permite ver a terra santa, coisa que não fez em vida.
O meu filho que andou se aprofundando nas nossas tradições disse:
Não se põe terra nem na boca nem sobre os olhos e sim debaixo da cabeça e a intenção é que descanse eternamente sentindo o conforto da "Terra Santa" dos nossos ancestrais para não estar com a cabeça no chão duro de uma terra onde fostes somente, um mero imigrante.

A religião judaica é muito versátil e se continuasse perguntando ainda chegaria a uma resposta que este costume não existe é tudo imaginação fértil de um menino besta, apavorado.

Mas eu juro por Deus e tudo que é sagrado, que vi colocarem na boca de meu avô um punhado de terra. Agora sei que esta terra seria proveniente da pátria ancestral do povo judeu.
Imaginação fértil uma ova, ainda acrescento mais, quando esfregavam o corpo do meu querido avô ele virou a cabeça pra meu lado e piscou para mim. Como querendo dizer: "Neto querido, tudo jóia, estou recebendo o melhor tratamento do mundo, nada de tristeza".
Eu nem tive tempo de piscar de volta, pois me mandaram marchar rapidinho para não presenciar o que não é para menino ver.

Juro Vô, eu te vi piscar pra mim, mas eles não deixaram eu piscar de volta, mas entendi o teu recado, vai com Deus meu querido vovô.
Não te esqueço nunca e fica sabendo que eu continuo te piscando, olhando para o céu quando quero saber de ti ou quero te perguntar alguma coisa que não entendo nesse nosso mundo tão desordenado e traiçoeiro.
Espero que estejas recebendo meus recados e me diz uma coisa, já encontraste teus pais, as personalidades sagradas, teus amigos "bebedores de chá" que se marcharam antes de ti? E o Brigadeiro Eduardo Gomes, João Pessoa, Luís Carlos Prestes, Sérgio Loreto, Juarez Távora, todos aqueles que admiravas, que os retratos deles estavam pendurados na tua sala no sótão, os viste por lá?
Ai desculpa vô, esses são "goim" (não judeus), eles deverão estar no paraíso com Jesus Cristo, verdade? É longe de onde vosmecê está?
Avozinho, tu já tivestes uma audiência com Deus, é necessário pedir permissão ou se vai diretamente a ele? Vô te pergunto por que queria te pedir um favorzinho, coisa de nada, garanto.
Na primeira oportunidade que tu encontrares com ele, pede pelo amor de Deus que me dê uma ajudinha para passar no exame de admissão, ta? A professora dona Eulina, aquela gorducha chata, disse a minha mãe que eu estou muito fraco em matemática e no português, já viu vô, eu levar pau no admissão? Minha mãe me mata e meu pai ficará satisfeito, pois sempre disse que sou burro e que me trocaram na maternidade, pois não tem menino judeu que não saiba a matemática. Faz este favorzinho meu Zeide eu te agradecerei a vida toda, prometo deixar de fazer traquinagem com o cachorro e correr atrás das galinhas e dos patos no quintal, juro por Deus! Combinado Zeide?
Bom meu querido, já lhe importunei em demasiado, repousa em paz! Não te esqueço nunca.

"NÃO SOMOS SERES HUMANOS PASSANDO POR UMA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL...
SOMOS SERES ESPIRITUAIS PASSANDO POR UMA EXPERIÊNCIA HUMANA".
(Desconheço a fonte)
 


Fim do capitulo
Paulo Lisker, Israel.
Todos os direitos autorais reservados.
Cuide dos créditos

  



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"O SEMI DEUS" ESTÁ SE DESMELINGUINDO - DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ.

                                     " Recife Antigo", rios pontes e prédios- Foto Google Internet

"DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ"
Tema: "O SEMI DEUS" ESTÁ SE DESMELINGUINDO.
Paulo Lisker - Israel.
16-06-2011.

Os amigos iam desaparecendo. As visitas constantes ao cemitério judaico no bairro do Barro, acompanhando os amigos no ultimo caminho neste mundo, o deixava desanimado física, moral e espiritualmente.
É isso mesmo, o tempo não pode parar e no seu decorrer, vão aparecendo os sinais mais acentuados da velhice. Uma moleza (fraqueza, em nordestino) invade o idoso e ele se deixa levar naquela onda morna e serena de não querer fazer mais nada. Espera chegar o fim.

