O jogo do bicho e a comunidade judaica do Recife (Parte 2)

O JOGO DO BICHO E A COMUNIDADE JUDAICA DO RECIFE
(parte 2)Paulo Lisker, de Israel
Tema: Cuidados e informantes
Os imigrantes judeus que abordaram o Recife no principio do século passado acharam muita estranheza nos costumes da população local e não era para menos.
Andar descalço ou de tamancos, beber água da quartinha de barro. Criar uma ave que não é galinha, com penas verdes e vermelhas e que fala feito gente, já viu?
Dormir se balançando numa rede e não cair.
Comer feijão preto e carne salgada secada ao sol, mormente acompanhada de uma farinha grossa e sem gosto nenhum, feito de um "pau" esfarelado que na realidade é uma raiz de uma planta "selvagem e venenosa" (mandioca). "Got zol mich huphiten" (do iídiche: que Deus me livre e cuide).
Os costumes e hábitos da população original, (molpes, como os denominavam) era totalmente desconhecido e muito estranho para qualquer estrangeiro.
Assim viam as coisas estes provenientes dos rincões do leste europeu onde habitavam no passado.
Porém o mais estranho de tudo e incompreensível era o tal "jogo de bichos". Ouviram falar, mas não sabiam do que se tratava. Como dizia o ditado popular: "Ouviu o galo cantar, mas não sabia onde". Meu Deus, bichos, só isto era o que me faltava agora nesta "mata" * (diziam em iídiche: main Got noch dus hot mich guefeilt).
Com o tempo, "capengando", foram se adaptando a estes costumes que logo de inicio lhes parecia muito exótico e não facilmente aceitável pelos novos "usuários".
Porém aos poucos, conseguiram contornar as dificuldades e conviver com a população local sem grandes problemas de adaptação. Meio difícil, porem possível.
Já se via aqui e ali nas vivendas dos judeus do Recife, quartinhas de barro nas janelas abertas tomando vento para esfriar.
Quando ninguém olhava, a patroa experimentava caminhar de tamancos na casa cheia d'água com creolina nos dias de faxina, em geral nas sexta feira. Era o grande preparativo para o sábado a rainha dos dias da semana, segundo a tradição judaica.
Os ganchos de rede eram comum em quase todas as paredes da casa e as redes aí penduradas estavam em geral destinadas às visitas inesperadas de novos imigrantes ou parentes do alem mar que ao chegar pediam guarida até conseguir um lugar numa pensão decente.
Parece mentira, porém membros mais jovens da família, durante algum tempo após a chegada ao Recife, também dormiam em redes sempre quando esta ainda não contava com dinheiro suficiente para adquirir "camas de verdade" para todos, mesmo dessas camas baratas de remates em leilão.
Esta modalidade da compras de moveis de "segunda mão" era coisa corriqueira entre as famílias judaicas no Recife.
Por que ir muito longe, camas de lona e redes, até mesmo lá na minha casa estavam presentes para qualquer eventualidade.
No começo foi assim, não tínhamos camas suficientes para todos da família.
Em muitas casas de judeus podiam faltar camas para todos os familiares, porem se davam ao "luxo" de logo ao chegar em "terra firme" adquirir um filtro para água, desses com "velas" de barro.
Era o medo doentio das enfermidades tropicais.
Se já lembramos este apetrecho, vocês precisavam ver a quantidade de lodo (uma matéria verde e nojenta) que a água do Recife trazia pelo encanamento municipal e deixava grudada (agarrada, para quem não conhece o termo popular) na superfície das "velas de barro" de nosso filtro "sofisticado" numa semana de uso ou todavia em menos tempo.
Não durou muito e a assimilação das famílias judaicas aos costumes brasileiros, já se podia ver a "olho nu".
Foi quando apareceu o papagaio de estimação (chamavam de louro) e a "purso" (a força) queriam ensinar-lhe palavras em iídiche.
Falar português, não tem graça o "negocio é ensinar o louro a falar e praguejar em iídiche, isto sim!
Diziam os "gozadores" da época que no dia que o papagaio, o "louro brasiliense", falasse iídiche, aí o judeu torceria pelo clube Náutico Capibaribe, conhecido clube racista (sem negros, nem judeus).
Em geral ensinavam palavrões assim como: "meshiguener, kurve, kish mich in tuches, a krenk, guei in drerd arain, drek mit leiber, misse mishune, brenen zolste", cuja tradução seria respectivamente:
Maluco ou doido, puta, beija-me o rabo, peste, vai pro inferno, fígado de merda, feia e esquisita, que uma febre te torre... e muitas outras mais.
O idioma iídiche é de todas as línguas do mundo o maior possuidor deste vocabulário de pragas e insultos.
Os judeus da Europa durante anos, até a segunda grande guerra mundial eram considerados uns "molengas" (medrosos), porem boca para as pragas e insultos aos seus malfeitores, eram campeões e isto encontravam no lauto vocabulário do idioma iídiche.
