segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Meu avô foi-se embora pra sempre. "Das conversas com meu avô"

                                              Recife do tempo do meu avô
                                                  Foto Google, Internet

"Das conversas com meu avô"
Tema: Meu avô foi-se embora pra sempre.
Paulo Lisker, Israel.

Este capitulo "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ", levou um tempão danado para ser escrito.
Não tive coragem, mesmo depois de velho, me sentar e resumir o seu ultimo período de vida com a família e especialmente comigo que o admirava mais que meus próprios pais. 
Para mim quando garoto, ele é quem deveria ser considerado o "Sol dos Povos" e não Stalin que só trouxe desgraças a sua gente e a humanidade em geral. Já o meu zeide (avô em iídiche), foi "uma mão na roda" ( orientava e ajudava), tanto a mim como aos seus amigos.
Explicação lógica coerente, única, não tenho, era uma amizade sem limites e sem preço. Ele nunca me deu presentes que me lembre, nem dinheiro, pois não dispunha do "metal precioso" em fartura, nem me ensinava para as provas da escola, era admiração, uma amizade pura 24 quilates e pronto.
Desculpem-me a comparação, mas era um "gigante pela sua própria natureza", assim eu o considerava e por tanto esse meu apego a ele.
Tudo que não perguntava a meus pais, recebia deste velho avô a maioria das respostas e quando menino não nos falta o que perguntar é uma faculdade normal de todo ser humano quando jovem. Queremos saber de tudo e nem tudo está escrito no Gibi (revista infantil), nossa literatura predileta.
O tempo não "dá pé" (chance, em linguajar da rua) a velhos. Ele vai minando aos poucos a saúde deles até destruí-la e transformar essa gente, nesse caso, meu avô, numa pessoa que já não tinha mais alegria para viver como antes e vai se acabando "feito uma vela" (a expressão vem do iídiche, "azoi vi a licht").
De vez em quando vinha visitá-lo um amigo ou outro. Ele não era o mesmo homem, o braço direito, este com o eczema, sempre coberto com um talco medicinal, tentava mostrar otimismo para os estranhos, porém sabia muito bem que a coisa não era um "café pequeno"(problema passageiro).
Quem diria que este "gigante", que administrava o seu trabalho vendendo a prazo com dois vendedores nos subúrbios do Recife, terminasse seus dias sentado triste numa cadeira de balanço no terraço do nosso casarão da Rua Gervásio Pires.
Eu menino, vivia rodando em volta dele e tentava encontrar assuntos para conversar e pedir um trago do seu cigarro "Regência" ou uma pitada de rapé.
No tempo que não existia ar condicionado nas casas, pelo menos no terraço a brisa da noite e o cheiro embriagante das camélias e jasmim no nosso quintal formavam um clima ideal para descansar do calorão do Recife durante as horas do dia.
Era nesses momentos que vinham na minha mente as pequenas coisas que fazíamos juntos e disso falávamos quase sempre.
Derrubar uns abacates do secular "pé de pau", cujo tronco quase todo comido pelo cupim. Era um milagre que ainda produzia uma ou duas dúzias de frutos todo ano. Ele com a vara derrubava as frutas e eu com minha esperteza infantil tentava pegá-las ante de caírem no chão.
Depois ele me ensinou o "macete"(artificio), para o abacate amadurecer bem depressa. Para isso tens que "abafá-lo". Isto fazíamos colocando as frutas "inchadas" (uma etapa antes do total amadurecimento), entre os panos no caixão de roupa suja. Com mais 3-4 dias estavam completamente maduros.
Eita fruta boa danada essa do nosso quintal.
Abacate não tem gosto nem cheiro, a polpa verde amarelada feito às cores da bandeira brasileira, uma pena que ela não pode ser a fruta representativa do Brasil, pois é natural do México se não me engano.
Naquela época na nossa casa ele substituía a manteiga no pão da manhã, mais barato e mais sadio.
O que não se faz desta fruta, vitamina com leite, açúcar e gelo no liquidificador (aqueles que já possuía um desses), machucado no garfo, com limão e açúcar para sobremesa, sorvete com leite condensado, ou come-lo diretamente ao natural com ou sem uma colherzinha de açúcar e uns pingos de limão. 
No fim da minha vida fiquei sabendo que o abacate também é usado como verdura na salada com sal e vinagre. Virgem Maria tem mais usos do que a soja.

