sábado, 10 de agosto de 2013

AS VENDEDORAS DE INGRESSOS (Parte 2 , final)

 DE MAIO DE 2012


As vendedoras de ingressos (2ª parte)


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AS VENDEDORAS DE INGRESSOS (2ª parte)
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Paulo Lisker, de Israel

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Em geral, quem fazia o trabalho de vender ingressos, para as realizações festivas, eram as senhoras judias e, em alguns casos, tambem os jovens da comunidade. Elas conheciam os endereços de todas as pessoas, dividiam a cidade em trechos, e sabiam qual à hora mais propícia para encontrá-las em casa, ou nas lojas, no comércio. Quem se recusaria a comprar um ingresso, dar um donativo para uma causa justa, ou para uma comemoração no clube da sociedade israelita, quando duas senhoras, com suas melhores vestimentas, chegavam a elas? Quem?

Ninguém ou, melhor, quase ninguém queria se passar por "pão duro" (mesquinho), ou "ha-tshvok" ("um prego", em iídiche). A palavra ha-tshvok , se não me engano, deriva da linguagem usada pelos comerciantes judeus, quando queriam insinuar que um determinado cliente se desvencilhava, constantemente, de pagar as prestações semanais ou mensais, pela mercadoria comprada ao prestamista. Tais clientes, às vezes, até desapareciam, e nunca mais eram vistos pelas vizinhanças: dinheiro e mercadoria estavam perdidos (Do iídiche, avek guevorfene schoire und guelt).

Bem, os prestamistas já conheciam aqueles aspectos negativos de sua freguesia. 
Diziam: -São os "riscos da profissão", em linguagem profissional. Então, por que utilizar o termo tshvok (prego)? A explicação mais razoável era a de que, em sentido figurado, “pendurava-se” a dívida contraída. Esta ficava inerte, igual a um prego na parede. Como a esperança é sempre a última que morre quem sabe, um dia, o freguês voltaria do seu esconderijo e pagaria o que devia? Penso alto, comigo mesmo: vai ver que é por isso que os judeus acreditam no Messias, o Salvador.

O que os clientes "pregos" não sabiam era que, tal informação, corria rápido como o vento. Com bastante velocidade, um boato logo se espalhava para todos os prestamistas judeus da cidade. Resultado: nunca mais a pessoa poderia comprar algo deles, à prestação.

Em tempo, seria bom acrescentar que as lojas, naqueles anos, não tinham o costume de vender a prazo, especialmente a um desconhecido molpe (índio), que, muitas vezes, não possuía qualquer documento de identidade. Cabe registrar que, grande parte da população pobre, morava nas áreas suburbanas, em mocambos ou barracos, sem um endereço específico. Conhecedores deste fenômeno, os molpes não se aventuravam a buscar a solução em uma loja do Recife. Como se dizia em linguagem popular: "O tiro saiu pela culatra". Enganou o "galego prestamista”? Deixou de pagar as prestações? Fugiu o “cabra safado"? (der molpe shtinker iz farshvunden). Em outras palavras: Lascou-se!

Na colônia judaica já existia, também, uma pequena lista de judeus tshvekes (o plural de tshvok), os tais "pães duros". 
Para se tirar um vintém deles, dava muito trabalho, e custava muita "lábia" (arte),  para vender um ingresso para alguma festividade organisada pela comunidade ou receber um donativo para alguma ação beneficiente.

Mas, as senhoras que saíam para vender os ingressos, ou convites, conheciam os seus clientes e estavam preparadas para este "jogo de xadrez". Era "cérebro versus cérebro", os judeus sempre se vangloriavam de tê-lo e, as mulheres, mais ainda. É a chamada intuição feminina! Poderiam ganhar ou perder, porém, em geral, saíam vitoriosas. E, cabe ressaltar que, nenhuma delas, tinha diploma universitário de "diretora de vendas", como as de hoje em dia! Elas empreendiam esse trabalho caminhando a pé, sem qualquer ônus para a organização patrocinadora do evento cultural. Elas estavam dispostas a fazê-lo tantas vezes quanto fossem necessárias, e, durante todo o ano, com sol ou na chuva, protegidas, unicamente, por uma sombrinha.

As senhoras dona Mira Berenstein e dona Dina Troper formavam uma dupla "infernal", como "vendedoras de ingressos". 
Elas não aceitavam as desculpas dadas pelos tais judeus "tshvekes" (Pregos"). 
Eram bem conhecidas na colônia e, todos os integrantes de sua lista, sabiam que ninguém as "enrolava"(Enganavam) com desculpas tolas, ou seja, ninguém podia escapar: era "tiro e queda" (99 % de êxito nas vendas). 
Quando elas despontavam nas esquinas das ruas, em direção às casas ou lojas dos judeus do Recife, o ocorrido era considerado  como os dias de azar, daqueles "pregos".