Lembro-me que tudo começou com um eczema no braço direito que apesar de todas as medicinas matutas, as pomadas, tinturas e a dieta, tudo "pirocas" (em vão, no linguajar popular de desespero), nada de melhoras, na realidade nada adiantava era tudo paliativos para "boi dormir" e não deixava o meu avô dormir descansado .
Diziam que isto era uma reação interna do organismo. O próprio corpo atacando a si mesmo, parece que na linguagem medica se chama "Lupus".
Propunham dieta disso, daquilo, minha mãe e as empregadas se desdobravam para fazer tudo segundo o figurino. No fim de dezenas de experimentos de dietas, ele comia chuchu cozido na água. Ainda bem que esta verdura se encontrava nos balaios de nossos verdureiros durante todo o ano.
Era tanto chuchu que se comprava que já todos os verdureiros da nossa rua se organizaram para suprir esta verdura para a dieta de seu Joseph, faça sol lascado ou com chuvas torrenciais! O chuchu estava presente em toda santa refeição deste velho "semi deus".
Dizem que nas conversas das empregadas eles contavam que mandavam fazer rezas, ladainhas e até no Xangô as mãe de santo dos terreiros na Estrada dos Remédios, no Bongi e Camaragibe faziam as encomendas aos Orixás pela saúde do seu José.
Lembravam com carinho que no passado ele lhes vendia á prazo cômodo sem muito pressionar pelos pagamentos semanais. Não tem dinheiro hoje, não tem nada não, fica para outra vez.
Isto lhes permitia comprar objetos que necessitavam e que loja nenhuma no Recife lhes venderia á credito. Esta modalidade de comercio não era comum naquele tempo.
Ademais quem venderia á prazo a um cliente descalço e sem nenhum documento de identificação? Ninguém mesmo!  
Gostavam do "galego da prestação" de cabelos grisalhos, olhos claros, vestido a moda européia de gravata borboleta no pior calor. Sempre atencioso (educação austríaca) que confiava na palavra deles. Escutava com paciência seus problemas e contava para eles as novidades do Recife e do mundo sentados na sombra de um grande "pé de pau" (arvores) que ainda restavam depois dos desmatamentos exagerados cometidos contra a Mata Atlântica nas áreas periféricas do Grande Recife.