Outras vezes íamos apanhar (colher) araçás, depois das chuvas.
Eu trepava no pé de pau e ele apontava onde estavam as frutas no emaranhado dos galhos. Eu catava e ele as recebia e colocava numa lata grande de leite em pó. No fim, comíamos um bocado delas e o resto levava para as empregadas não antes que a minha mãe espiando (olhando) pela janela da saleta gritava:
- Não comam tanto araçá "inchado", faz mal, dá dor de barriga e "prisão de ventre", cospe as sementes senão entope as tripas, cuidado. Já viu, o Zeide dando mau exemplo ao neto malcriado. Cuidado menino pra não cair do pé de araçá. Ta tudo molhado da chuva e escorrega pra burro, cuidado menino!
Caso caia um cisco no olho de um de nós a empregada dava uns "sopros" e o cisco caia fora e não voltava mais, era um alivio. Essas empregadas do mato sabiam muitos macetes mesmo. Já viu tirar cisco de olho com sopro? Só nordestino mesmo!
O araçá maduro tem um cheiro muito bom que fruta nenhuma tem. Nem a manga Itamaracá que segundo minha opinião é a melhor manga do mundo, a polpa não tem fibra, doce danada e o caroço fino feito uma folha de papel.  É cheirosa também, porém nem se compara com o cheiro do araçá madurinho.
A geléia do araçá que fazia a nossa empregada era a mais gostosa do mundo (pelo menos do mundo que eu conhecia na época).  
Íamos também ver se as bananeiras no fundo do quintal. Algumas quando estavam "vingando" (pencas já amadurecendo), cortávamos aquelas pencas (cachos) para os passarinhos não beliscar. Levávamos para os quartos no fundo do quintal, pendurávamos até o total amadurecimento. Quem não comeu banana maçã amadurecida em casa (nada de carbureto) não sabe o que é bom e gostoso. Às vezes tinha também pencas de banana prata, dessas altonas, verdadeiros "espanadores da lua", mas meio insípida (sem gosto), boa só para banana frita ou "cartola"( uma sobremesa composta de bananas e queijo do sertão frito na caçarola). Quando éramos meninos comíamos esta delicia na sorveteria Nice, na Rua da Imperatriz, bem defronte da igreja da Matriz. Que bom lembrar desta delicia.
Quando vinha a lavadeira do meu avô, a dona Socorro na segunda feira trazer a roupa lavada, engomada, cheirando à "anil" e levar de volta a roupa suja, ele não estava à disposição para ninguém, nem para seu neto companheiro de conversas e aventuras no quintal.  
Ela era uma mulher beirando os 50, bonitona, cabelos grisalhos, escondendo o passado loiro e de olhos vedes. Era viúva, vivia em Paulista e para ter estes dotes deveria ser descendente de uma mistura com holandeses que viveram por aqui no passado durante 24 anos e devem ter deixado muito produto aloirado resultado de amores furtivos com o mulherio local da cidade. Ela com certeza era um produto dessa qualidade. Todos de casa sabiam quando a dona Socorro vinha com a roupa ninguém aperreava (perturbava em nordestino) ao senhor José. Ele se dedicava inteiramente a ela e a "roupa lavada"!
Quando ela entrava em casa, o rosto do meu Zeide irradiava luz e alegria.
Subiam ao sótão e se trancavam.