Não se riam estes judeus eram "bons professores" e conseguiam fazer do "louro de criação" um falador de palavras do idioma iídiche que nem Shalom Aleichem, famoso escritor e poeta judeu neste idioma se envergonharia desta façanha. Coisa de louco ou de "louro".
No fim das contas o "pobre louro" de português só dizia uma palavra, "café", o resto de seu vocabulário era todo em iídiche.
Quem haveria de acreditar que o "louro" e a shikse (empregada em iídiche) aprenderiam a falar iídiche muito mais rápido que nossas mães e tias, o português. Pois é!
Pensavam elas que tinham o "nivel europeu", porem eram um tanto analfabetas em comparação ao papagaio brasileiro.
Bom, como já estavam se "abrasileirando" e se acostumando com o estilo de vida local era preciso galgar o ultimo obstáculo "desconhecido", o "Jogo do Bicho".
Inicialmente, tinham vergonha de perguntar e mostrar a falta de conhecimento sobre o tema, ainda mais sendo "europeus", como tal, deveriam ser mais cultos e entendidos em qualquer tema que dominavam estes matutos recifenses.
No tema "Jogo do Bicho" se "cagaram", não entediam bulhufas ou para "onde o vento soprava" (em iídiche: Vi ahin bluzt der vint).
Intimamente pensavam que isto não passava de numa conspiração contra os imigrantes que trabalhavam como ambulantes sem licença, praticavam comercio ilegal às escondidas na sala dos fundos da casa, vendendo algo que trouxeram da Europa, ou preparando uma "comida de marmita" para vender aos que necessitavam de um almoço lembrando o gosto da cozinha européia judaica, ou mesmo trocando "valuta" (moeda estrangeira).
Algo de escondido faziam estes judeus, esse era o pensamento da população local, caso contrario, como conseguiam sobreviver neste novo habitat?
A imaginação não parava de molestar e o pensamento era que alguém os está vigiando e anotando todas estas infrações por eles cometidas as escondidas.
Então aqueles senhores que estavam presentes em quase todas as esquinas eram sem duvida o agentes do governo local (depois ficaram sabendo que eram meros "cambistas"), sentados na rua num tamborete diante de uma mesinha. Sem duvida nenhuma eram funcionários do governo e estavam li para espionar o comércio ilegal que faziam os judeus em casa.
Todo o tempo fazia anotações das "infrações" realizadas pelos imigrantes. Umas dezenas de "informantes" traziam a cada momento mais e mais "informações" e o agente registrava num talão e até dava uma copia para o informante.
Este "agente" com certeza levava toda esta informação para prefeitura ou para a delegacia de estrangeiros.
Por outro lado os "informantes" até dinheiro recebiam no fim da tarde, eles apresentavam um recibo cheio de números e recebiam o seu "pagamento pela informação". Outros, cuja informação era falsa ou rejeitada pela "administração", só podiam invejar, pois não recebiam nem um tostão furado.
Agora sabemos de onde vem o tal nome "Jogo do Bicho", estes bichos são as "senhas" que avisavam aos "informantes" a hora e local do pagamento pelo importante trabalho deles.
A "senha" só era revelada no fim da tarde, ela sempre era um "bicho", por exemplo: Vaca, Veado, Leão, Peru, Borboleta e assim por adiante.
A imaginação ia a todo vapor! Era o complexo do eterno culpado.
Tudo corria as mil maravilhas, aos pouco até começaram a entender este "fenomenal serviço de informação" que nem o Tzar da Rússia possuía. Então todo cuidado era pouco.
Cuida-te homem, estão te vigiando, não estás vendo aquele "cara de pau" sentado na esquina e que não para de anotar o que os "informantes" estão trazendo a todo instante pra ele.
Então aconteceu o pior.
Um belo dia apareceram uns agentes, supostamente policiais, todos de civil e levaram presos (encanados) no "tintureiro" (camionete de dor preta com sirene e tudo mais) para a delegacia os tais senhores recebedores das informações (cambistas ou banqueiros).
Lá na praça contaram que o motivo desta investida policial foi a roubalheira que estes canalhas fizeram quando não pagaram aos "informantes" o dinheiro que tinham direito.
Só muito tempo depois os judeus ficaram sabendo que isto nada mais era que um jogo de loteria proibida por lei e que naquela oportunidade realmente foram presos na "batida" da policia, os cambistas, banqueiros, bicheiros e todos que estavam envolvidos nesta loteria ilegal.
Mas não por muito tempo, já no dia seguinte estavam lá nas esquinas, se não os mesmos cambistas, outros em seu lugar e o jogo continuava como se nada houvesse acontecido.
Brasil, brasileiro, Deus é grande e também é brasileiro, natural de Belém.... do Pará. Com um "pistolão" desses não tem quem possa acabar com o "jogo do "bicho", nunca na vida!
Pobres imigrantes, sempre açoitados pelo "mal assombrado" de qualquer coisa.
Até o "jogo do bicho" se transformou num complot contra o imigrante judeu, vejam onde leva a ignorância, mesmo que vieram da Europa e pensavam que eram o "Dunga".