Contam, entre outros fatos antológicos, que, certa vez, o dono de uma loja de móveis, o Sr. Humberto, se escondeu atrás de um guarda-roupa, mandando o empregado dizer que ele estava no velório de um freguês. Ao que a senhora Dina disse ao empregado: 
-“Já que estou aqui, gostaria de comprar esse guarda-roupa”. E, no mesmo instante, pediu que chamassem os carregadores para levá-lo à sua casa. Claro que o "escondido" saiu do esconderijo, perguntando ao empregado onde colocara o seu chapéu, uma vez que, detrás do guarda-roupa, não estava. O empresário não teve qualquer alternativa, a não ser, cumprimentar as senhoras. Esclareceu o preço do móvel e fez, até, um razoável abatimento (desconto, ou redução de preço). Em seguida, disse que estava apressado para sair. Sem dar nem mais uma palavra, comprou os ingressos para toda a sua família. Seu empregado ficou rindo da situação...

Outro caso engraçado ocorreu na alfaiataria do Sr. Hugo, um famoso "pão duro", também. Para não comprar os ingressos, ele alegou a impossibilidade de estar presente na festa, pelo motivo do seu sogro (der alter Weismuler), estar hospitalizado, em estado grave (gueferlach krank). Disse que ele e a esposa estavam se revezando, no hospital, durante todas as noites. As senhoras não se deram por vencidas e retrucaram: 
-Sr. Hugo, nós voltaremos no próximo ano, esperando que essa situação passe rápido e, desde já, deixamos os nossos sinceros pêsames. 
O empresário empalideceu, parecia que estava vendo a imagem da morte em um dos espelhos da loja. Engoliu em seco se mandou para o banheiro, batendo nos móveis no caminho da correria. 
E, não é que, ao anoitecer, o "pão duro" enviou um dos seus empregados à casa da senhora Dina, com o dinheiro para dois ingressos, além de um donativo para a ONG Relief! Mandou dizer que havia recebido uma boa notícia, que o sogro tivera alta do hospital e já estava em casa, no bairro da Madalena. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, a mentira seria descoberta, e resolvera remediar a situação vergonhosa, em tempo, pois a imagem da morte, aquele vulto coberto por uma capa negra, não lhe saía da cabeça. 
Dona Dina agradeceu, e estimou melhoras ao sogro do senhor Hugo. Naquela mesma noite ela prestaria contas à senhora Amália Muchnick, a tesoureira (a filha do shohet e moel, Sr. Gedalia, que realizava o abate de aves e animais, e praticava a circuncisão), relatando que conseguira vender ingressos para a festa ao senhor Hugo, um dos maiores "pão duro" da comunidade.

Dessa maneira, se poderia contar várias outras estórias, de como os tshvekes agiam para se desvincilhar da compra de ingressos, ou dar donativos para as ONGs. Situações ridículas!

Em tempo, seria bom salientar que outras senhoras, não menos famosas que a dupla acima citada, atuavam como vendedoras de ingressos: Sonia Rosenblatt, Rosita Ferman, Esther Longman, Sara Fainzilber, Augusta Vainstein, Zina Blanche, Amália Muchnick, entre tantas outras.

As famílias judaicas estavam concentradas, em sua maioria, no bairro da Boa Vista e adjacências. Havia, também, uma minoria que, por vezes, residia nos subúrbios, nos bairros da Madalena, da Torre, do Espinheiro, dos Coelhos, de Afogados, de Beberibe, e outros. Custasse o que custasse, porém, toda a colônia judaica, cerca de duzentas famílias  era visitada pelas vendedoras de ingressos.

Acontecia que, ás vezes, as relações dantes amistosas, com algum "pão duro", mudavam um pouco depois das discussões ocorridas, mas, com o passar do tempo, voltavam à normalidade.

Parece até que, ser tshvok, é uma característica humana de várias pessoas e, para modificar esse conceito, era necessário muita "água e sabão". Em outras palavras, levava tempo e, nem sempre, o fato era esquecido pela comunidade. Por outro lado, a fama de tshvok não era, necessariamente, comum entre os pobres, já que eles recebiam das ONGs os ingressos gratuitos, porém, entre os "novos ricos" estes eram quem mais se recusavam a comprar os ingressos. Havia pessoas que, passados cinquenta anos, ou, mesmo, enterradas no cemitério do Barro, ainda eram lembradas como tshvekes. Era comum se dizer: "a mul a tshvok, eibik a tshvok" (uma vez mesquinho, será sempre mesquinho).

Agora, imaginem o filho ou o neto de uma dessas pessoas, ouvindo um comentário do tipo: -Estás se referindo ao Armandinho, o filho/neto de Moishe der tshvok? 
O risco era grande demais! Neste sentido, o que representavam cinquenta mil réis por um ingresso, para uma noite cultural no Centro Israelita, produzido pelos judeus e para os judeus? Não representava nada! Sendo assim, a lista de tshvekes era bem reduzida. Quem sabe, depois que tais pessoas se conscientizaram da importância das ações beneficentes, este fenômeno desapareceu? Quero acreditar que sim!