O encontro só acabava quando ela descia com a trouxa de roupa suja na cabeça e seguia para a parada do bonde para Paulista (Ou era Beberibe), desculpem já não me lembro mais é a idade), para lavar a dita cuja no "riacho das lavadeiras" que corria todo o ano na localidade.
Ela saia satisfeita do encontro. A amizade que se renovava duas vezes no mês, o pagamento que recebia toda vez que vinha entregar a roupa, mais um extra para duas barras de sabão amarelo ou de coco, passagem do bonde e pela "enorme satisfação" que causava ao meu avô.
As empregadas gozavam e cochichavam entre si:
- "Hoje dona Socorro saiu rica daqui".
- A outra dizia: "Não só de dinheiro", e caiam na gargalhada, ai seu Josef, seu Josef, hoje ganhaste mais anos de vida, olha só na cara dele quando descer do sótão para tomar banho. Vê como até as rugas desaparecem de tão feliz que fica!
Acho que esta "amizade" não era segredo para ninguém na nossa família.
Depois de velho quando eu conversava com meus primos, eles me confirmaram que sabiam disso ainda quando eram crianças, pois ouviam seus pais conversando em iídiche em casa e pensavam que os miúdos não entendiam. Eita avô "pai d égua".
Agora, não me perguntem nunca mais, por que ele nunca casou de novo depois que enviuvou na Áustria, Ok?
Parece que ele era daqueles que gostava das crioulas. Vá saber!
Hoje vê-lo sentado na cadeira de balanço no terraço, pálido, triste, e esperando o pior, era para todos nós de casa uma situação desesperadora.
O numero de amigos "bebedores de chá" no terraço, diminuiu quase para zero. Dizem que é sempre assim, quando estás com muita saúde e vitalidade os amigos são até demais, quando estás enfermo e depressivo, os amigos desaparecem.
Cabe salientar que alguns deles mesmo nesta situação "terminal" vinham e se faziam de não saber da situação e rolavam conversas até tarde da noite, isto animava bastante o meu avô.
Entre eles estava o velho Shwalbman que trazia jornais no dialeto iídiche, em geral muito atrasado, pois vinham por via marítima dos Estados Unidos.
Outros era a família Newman, conhecidos das conversas em alemão, a "língua mãe" deles e do meu avô. Sr. Kurt (der Becker), mestre em especialidades culinárias e guloseimas européias e sua esposa. Ela conversava muito com minha mãe na sala de visitas e tomavam um "shnaps" (licor de baunilha) com as "mil folhas", fatias do "Apfel shtrudel" (torta de maçã azeda) e Keis kuchen (torta de queijo) que eles sempre traziam nestas visitas e eram as especialidades do senhor Kurt. 
Ele infelizmente já estava altamente acometido de Diabete porem nunca se esqueceu de trazer estas lembranças culinárias germânicas do velho continente europeu. Desta família me lembro do tio Max e o respeitável chefe do clã o velho senhor Isidoro. (se me engano nos nomes favor desculpar, é a idade).
Senhor Goldberg, muito amigo do meu avô, depois de velho casou com uma "goia" (não judia) vinha de tempos em tempos saber dele, mas não entrava, conversava com minha tia Dina na porta do casarão pra saber da situação de saúde do seu amigo, o senhor Joseph.
De outros frequentadores amigos do meu avô não me lembro ter visto na ultima etapa de sua vida.

