quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O COMUNISTA (Parte 1)



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O COMUNISTA (PARTE 1)
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Paulo Lisker, de Israel
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Jorge era um garoto nosso amigo.
Filho de um casal de judeus alemães que morava na esquina que dava de cara com a entrada da Ilha do Leite.
Esse casal estava longe de qualquer tendência de esquerda, o pai Sr. Waldir depois que imigrou em tempo, antes de Hitler, abriu junto a Ponte Velha, uma pequena empresa de ladrilhos decorativos para cobrir o chão e paredes das casas de ricos no Recife aristocrático.
A mãe, dona Gisela tinha seus estudos europeus, não completos, mas algo tinha.
Ela nunca se entrosou no meio recifense em geral e do judaico em especial.
Não falava o português afora o essencial para comprar alimentos na venda de dona Rosa na Rua da Matriz que entendia o alemão dela. De alguma forma era parecido com o iídiche, dialeto que trouxeram os judeus para o Recife e as Américas em geral e vem dos tempos remotos em que habitavam na Europa.
Ela sofria no Recife. A sorte foi que trouxe um baú de livros em alemão e outros mais que o senhor Abreu, o dono do famoso "Sebo" da Rua do Hospício lhe trazia em casa grátis.
Naquele tempo do nazismo na Europa ninguém queria comprar tal mercadoria e ser identificado como germanofilo (ou nazista, quem sabe).
Aquele que tinha estes livros em casa queria se livrar deles o mais rápido possível, os levavam de noite para o "Sebo" e os deixava grátis, junto da porta de entrada do estabelecimento.
A vida de dona Gisela era ler centenas de livros que estavam nas estantes e empilhados nos cantos das paredes da casa.
Minha mãe, dona Anna, que também veio daquela cultura, (Áustria) era uma de suas poucas amigas, pois tinha de que falar quando a visitava no pequeno "palacete" na entrada da Ilha do Leite.
O assunto das conversas em alemão era a literatura germânica, os fenomenais escritores e filósofos das épocas bonitas, das valsas, do Danúbio Azul e recordações dos tempos que o vento levou.
Eu ouvia a minha mãe fofocar com suas irmãs, que é muito difícil ir tomar chá com "kichalach" (uns biscoitos de formula caseira judaica a base de manteiga e passas brancas) com dona Gisela, pois como na época não tinham telefone para combinar, então às visitas eram de "supetão".
Assim sendo, nem sempre ela estava em condições de receber ninguém, o sinal era quando ela aparecia na janela com um xale envolto na cabeça e óculos escuros. Isto era sinal das "enxaquecas" que sofria (dores de cabeça violentíssimas que a acometiam a três por quatro).
Ela se desculpava e o encontro ficava adiado para outra oportunidade.
Quando ela estava bem de saúde, vivia resmungando em alemão:
"Kaine cultur dá, garniks gut in brazilien, auch das klimat is aine chaisse. Main Got, vohin iz maine familie gekomen, vai mir in leiben"!
(Aqui não existe cultura, nada de bom aqui no Brasil, e o clima uma merda. Meu Deus aonde minha família veio se meter, ai da minha vida).
Se ela soubesse ler jornal (radio não tinham) estaria o par de algo que os judeus estavam passando na Europa, baixo o regime nazista de Hitler. Então, nem as "enxaquecas" lhe dariam pretexto para resmungar contra as condições de vida no Brasil, mesmo naquela época do Recife Matuto.
Tinham um filho mais velho, Iulius, este parece que veio pequeno da Alemanha e ao terminar os estudos se mandou para São Paulo e lá em pouco tempo se arrumou e foi de "vento em popa" como representante de firmas nacionais e internacionais. Nada de idéias vermelhas ou proletárias.
Jorge o caçula, garoto sarará, estudava no Colégio Americano Batista, na Praça do "Peixe Boi" quando eu ainda estudava no colégio Hebreu Brasileiro na Rua da Gloria.