É "peia" (pesado), todo tempo comer chuchu, chuchu e outra vez chuchu, porém esta verdura era a recomendada para o seu tratamento.
Às vezes às escondidas "roubava" algo da comida das empregadas, elas cozinhavam a sua comida em separado, pois não gostavam do "cardápio dos galegos".
Lembro-me das comidas judaicas em geral trazidas da Europa. O aroma e o gosto sui generis e não era muito fácil para um estranho acostumar-se sem torcer o nariz.
Entre outras me lembro dos cheiros e gostos de alguns pratos judaicos* (ver glossário) muito comuns na nossa mesa.
Como dizia anteriormente o meu velho avô "roubava" da comida das empregadas um pedacinho de macaxeira rosa (esta que cozinha até em água fria), um pedacinho de niames ou de jerimum pra variar um pouco no gosto de "só Chuchu".
Nada com sal ou qualquer outro condimento que poderia dar um gostinho a esta comida insossa. Perguntou ao medico por Quiabo ou Maxixe, a reposta foi negativa, só chuchu, no maximo polvilhar as postas com farelo de pão torrado, nada mais!
Sim era permitido o uso Sal de Limão que se comprava nas farmácias, assim como papel higiênico ou margarina. Na farmácia sim senhor!
Era a época "primitiva" do Recife matuto, em que se "amarrava cachorro com linguiça", como dizia o povo.
Deveriam explicar o "modo de usar" do papel higiênico, como limpar a bunda, depois de usar por séculos o jornal de ontem para este fim. Vocês se lembram do papel de jornal pendurado num gancho junto a cada vaso sanitário. Não era vergonha ou mesquinhez, papel higiênico era raro ou não existia mesmo, e o uso do papel de jornal para estes fins era uma realidade.
Que diferença do que era aquele tempo e hoje, o cú que o diga, está vendo né!
Era o tempo do uso de Ventosas, aplicadas até em mortos, lavagens no cú com sabão amarelo pra desentupir as tripas, injeção de Antipiogenica que antecipou a penicilina para tudo que era infecção.
Tintura de iodo, mercúrio cromo pras feridas às vezes também a Água Oxigenada, Leite de Magnésia, Óleo de fígado de Bacalhau, Tonico Fontoura, Regulador Xavier, Sal de fruta Eno, Neuro Fosfato Sky para os nervos, Melhoral ou Aspirina contra a febre e dor de cabeça, tudo isso e ainda mais, comprado só em farmácias.
Em tempo, seria bom lembrar que quando nenhum dos remédios caseiros ajudava então recorriam á Farmácia da Santa Cruz na praça do mesmo nome e o "farmacêutico" (era mais um vendedor de remédios) o senhor Aristides, depois de ouvir o problema, vendia um remédio que tinha na farmácia. Caso fosse necessário tomar injeção ele também aplicava ali mesmo e cobrava algo e logo metia no bolso e não na gaveta exclusiva para este fim. Trabalho extra, claro.
Outro que fazia este serviço nas casas dos pacientes era o "farmacêutico" senhor Odon (na nossa casa era chamado de Senhor Adão) da farmácia Saúde na Praça Maciel Pinheiro. Dizem as más línguas que este senhor enricou (enriqueceu, em nordestino) de tanto dar injeção nos judeus em casa.
Parece que este povo sofre grandemente de hipocondria (medo psicológico de doenças), especialmente nos trópicos sub desenvolvidos, onde a água não é da melhor qualidade, nunca tomavam (bebiam) água da torneira para evitar problemas intestinais.
Bebia-se água filtrada dum filtro de barro com "velas" também de barro.
Este artefato estava presente em todas as casas dos judeus. Era mais para efeito psicológico, pois filtrar mesmo não filtrava "bulhufas" (quase nada), o lodo da água talvez. O lodo colorido que vinha dos açudes na água encanada através rede vitalícia da cidade, grandemente enferrujada e cheia de vazamentos, estas velas de barro retinham. Com uns dias elas ficavam cobertas totalmente deste lodo, até entupir, aí as tiravam e as limpavam com uma escova e as metiam novamente dentro do filtro.
Mais que esta atividade higiênica de produzir água filtrada o Recife não conhecia outra.
As famílias dos judeus (não todas) trouxeram um costume europeu "bizarro" de ferver a água e depois que esfriava era colocada em quartinhas de barro (costume local) e postas em lugares mais frescos da casa para "gelar".
Eu mesmo, toda minha vida no Recife só tomava água de quartinha e bem me lembro o gosto de barro quando eram compradas novas.

O Recife era antro de malaria, febre amarela, e gripes das mais diversas, uma dessas "pestes danadas" foi a gripe espanhola que causou muitas mortes sem diferenciar classes sociais.
Os judeus por toda e qualquer besteira viam logo alguma doença incubar-se e buscavam algum remédio para o mal imaginário. Isso é a hipocondria. No Recife os judeus tinham esta fraqueza, hipocondríacos!

Os remédios nas estantes das farmácias não tinham data para caducar, quem sabe quanto mais velho era melhor, como o vinho. Interessante que ninguém morria por isso, tinha remédios do tempo do Imperador Dão Pedro Segundo e talvez de seu antecessor!

Eram outros tempos, com 40 anos já eras considerado velho, com 50 "com um pé na cova", com 60 um milagre de ainda estar vivo.
A esperança de vida no Recife e no nordeste todo não ultrapassava os 45 anos.
Interessante, aqueles que tinham uma vida quase que eterna eram os mendigos com chagas horríveis nas pernas que "viviam" pedindo esmola na Ponte de Boa Vista, que era a de maior movimento de pedestres no Recife.
Estes coitados estavam eternamente ali. Passavam-se os anos e eles sempre se encontravam vivos no mesmo lugar. Um milagre!

Alguém me disse que são tantos que sofrem desse mal no Recife e até em situação pior, que não dávamos fé quando o que morreu foi rapidamente substituído por outro miserável com o mesmo problema. Um lugar de "trabalho" livre era imediatamente preenchido por outro mendigo.
Para nós judeus não havia como diferenciar, pois todos os "pretos" com feridas horríveis nas pernas, eram iguais.