Uma noite isto aconteceu. Eu acordei com a correria de toda família pra lá e pra cá. 
Ele desceu do sótão meio cambaleando dizendo que se sentia mal, ânsias de vomitar e já - já desmaiava e dores na parte inferior do tórax. Trouxeram água, não quis beber. Telefone não era comum ter em casa na época para chamar a assistência (ambulância) e leva-lo para o Pronto Socorro, apesar de sabermos da situação da saúde dele, num momento como este todo mundo perde as "estribeiras" (controle em nordestino).
Meu pai grita para minha tia Dina a solteirona que vivia conosco numa sala no sótão, cujas janelas davam pro nosso quintal.
-Vai chamar um medico!
- Onde a essa hora da madrugada vou achar um medico? Respondeu apavorada a minha tia.
Minha mãe segurando umas toalhas brancas como neve e uma bacia com água morna caso o medico necessite.
Meu pai insiste:
- Corre na casa de dona Clara Bacal, lá tem telefone ou bate mesmo na porta.
Esta família morava defronte de nós. A filha mais velha é medica e para esta gente acudir a enfermos não tem hora.
Minha mãe: - Vai mulher, corre a situação esta preta, vê como ele está todo torcido de dores, vai, vai.
Correu minha tia, atravessou a rua vazia naquela hora da madrugada, bateu forte na porta, Demorou uns minutos e a velha Bacal abriu o postigo e só pela cara desesperada da minha tia, adivinhou o que se passava, foi logo chamar a doutora, ela veio de pijama e disse:
-Dona Dina eu sou medica legista eu não trato de pacientes vivos eu faço biopsia, autopsia, laudos para a policia...
Minha tia agarrou a sua mão e disse:
-Aí na placa na porta da sua casa diz:
Dra. Anita Bacal, Medico.
Não diz se é medico de morto ou de vivos, vamos menina!
Agora você para mim é o "salvador" do meu pai, vem ver o que se pode fazer, ele esta sofrendo muito.
-Ok dona Dina, me deixe ir buscar minha caixa de instrumentos médicos.
Eu não sei o que se passou depois disso, pois me tiraram da minha cama e deitaram nela o meu avô agonizando.
Levaram-me para o "Quarto das Bonecas", parecia um daqueles desenhados nas propagandas comerciais de moveis para crianças. Nunca ninguém dormiu lá e segundo o meu entender foi um quarto preparado para o nascimento de uma futura irmãzinha que nunca nasceu.
Ficou um quarto "mal assombrado".
Quando alguém perguntava o porquê de eu não querer dormir lá, tudo cheirando a novo, moveis coloridos, iluminação com abajours e lâmpadas coloridas parecia um quarto de nenê rico em Holiwood.  Foi comprado num remate do leilão Maia aquele junto da lavanderia Papaleo, na Rua da Conceição. 
Eu sempre dava a mesma desculpa
-Gente, aquele quarto está cheio de morcegos, d`eu dormir lá? Nem a "purso" (forçado)!
Estes bichos se enroscam no cabelo da gente e quando tu não dás fé eles te chupam o sangue das veias. Vige, eu dormi lá? Nem amarrado com cordas de agave e com nós cegos.  Deus me livre!
Como nesta ocasião a cama de meus pais estava vazia, saí de mansinho, tremendo de medo dos mal-assombrados e fui me deitar na cama deles.
Eu só sei o que se passou quando vi no dia seguinte a empregada limpando o sangue já seco na parede junto da minha cama onde Zeide estava deitado quando a doutora legista veio tratar dele.
Contou-me a minha tia que a doutora achou que meu avô estava com uma pressão muitíssima alta e que tinha o perigo de infarto ou derrame cerebral.
Imediatamente executou uma "sangria" perfurando uma veia grande no meio do braço e daí os espirros de sangue que vi no dia seguinte a empregada limpando.
Sorte que quase toda a casa era pintada com tinta a óleo de maneira que era mais fácil limpar com água e sabão.
Não sei também como levaram ele para o hospital Centenário.
Fui visitá-lo com minha tia dois dias depois. Por um lado muito queria vê-lo e por outro o clima que reina num hospital me deixava meio amedrontado.
Mas no fim fui e conversei com ele.
-Estou esperando o senhor sair do hospital para irmos juntos a um novo filme de Tarzan que está passando no Politeama, mas é proibido para menores de 14 anos. Indo com o senhor que conhece o senhor Tibúrcio, o porteiro do cinema, ele nos deixará entrar.
Prometo ir de sapato, paletó e gravata para parecer mais adulto. Juro! Sem isolar.
Meu avô mesmo na situação que estava riu e perguntou se no Cinema Moderno, não estarão passando (projetando, na língua do povo) um filme de mistério? Quem sabe era melhor que o de Tarzan.
-Sim, respondi, estão passando um filme de Hitchcock, mas este está proibido até 18 anos. Eu prefiro este de Tarzan, pois Jaimezinho, meu amigo, o filho de dona Inês,  me contou que ouviu dizer que lá aparece Jane nuazinha tomando banho com Boy no meio de meia duzia de jacarés. Boy estava boiando, sentado numa folha enorme de Victoria Regia. Este é o que eu quero ver, com Jane nua no meio dos jacarés. Concordas Zeide? Diga-me mais uma coisa, o senhor que é um "sabidão", como é que a verdadeira mãe do Boy deixa ele entrar naquela água cheia de jacarés ainda mais boiando numa folha e o besta ainda fica sorrindo bem juntinho dos jacarés e a Jane também não se importa.
Zeide, como a policia permite uma coisa dessas, perigoso da peste, tu sabes?
Ele já não respondeu e se eu não estava imaginando coisas, ele disse a minha tia em alemão: "Daqui deste lugar eu não saio vivo" e adormeceu. Deviam estar dando-lhe morfina.
Faleceu naquela mesma noite. Parece que não lhe deram nenhum tratamento, pois a coisa estava mesmo perdida. Anos depois me disseram que foi câncer no pâncreas que se espalhou para os ossos e quem sabe para aonde mais.
Nós judeus evitamos fazer autopsia, pois o corpo deve ir a Deus assim como faleceu, sem botar nem tirar nada. Segundo a "lenda" todos nós ressuscitaremos no dia que o Messias vier nos visitar para reconstruir o sagrado templo no monte "Har há Bait", no centro de Jerusalém. Uma promessa milenar que permite a um povo inteiro viver esperançoso e aguentar os dissabores do cotidiano.