*Mata - Grande parte da área geográfica do "Grande Recife" estava coberta da chamada "Mata Atlântica" e de "Terras Marinhas" acometidas a frequentes e severas inundações.
De mosquitos e maruins, nem se fala. Tudo revelava que o Recife era uma mata de verdade. Agora vá convencer aos recém chegados judeus, que nessa mata não tem "bichos".
Fim da segunda parte.
15/02/2012
(Todos os direitos autorais reservados)
ResponderExcluirA.Berdichevsky-Israel
DISSE:
O Paulo e' bom mesmo!
Suas cronicas do cotidiano judaico em Recife,as minucias da vida dos imigrantes europeus nas terras,ainda ,desconhecidas para aqueles pobres judeus,são de um sabor yidish a toda prova.Parabens.
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Dr. M. ROSENBLAT- Israel.
DISSE:
Como sempre, um ótimo artigo.
E eu adoro dormir em rede!!!
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Eng.IZAIAS R.- Recife
DISSE:
Eu entendi seu proposito, Paulo.
Estava só relatando o que acontece hoje.
Longe de mim desmerecer suas excelentes recordações.
Muito pelo contrario, são dignas dos maiores elogios.
abcs
Eng.IZAIAS R. Recife.
DISSE:
(complemento)
Só posso dizer que o jogo do bicho, apesar de toda a repressão policial, continua firme e forte, toda esquina tem uma banquinha, tem uma associação forte, a AVAL, e hoje todas as rodadas são feitas digitalmente e informadas da mesma forma.
Mas os judeus hoje são formados, profissionais liberais, e não tem mais essa ligação com o jogo como no passado.
E como tem muitas loterias federais dando prêmios altíssimos, com probabilidades quase nulas (a "Mega Sena" é uma chance em 65 milhões...), sem falar nas estaduais, e um monte de rifas, ninguém mais faz disso uma grande questão.
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ResponderExcluircyl gallindo Recife
DISSE:
Assunto: Enc: Re: Enc: O jogo do bicho e a comunidade judaica do Recife (2)
Já que você não dispensa nem o sábado de Zé Pereira - Galo da Madrugada - eu também não lhe poupo.
Li o trabalho e o enviei para um casal amigo (judeu) da medula e a resposta está aí. Eu irei guardar as duas, ambas são interessantíssimas.
Abraços,
Cyl Gallindo
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Li e Igor Recife
comentam:
Cyl, excelente texto!
Faço algumas observações: o suposto complot tem muito mais a ver com as perseguições sempre sofridas do que com algum complexo culpabilizador. Os judeus não chegaram aqui pra curtir o sol e os resorts... Eles foram expulsos pelos czares, suas casas foram roubadas, queimadas, garotas estupradas, famílias fugidas com a roupa do corpo... A história da minha família é essa, chegaram aqui mais ou menos nos anos 20, pobres e com uma criança recém-nascida, porque minha bisa deu à luz no navio.
Lá na Romênia - Bessarábia éramos matutos também. Não existe essa superioridade em relação ao brasileiro. Éramos europeus paupérrimos. A minha bisa Rachel, mãe de vovó, lavava roupa esfregando a areia da beira do rio. Lavava da família toda, tinha uns 5 irmãos. Quando finalmente pôde pagar uma chicsa pra lavar suas roupas, achou que era rainha. Nunca tinha experimentado tanto luxo na vida. E minha avó passou toda a infância e adolescência com um sapato por vez. O da escola e o da festa era o mesmo. Em compensação, a casa da rua Velha tinha 7 quartos e o investimento em educação era o mais alto. As irmãs tinham um esqueleto em casa pra estudar. A mais velha é médica, a do meio era contadora formada com 19 anos, e vovó, dentista. Mas sapato? Roupa de festa? Lanche na escola? Nem pensar.
E sobre os palavrões, é uma pena eu não ter sabido disso antes, pois teria incluído na minha dissertação. Tem tudo a ver com o humor judaico! A agressividade contra o algoz é o mote do nosso humor. Preciso aprender esses palavrões, é muito bom xingar! A gente se liberta!
E a rede de Branca Dias? Dona de propriedade em Olinda, essa judia foi capturada pela inquisição porque deitava na rede no sábado, e seus escravos não trabalhavam. Mandada pra Portugal, morreu por lá. Tem um roteiro histórico judaico em Recife e Olinda feito pela sinagoga da rua do Bom Jesus (rua dos Judeus).
Você conhece o autor do texto? Fiquei curiosa em saber mais sobre ele seus escritos.
Obrigada pela lembrança, amei ler isso em pleno shabat!
Tenha um bom carnaval e cuidado com a chuva pra não ficar gripado novamente! Tô doida pra ver o blocos no Recife Antigo, mas assim não dá...
Beijos,
Li e Igor. :)
Enviado via iPhone
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"cyl gallindo" escreveu:
Recife,
Cara amiga Liana /Igor
às vezes é bom saber os caminhos percorridos pelos nossos antepassados.
Este trabalho é curioso e foi feito por um judeu.
Bom carnaval para vocês.
Cyl Gallindo