Agora era a vez deste humanista, o meu avô, ele estava se desmelinguindo.
Ninguém queria acreditar, pensavam que tudo passaria, era só uma etapa ruim na vida.
Deixou de acionar os dois vendedores que tinha. Passou para eles toda a freguesia e concedeu que tudo que cobrassem de agora em adiante seria deles e não necessitavam pagar mais nada pela mercadoria que ele comprara na loja de senhor Simes no bairro de São José.
Ele mesmo fecharia a conta.
- Agora vocês são donos do vosso nariz. Em lugar de trabalhar para mim, trabalhem por conta própria e vos desejo êxito e muita sorte.
Não duraram seis meses e os dois vendedores faliram.
Meu avô ficou sabendo por terceiros do fracasso de seus ex vendedores, pois nenhum deles teve a coragem de confessar o fracasso comercial para não magoar o meu avô na situação melindrosa que atravessava.
Mandou um dos seus amigos ainda vivos o senhor Shvalbman perguntar ao senhor Simis se os vendedores deixaram dividas na loja. Ao saber do "rombo", mandou com o seu filho Tucho (Jorge o sertanejo), 50 contos de reis para cobrir a divida deixada pelos seus dois ex-vendedores.
Ele dizia: Minha gente, "Do mundo nada se leva, nem um par de meias, a mortalha não tem bolsos e no caixão não tem gavetas". Você vai desse mundo do jeito que veio "lá" Deus nos ajuda não se preocupem. Não nos faltará nada.
Era um filosofo descalço e no passado longínquo este povo tinha muito deles.
Esse trabalho exige paciência, compreensão, perseverança, andar baixo o sol calorento ou chuvas, carregando mercadorias no mostruário.
Havia tempos com muito barro e muita lama e o mais importante era nunca se "arretar" (aborrecer) com o cliente por não ter naquela semana como pagar a parcela que devia.
O negocio era respirar fundo e ir-se adiante.
Máxima seriedade e honestidade para com os fornecedores das mercadorias, pagar em tempo, pois sem eles esta profissão não existiria. Parece que estas qualidades faltavam aos dois vendedores brasileiros crioulos.
Todas estas características eram inerentes dos imigrantes judeus e isto foi o que os possibilitou, relativamente em pouco tempo galgar a uma posição de alto nível na classe media.

Era costume de tempos em tempos ouvir comentários de católicos que diziam:
-"Vejam, vejam estes judeus, chegaram com uma mão na frente e outra atrás" e já compraram casa ou abriram loja.
Ou: "Chegaram puxando uma cachorrinha" e já estão ricos!
Era naquele tempo uma reação muito normal contra os estrangeiros que ontem desembarcaram no porto e já se organizaram como comunidade, trabalhavam duro e se não fosse pela sua língua enrolada, não levaria muito tempo e este contingente da imigração judaica estaria totalmente entrosado economicamente e culturalmente na população recifense, como um todo.
Outros mais politizados diziam que este relacionamento para com o "galego" era o produto do anti-semitismo latente que a igreja católica pregava em toda América Latina.
Porem no fim das contas os judeus do Recife provariam a qualquer um que "botava peninha" (duvidava, em nordestino), que era um grupo humano positivo que contribuiria em todos os aspectos sócio-econômicos e profissionais na sociedade brasileira e recifense em especial.
Pelo que leio nos jornais de hoje é uma realidade imbatível.  

Eu subia ao sótão a mandado de minha mãe para saber se ele necessitava alguma coisa, se vai baixar para comer ou queria que a empregada levasse para cima.

É triste ser velho e doente.
Eu contava pra ele o que fiz na escola ou no sitio de seu Ramos o nosso vizinho.
Pendurados na parede em cima da sua cama estavam os retratos do Brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora, Sérgio Loreto e um diploma de sócio fundador do Hospital Evangélico. (nunca soube se este hospital chegou a existir).
Às vezes eu perguntava quando vinha visitá-lo trazendo com muito orgulho uma pinha ou bananas maçã do nosso quintal, quem são esta gente nos retratos.
Ele sempre contava só coisa boa deles.
Lembro-me que contou que o Brigadeiro deveria ser o presidente do Brasil, então hoje quem sabe as coisas seriam outras.
Juarez Távora um personagem político honesto e de notável compostura.
De Sérgio Loreto que foi o governador de Pernambuco, contava coisas que eu ficava "besta" só de escutar. Combateu a Coluna Prestes, o cangaço de Virgulino Lampião, tentou sanear o Recife de epidemias, fez estradas e pontes (ponte de ferro do Pina). Gente de estirpe assim, Pernambuco precisa, dizia ele.