Essa doença desgraçada não começou de repente, ele já era portador dela durante muito tempo, nunca reclamou e se sofreu dores aguentou como macho de verdade, não pediu compaixão ou ajuda de ninguém.
Os amigos nunca desconfiaram que aquele "gigante" estivesse se desmelinguindo, moribundo. Sempre estava de cabeça erguida e bem humorado.
No fim morreu o meu querido Zeide (avô em iídiche).

Não sei como o corpo voltou do hospital para nossa casa, mas isto foi um fato.
Era necessário preparar o defunto judeu para o enterro, segundo as tradicionais regras religiosas ortodoxas. 
O enterro seria no pequeno cemitério judeu no Barro.
Deveriam encomendar o carro fúnebre da casa Agra ou da Casa Batista e pedir que retirem os enfeites e símbolos cristãos do carro, importante que retirassem as cruzes e os santinhos que sempre acompanham o féretro católico, disso se preocupou o meu tio Jorge que conhecia o Bacelar, filho do dono da casa Batista.

No dia seguinte presenciei 15 a 20 segundos uma situação que me ficou gravada para o resto da vida no sub consciente.

Eu estava no meu quarto quando quis passar pela sala de visitas e chegar à saleta onde fazíamos refeições, sem intenção alguma vi o seguinte:
O corpo nu do meu avô estava em cima da enorme mesa de Sucupira aberta dos dois lados para possibilitar colocar o enorme corpo do falecido em cima dela.
O meu querido avô estava totalmente despido e só um trapo lhe cobria o órgão genital, mesmo assim algo do pênis e saco escrotal aparecia debaixo do trapo.
Na mesa algumas bacias cheias de um liquido (depois fiquei sabendo que era uma mistura da água e álcool) para lavar o corpo (das pontas dos dedos, de debaixo das unhas até a cabeça, inclui os cabelos).  
O defunto deverá ser colocado na sua sepultura, limpo de "cabo a rabo", sem levar nem um grão de poeira deste mundo.
Os encarregados desta tarefa são os membros da "HEVRE KADISHA" (Grupo Sagrado).
A verdade que fiquei tão desnorteado com o que vi, que nem contei quantos eram os que lavavam o corpo dele e faziam outras tarefas fúnebres. Talvez 10, como necessário num "Minian", este é o numero mínimo obrigatório de adultos judeus para abrir a Toráh (O rolo sagrado do velho Testamento da Bíblia) e rezar.  
Não deixavam nem um cantinho sem esfregar com trapos umedecidos no liquido das bacias preparado previamente.