Quando chovia muito, e no Recife na época caiam aguaceiros que não era brincadeira, relâmpagos e trovões de fazer medo.
Quando depois dos fortes aguaceiros começavam as enchentes do rio Capibaribe lá pro lado da Ilha do Leite, então Jorge, voltando do colégio passava lá pela nossa casa, almoçava, secava as roupas, fazia os deveres e se possível mandavam ele com o empregado Capitulino de volta a sua residência, para que sua mãe não ficasse receosa com este atraso do filho.
Quando este garoto virou simpatizante do comunismo, ninguém sabe exatamente.
Existem teorias, mas nenhuma explica como uma pessoa jovem que nada lhe faltava na vida, envereda nesta trilha que só causaria a si e sua família sofrimento e transtorno.
Ao saber da coisa o irmão Iulius, voltou de São Paulo e tentou convence-lo de ir morar com ele no sul do país, estudar lá e depois coloca-lo num posto de uma enorme firma comercial americana de importação e exportação, com filiais em toda América do Sul.
Foi como "falar com a parede", Jorge nem se despediu, saiu e foi morar numa comuna de jovens da sua idade. Era um Seminário para frades em Goiana, organizado pelo bispo Baltazar e que dava guarida a estes jovens com as "idéias avançadas" naquela época de juventude politizada no Recife Matuto.
Outra "teoria" dizia que ele saiu "clandestino" com um grupo de comunistas para um "Festival da Juventude pela Paz na Iugoslávia" e de lá ele já veio totalmente imbuído da causa proletária e que Stalin era o "Sol dos Povos".
Poderia ser também o clima político de esquerda que sempre prevaleceu na capital pernambucana.
Recife, assim como Porto Alegre sempre foram os redutos pioneiros dos movimentos de esquerda, deu prefeitos, governadores, gente dos meios artísticos, jornalistas e na academia. Então era fácil concluir que em algum momento este "vírus" contaminou o jovem judeu pernambucano.
Interessante que Jorge nunca frequentou os meios sociais judaicos em geral, ou pertenceu a algum movimento juvenil com orientação de esquerda em especial e eles existiram no Recife durante anos.
Um deles, o movimento de tendência esquerdista, era o "HASHOMER HATZAIR" (em Hebraico: "O Jovem Guardião").
Muitos dos meus amigos lá formaram o seu caráter, receberam educação humanista informal e se tornaram amantes da paz entre os povos, defensores dos direitos humanos e das Democracias Populares etc, etc (verdadeiros "inocentes úteis" na época).
Hoje são "boa gente" tanto no Brasil como em Israel para onde parte deles emigrou.
Este movimento frequentei e tive a honra de pertencer a sua diretoria.
Um período da minha juventude fui também um dos dirigentes de grupos de idade menor que a minha.
Este movimento me acompanhou até que terminei meus estudos superiores de Agronomia.
Ao terminar, como pregava este movimento, imigrei para Israel, com a intenção de fomentar neste país o socialismo nas áreas rurais.
Para Jorge com certeza este movimento não era suficientemente radical, não pichava os muros da cidade, não colava anúncios subversivos nas paredes, não fomentava greves, não formaram bandos armados, não raptavam aviões para Cuba, ou embaixadores de paises capitalistas!
O movimento judaico de esquerda era para Jorge, um bando de "frouxos molengas" e o socialismo deles era só para "inglês ver", nada mais.
A policia, seu departamento especial contra elementos subversivos do partido comunista, não pensava assim e investigou também este movimento judeu,
"Visitavam" a sede, levavam o que achavam de "subversivo", (jornais de parede, revistas dos paises de regime comunista, Albânia, Polônia, União Soviética, China etc, fotos de grupos em passeios fora da cidade, lista de contribuição mensal dos integrantes) e deixavam a sede em pandarecos.
Mas tudo bem, não houve vitimas só uns empurrões e dano material. Isso o pessoal no dia seguinte arrumava de volta a seus lugares de costume, até a próxima "visita".