As senhoras vendedoras de ingressos, ao analisar os nomes e endereços nas listas que deveriam visitar, davam, de vez em quando, um suspiro: 
-"oi, is er a tshvok" (ai tem uns "pregos", nem imaginas). 
Elas estavam imbuídas de uma meta importante, que se resumia em ajudar a manter vivas as artes e tradições judaicas. Era uma missão quase que sagrada. Logo, não mediam esforços para ter êxito em suas vendas.

A meta final era uma tarde musical, uma noite de leitura, ou a encenação de peças de teatro, de algum escritor ou poeta europeu judeu, uma tarde infantil (como a festa de Purim, "baile de fantasias" para crianças), ou um bingo, em um domingo calorento do Recife. A diversão e a alegria amenizavam o calor no salão do primeiro andar da Sociedade Israelita, que nunca possuiu ventiladores ou ar refrigerado. Em geral, eram distribuídos, de forma gentil e gratuita, sanduíches de pão de caixa e queijo do reino, comprados na loja Fênix, da Rua Nova, e um guaraná Fratelli Vitta (comprados, diretamente, na fabrica). As sobras eram entregue ao vigia do Centro Israelita, na Rua da Gloria, o Sr. Manuel - que morava numa casa rústica, no fundo do terreno na Rua da Gloria.

Todas as atividades culturais eram realizadas no CIP (Centro Israelita de Pernambuco) que, no segundo andar, tinha um salão bem grande (apreciado pelos meus olhos de menino); um palco, de verdade, com vários apetrechos de decoração e, inclusive, um lugar para o "sopra-texto", e as cadeiras para o público, que eram arrumadas antes das atividades.

O salão centenário servia, ainda, como sinagoga, nos dias de festas religiosas e casamentos na comunidade, com a hupá (uma cobertura ou palio), onde, debaixo dela, era realizado o ato religioso da leitura da ktubá, (um compromisso dos itens aceitos por ambas as partes, a indenização por divórcio, a divisão dos bens, a ajuda aos filhos do conjugue até alcançarem à maioridade, caso existissem no ocorrido). O espaço era utilizado, também, para as noites de baile, com danças animadas, conduzidas pelo apresentador Rui Adler e a orquestra da Jaz Band Acadêmica, sob a regência do mestre Capiba, um amigo muito querido da colônia israelita. Tinha um tempo que ele morava na Pensão Internacional, pegada a minha casa e de vez em quando fequentava a nossa casa e tomava um café com um bocado das tortas ao estilo vienense que minhas tias eram especialistas.

O iídiche era o idioma que mantinha toda a comunidade, no mesmo denominador comum.

Hoje, passado mais de meio século, acredito que a nossa sociedade era matriarcal, por excelência. As mulheres eram aquelas que mandavam na vida cotidiana. Os cuidados com a casa, a criação e educação dos filhos, a contratação de empregadas, o pagamento das contas das vendas, e tantas outras obrigações corriqueiras, eram elas que faziam, e se empenhavam, seriamente, em perpetuar a cultura e tradição judaica. Por sua vez, os homens passavam o dia e a noite trabalhando em atividades comerciais, atarefados com o sustento da família: a aquisição do parnusse, ou "ganha pão" (em iídiche, termo derivado do hebraico parnassá).

Os menos empenhados nesta santa incumbência se juntavam para jogar baralho (shpiln kurtn) e às vezes, o jogo prolongava-se por dias e noites seguidos. Chegava-se a tal ponto de não saberem se era dia ou noite, e quando algum visitante ocasional entrava no recinto, sempre era cumprimentado com um largo sorriso e eterno bom dia, qualquer que fosse hora, dia ou noite. O tal grupo de kurtn shpilers (jogadores de baralho), estava perdido no tempo e no baralho e, para eles, não existiam noites: era sempre dia! Daí grudou neles o apelido "de Boms Diars".

Os sarcásticos afirmavam que, em casa, as grandes decisões eram tomadas pelos homens e, as pequenas, pelas mulheres. Explicavam da seguinte maneira: a mulher decidia a localização e o tamanho da casa, a cor das paredes, quais os móveis para mobiliá-la, a escola em que iriam estudar os filhos, a marca da TV, do carro e até a cor dos seus assentos, em geral, coisas insignificantes. Quais as grandes decisões tomadas pelos homens, em verdade? Os homens diziam quem ganharia a guerra entre a Rússia e os Estados Unidos, o primeiro a pisar na lua, em que mês chegaria o Messias, e outras decisões importantes! Sobre isso, o que entendiam as mulheres? Assim reinava a paz e o sossego familiar, sem a necessidade de psico terapeutas e outros do ramo, tão utilizados hoje em dia. Sarcásticos ou não? Mãe e pai dos sarcásticos!


20/5/2012

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