O corpo balançava com a fricção de limpeza. A cabeça caia de um lado para o outro, às vezes abria os olhos, o corpo todo em cima da mesa se movia segundo as fricções dos "lavadores de defunto", dava a parecer que ali não estava um morto na sua ultima hora, antes do enterro.
De lado numa cadeira estava a mortalha que logo vestiria depois de lavado. 
Esta seria a sua ultima indumentária para ir-se ao reino celeste. 
Depois de vestido, ele ficou parecido com um anjo daqueles que estão nos quadros onde aparece Jesus, apóstolos, e anjos com azas e tudo.

Foi aí que vi uma cena das mais fortes que presenciei como menino e me deixou atônito.
Escutem bem, pois até hoje ando perguntando o seu significado.
Senhor Benjamim, um desses da "Hevre Kadisha", abriu a boca do meu avô para ver se ficou algo como dentadura postiça e se tivesse a retiraria, pois do mundo nada se leva, vais para a eternidade do jeito que vieste para cá ao nascer. Depois ele recebeu das mãos de senhor Lemle um saquinho de pano, abriu e derramou na palma da mão. Murmuraram uma prece e meteram o conteúdo do saquinho na boca do meu avô.
Não tive tempo nem de piscar, o grupo que estava tão atarefado nos seus afazeres preparando o féretro, de repente me descobriu e num sinal feito com os dedos, sem falar, me mostraram o caminho para que saísse imediatamente da sala de visitas, pois aqui não é lugar para menino, ademais com menos de 13 anos (no judaísmo só ao alcançar os 13 anos és considerado adulto e podes participar de todas as atividades religiosas).
Assim fiz, sai correndo feito um desesperado para a saleta e cai nos braços de Maria do Carmo a nossa empregada, eu mais ela choramos. 
Só fiquei sabendo depois de adulto que este conteúdo era de "terra santa" de Israel.
Perguntei o porquê deste costume e recebi respostas diversas, confesso que não fui perguntar a nenhuma autoridade rabínica (religiosa), mas a gente próxima das tradições judaicas.

Meu pai me disse; Para que sinta o gosto da pátria dos nossos ancestrais, pois nunca a visitou.
Um amigo que se tornou entendido da coisa, disse:
Não é na boca que põe a terra e sim sobre os olhos, pois nunca viu a terra bíblica do povo judeu que um dia foi a nossa pátria, esta pratica lhe permite ver a terra santa, coisa que não fez em vida.
O meu filho que andou se aprofundando nas nossas tradições disse:
Não se põe terra nem na boca nem sobre os olhos e sim debaixo da cabeça e a intenção é que descanse eternamente sentindo o conforto da "Terra Santa" dos nossos ancestrais para não estar com a cabeça no chão duro de uma terra onde fostes somente, um mero imigrante.

A religião judaica é muito versátil e se continuasse perguntando ainda chegaria a uma resposta que este costume não existe é tudo imaginação fértil de um menino besta, apavorado.

Mas eu juro por Deus e tudo que é sagrado, que vi colocarem na boca de meu avô um punhado de terra. Agora sei que esta terra seria proveniente da pátria ancestral do povo judeu.
Imaginação fértil uma ova, ainda acrescento mais, quando esfregavam o corpo do meu querido avô ele virou a cabeça pra meu lado e piscou para mim. Como querendo dizer: "Neto querido, tudo jóia, estou recebendo o melhor tratamento do mundo, nada de tristeza".
Eu nem tive tempo de piscar de volta, pois me mandaram marchar rapidinho para não presenciar o que não é para menino ver.