As casas dos dirigentes deste movimento juvenil também eram "visitadas" logo bem cedo de manhãzinha pelos "intrépidos agentes antisubversivos". Na época chamavam "fazer batida".
Em geral era em busca de "literatura vermelha subversiva", se tivesse sorte e achassem algum dirigente em casa, explicavam para a mamãe que estão cumprindo ordens e o jovem deverá os acompanhar para a Chefatura para uma rápida investigação e logo mais estará de volta, que não se preocupe.
A coisa não era bem assim, às vezes os interrogatórios duravam horas e se já pegaram um "pássaro vermelho", ainda mais judeu, ficava "encanado" com os demais "comunas" na prisão da chefatura, até que alguém da comunidade o tirava mediante fiança, até a próxima "batida" dos guardiões da democracia anti-subversiva.
A mamãe, sempre muito educada oferecia um café, torradas com manteiga e geléia de araçá aos agentes, que nunca recusaram. Sentavam e comiam antes de cumprir as ordens recebidas dos seus superiores.
Jorge de vez em quando era visto em "carne e osso" no prédio do prelo da Folha do Povo (Jornal do Partido Comunista de Pernambuco), na Praça Sergio Loreto.
Ele era ativista de verdade mesmo.
Em diversas ocasiões dispararam na sua direção quando colava cartazes nas paredes anunciando algum comício com a participação de lideres vermelhos ainda em liberdade ou distribuindo folhetos nas ruas da cidade com as "Frases Filosóficas do Cavaleiro da Esperança", Luís Carlos Prestes, comunicando alguma atividade grevista promovida pelo partido comunista.
Com o passar do tempo ninguém viu mais Jorge, sabíamos dele quando nos jornais da cidade relatavam que a policia deu "batidas" nas células vermelhas e levaram presos "perigosos subversivos" e lá estava também a foto do nosso Jorge, mesmo que espancado, sujo, camisa rasgada, mas nunca deu o braço a torcer e para os fotógrafos dos jornais da época, sempre estava de cabeça erguida fazendo o sinal da vitória, um v de dedos.
Comunista orgulhoso era Jorge, este jovem judeu pernambucano.
Para sua pobre mãe era um verdadeiro suplício.
Só isto lhe faltava (o seu menino, "a três por quatro" na cadeia) para atiçar as suas violentas "enxaquecas" que a deixavam de cama no escuro até que Deus, somente ele, poderia aliviá-la deste calvário.

(Fim da primeira parte da serie O COMUNISTA), 20/12/2011

Nota do autor:
A colônia israelita no Recife foi ao inicio do século XX um grupo bastante homogêneo apesar de que seus componentes eram originários de uma dezena de paises da Europa, na maioria do leste.
Imigraram de cidades e aldeias distintas, a maioria delas interioranas e bastantes atrasadas.
Traziam um idioma comum, o iídiche, este tinha logicamente as suas nuances segundo os paises de origem, porém entendível a qualquer judeu europeu.
Este jargão foi uma grande sorte para este povo, produto da secular dispersão pelo mundo afora.
Isto os unia como comunidade, não só no Recife, e tinha como meta principal adaptar-se o mais rápido possível a "nova pátria" com êxito e não se constituir um fardo para ninguém.
Com o correr dos anos, apareceram as incompatibilidades, as divergências e distintas tendências ideologicamente opostas, igual como em todo o mundo no século XX.
A comunidade judaica aos poucos deixava de lado as suas tradições milenares, assimilava-se rapidamente e se assemelhava a população geral, e assim ela é até hoje.
Noticias que me chegaram até aqui na "Terra Santa", diziam que ultimamente, alguns pequenos grupos estão buscando voltar aos costumes tradicionais e religiosos judaicos, amparados por autoridades rabínicas. Que Deus os ampare. Dizem que nestes grupos que estão voltando às raízes estão entre outros, também os filhos e netos dos que eram no passado próximo os comunistas judeus do Recife.

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