Ele conversava comigo como se eu fora um adulto e entendesse o que havia de importante nestas ações cívicas.
Eu queria saber das lutas com Lampião e o que é Coluna Prestes, que diabo esta gente queria. Sobre isso acho que ele não sabia o suficiente. Não faz mal, ele já está velho, um dia perguntarei ao meu tio sertanejo, ele com certeza saberá me contar. Espero né?

Ele sim me contou que leu numa revista alemã um relato sobre "frutas exóticas" que existem no mundo tropical, muitas existentes no nordeste do Brasil e até mesmo no nosso quintal ou no sitio de seu Ramos encostado ao nosso casarão.
Frutas sem sementes, assim como, a laranja de umbigo (Bahia), têm também Pinha (Anona) sem sementes, deliciosa, pura polpa. Dizia ele quem pela primeira vez trouxe esta Pinha para o Recife foi Assis Chateaubriant quando voltou de uma viagem à África.
Na China tem goiaba branca totalmente sem sementes e sem o cheiro fedorento característico da goiaba. Nós rimos a beça dessa goiaba china, pois se não tem caroços, é branca, e não fede, quem sabe não é goiaba! Será?
Também me disse que tem Caqui sem sementes e sem ranço que se pode comer-la ainda duro. (deveria ser a variedade do caqui chocolate).  Aproveitei a deixa e naquele clima alegre da conversa perguntei:
- Zeide, quando vai chegar também Jaca sem caroços e ele me responde também na gozação, qual queres a mole ou a dura?
A gente conversava um bocado sobre quase tudo, porem no fundo no fundo me passava de vez em quando um calafrio só em pensar o que seria amanhã ou daqui a uma semana se ele não melhorar deste sofrimento que atravessava.

Um dia isso vai acontecer. Sem dizer adeus ele se irá para sempre.
Com toda esta "amizade Avô-Neto" de alguma maneira fiquei magoado com ele por não me ter preparado para o pior.
A experiência me ensinou e hoje que sou avô e tenho um amor danado pelos meus netos, já lhes preveni.
- Meninada, eu um dia vou morrer.
Não! Bradam eles me agarrando e me abraçando, não vô, isso nunca.... Tu viverás eternamente!
Que nada tu vais viver feito o Matusalém, ao menos ao menos até 120 anos, no mínimo, no mínimo!
-Deixa de falar nisso vô, que é para não despertar o demônio que anda as soltas aqui nos inúmeros campos de batalha. Ele tem muitos "clientes" e não se lembra de ti, nem pensar...
Eu volto e repito:
-Meus queridos, todos nos os seres vivos temos o seu dia para deixar a vida terrena e voltar a Deus que nos permitiu viver este sonho na face da terra.
Estejam vocês preparados que isto pode acontecer a qualquer momento, mesmo sem aviso prévio.
Então queridos netos, nós temos muito boas relações então me escutem.
Quando eu entregar minha alma a Deus lhes permito ficar tristes um dia só. Nem uma hora mais!
Respeitem a "Shivá" da família ("shiva" é um costume religioso em que todos os familiares ficam sentados no chão durante uma semana na casa do falecido em sinal de extrema tristeza pela sua partida para a eternidade, também os visitantes cumprem com este costume).
Uma vez perguntei:
Por que tanta tristeza se pela nossa religião, o nosso Zeide está agora num mundo muito melhor cercado dos profetas, juizes, reis do povo judeu no passado longínquo, para falar com Deus, nem precisa pedir licença. Então por que vocês ficam tão tristes com sua partida para o alem?
Senhor Shvalbman que estava presente me respondeu quase sussurrando:
-Saudades meu querido, são as dores das saudades por isso ficamos tão tristes.... Sabemos que "lá" ele está feliz com seus pais e todos os demais do nosso povo, não sofre mais das doenças que o derrubou, a este gigante judeu da nossa sociedade recifense. Sabemos de tudo isso, mas a saudade nos mata de saudades, que fazer?