Juro Vô, eu te vi piscar pra mim, mas eles não deixaram eu piscar de volta, mas entendi o teu recado, vai com Deus meu querido vovô.
Não te esqueço nunca e fica sabendo que eu continuo te piscando, olhando para o céu quando quero saber de ti ou quero te perguntar alguma coisa que não entendo nesse nosso mundo tão desordenado e traiçoeiro.
Espero que estejas recebendo meus recados e me diz uma coisa, já encontraste teus pais, as personalidades sagradas, teus amigos "bebedores de chá" que se marcharam antes de ti? E o Brigadeiro Eduardo Gomes, João Pessoa, Luís Carlos Prestes, Sérgio Loreto, Juarez Távora, todos aqueles que admiravas, que os retratos deles estavam pendurados na tua sala no sótão, os viste por lá?
Ai desculpa vô, esses são "goim" (não judeus), eles deverão estar no paraíso com Jesus Cristo, verdade? É longe de onde vosmecê está?
Avozinho, tu já tivestes uma audiência com Deus, é necessário pedir permissão ou se vai diretamente a ele? Vô te pergunto por que queria te pedir um favorzinho, coisa de nada, garanto.
Na primeira oportunidade que tu encontrares com ele, pede pelo amor de Deus que me dê uma ajudinha para passar no exame de admissão, ta? A professora dona Eulina, aquela gorducha chata, disse a minha mãe que eu estou muito fraco em matemática e no português, já viu vô, eu levar pau no admissão? Minha mãe me mata e meu pai ficará satisfeito, pois sempre disse que sou burro e que me trocaram na maternidade, pois não tem menino judeu que não saiba a matemática. Faz este favorzinho meu Zeide eu te agradecerei a vida toda, prometo deixar de fazer traquinagem com o cachorro e correr atrás das galinhas e dos patos no quintal, juro por Deus! Combinado Zeide?
Bom meu querido, já lhe importunei em demasiado, repousa em paz! Não te esqueço nunca.

"NÃO SOMOS SERES HUMANOS PASSANDO POR UMA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL...
SOMOS SERES ESPIRITUAIS PASSANDO POR UMA EXPERIÊNCIA HUMANA".
(Desconheço a fonte)
 


Fim do capitulo
Paulo Lisker, Israel.
Todos os direitos autorais reservados.
Cuide dos créditos

  



6 comentários:

  1. Eng.Izaias Rosenblatt Recife
    DISSE:

    Eu conheço bem os costumes judaicos.
    Minha vizinha Ligia (filha de Ester Bender que fazia isso antes) é quem lavava as mulheres hoje. Isaac Essoudri lava os homens.
    Quanto aos cotidianos da vida no Recife nos anos 40-50, no ishuv ou não, mudaram por completo.
    a mesma coisa que vi em Israel com a juventude daí.
    As preocupações são outras. O mundo progrediu de alguma forma. Os jovens parecem ser os mesmos no mundo inteiro.

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  2. Eng. Izaias Rosenblatt Recife
    DISSE:
    Todos envelhecemos, e todos iremos um dia.
    Não sou muito fã de abacate, nem do gosto nem do óleo.
    Mas o pessoal diz que não tem fruta melhor que abacate com açúcar...
    o Recife ficou quente. acabaram as áreas livres e pomares cheios de arvores.
    Agora só tem concreto e asfalto. Sem ar condicionado ninguém aguenta.
    Você foi feliz, os meus avos foram mortos pelos nazistas...

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  3. Eng. I Coslovsky São Paulo
    DISSE:
    PAULO,
    MUITO BOM, LINDO, TOCANTE. PARABENS!!
    UM ABRAÇO
    ISRAEL

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  4. Dr. Ary Ruchansky Israel
    DISSE:
    Lindo, emocionante.
    Ary

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  5. Lic. Rosali Naslavsky Recife
    DISSE:
    Paulo,
    fiquei emocionada.
    Não o conheci,assim como seu pai e você.
    Não obstante sua descrição e sentimento são intraduziveis.
    Zeide e Bobe,foram sempre especiais para aqueles que os
    tiveram proximos.Para mim concerteza foram..
    Verdadeiros heróis.!
    Kol Hakavod para suas crônicas e em especial para esta!
    Shalom!
    Chochana

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  6. Dr. G. Krutman São Paulo
    DISSE:
    Olá Paulo

    É uma croniqueta de uma lembrança inesquecível, a convivência com os nossos avós.

    Tive a oportunidade de conviver pouco tempo com o meu avô materno, o mata galinha, porque ele saia cedo e quando ele voltava , eu me encontrava na escola e a tarde ele sempre estava rezando, pois era ortodoxo. O meu avô paterno ia em casa uma vez na semana, tomar chá com limão e chorar as pitangas para minha mãe, se queixando dos filhos que não ajudavam ele financeiramente.

    Um grande abraço
    Gilberto Krutman

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