-Depois desta semana da "Shivá" agarrem a vida com as duas mãos, nada mais de tristezas (elas não pagam dividas), nada de ficar se lamentando pelo falecimento do avô, não entrem em stress nem se metam em problemas psicológicos, isso só vai custar dinheiro a vossos pais.
Vivam a vida de vocês, ela é formidável com todos seus altos e baixos, gozem o dia a dia, tirem dela o máximo proveito.
Se quiserem, só se quiserem, visitem a minha sepultura anualmente no dia do "Yor Tzait" (dia do falecimento) e coloquem um seixo ou uma pedrinha em cima do tumulo, uma lembrança muito característica usada pelo nosso povo, isto lembrará que estiveram me visitando. Nunca flores, pois estas murcham e fica feio ou são roubadas por outrem para serem colocadas em outra sepultura.
A pedrinha é eterna e isso é o suficiente para a lembrança.
Escutaram? Nada de tristezas, este é o caminho de todo ser vivo, entenderam? Não esqueçam este procedimento. Então muito bem.
Assim faço eu para com meus netos.

Isto me faltou escutar de meu avô.
Seu falecimento e sua imagem pairando por cima de mim até o dia de hoje é a razão de que quase um século depois, eu ainda escrevo estas memórias "infantis" das minhas conversas com ele.

Fim do capitulo 8 "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ"
Paulo Lisker-Israel.
18-06-2011                        (Todos os direitos reservados)


*GLOSSÁRIO:
1.    Holodets= Gelatina Doce de Mocotó.
2.    Pitséih= Postas doces de Galinha na mostarda.
3.    Nahit= Grão de bico amassado com açúcar.
4.    Guefilte Fish= Peixe recheado com a carne do próprio. (conhecido também como peixe doce).
5.    Borsht fin Berikes. = Sopa doce de Beterrabas, com carne ou ossos de gado ou carne de galinha, dependendo do nível econômico da família.
6.    Ziss Zover= Galinha desossada em molho doce-azedo.
7.    Zover Yiguerskes= Pepinos azedos (conserva caseira)
8.    Casha mit Lokshn= Arroz Sarraceno (pequenos grãos de cor marrom) com macarrão caseiro.
9.    Kiguel= Arroz e macarrão de ontem com canela, açúcar, passas, e outras frutas secas, frito numa caçarola até formar um bolo comestível, servido frio ou quente. Muito usado nas casas dos rabinos pobres do leste europeu no passado. Hoje também é servido em almoço festivo do Shabat (sábado) que oferece o Rabino aos seus discípulos. O Rabino recebe a parte queimada do fundo da caçarola como um sinal de humildade.
    A preferência é dada as parte mais "gostosas deste
    bolo" aos futuros discípulos gênios, "Talmidei
    Hahamim",
  10. Guehakte Leiber= Picadinho de Fígado de gado, com cebolinha e alho.
   11. Varenikes e Knishes= produtos de massa recheados com purê ou carne moída, sempre com muita cebola frita.
    12. Há Yuch= Canja de carne de gado ou de galinha gorda.
     13. Grivalach= Banha de galinha frita, (uma espécie de torresmo Casher).
      14. Kampot= Compota de frutas secas ou frescas que tem um longo período de conservação sem nenhum produto Químico.
      15. Zover Krut= Conserva azeda de Repolho. (especialmente para o inverno europeu e aqui utilizado como um complemento para salsicha e massas em geral).
     16. Salada= salada com verduras frescas com rodelas de ovos duros cozidos.
Diziam meus amiguinhos não judeus: "Quem come isto é passarinho", (muita alface na salada).
    Mais uma serie de outras comidas típicas dos judeus de origem
    européia, na maioria de tendência doce.
Psicologicamente talvez causado pelo eterno sofrimento das perseguições. A comida doce especialmente no shabat (sábado, a rainha dos dias da semana), era uma espécie de recompensa e sublimação por tudo isso.
Seria alguma surpresa para alguém o fato que este povo tem o maior contingente de diabéticos do mundo e com caracteristicas genéticas?
Como não é matemática, fica a hipótese no ar á espera da resposta.
Fim do capitulo: "ESTÁ SE DESMELINGUINDO"
Todos os direitos autorais reservados.
Cuidado com os créditos