quarta-feira, 7 de agosto de 2013

PALAVRA DE HONRA - DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ



DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ

Tema: PALAVRA DE HONRA

Paulo Lisker, de Israel

Não foi um mero acaso que, mormente judeus, ou, melhor dizer, "cristãos novos", eram os escrivãos, que dominavam diversos idiomas e mandavam as missivas para o Rei de Portugal, sobre todas as ocorrências na rota marinha e as descobertas de novas terras. Assim, também, os cartógrafos, que dominavam os conhecimentos de astronomia, os mapas dos “sopros dos ventos nos mares nunca dantes navegados”, sabiam fazer os cálculos dos rumos, sem bússola, só baseado nas estrelas, e com grande precisão direcionavam as naves veleiras de Cabral, ao, até então, mundo dante totalmente desconhecido.
Na época dos Descobrimentos e, ainda, nas viagens que se sucederam rumo à Colônia Vera Cruz, depois Santa Cruz e, no final, Brasil, vinham passageiros e tripulantes de origens diversas, entre eles um terço, pelo menos, de "cristãos novos", fugindo da atmosfera gerada pala Inquisição na Península Ibérica.
Em geral, o contingente humano destas naves veleiras era composto por soldados, cristãos novos (judeus convertidos à força ao cristianismo) e degredados (muitos deles, também judeus). Este era o contingente humano através do qual a Coroa portuguesa pretendia povoar a sua nova Colônia. Assim, me ensinou o saudoso professor, Amaro Quintas, no Colégio Osvaldo Cruz, no Recife.
Logo, vocês verão a semelhança entre os “viajantes”, dos tempos de Cabral, e os prestamistas no princípio do século XX, no Recife, quando 500 anos os separavam.
Então, os cartógrafos e matemáticos de cinco séculos atrás e, inclusive, os prestamistas, no início do século XX, eram os descendentes dos filhos de Moisés.
Deve haver uma genética nesta "muamba", como dizia o negro Capitulino, o faxineiro que lavava e encerava as casas dos judeus do Bairro da Boa Vista, no Recife. Aqui entre nós, assim em segredo, ele dizia com muito orgulho que ele era filho natural de um judeu prestamista que "comeu" a sua mãe numa oportunidade que ela devolveu a trouxa de roupa lavada, passada e engomada do judeu "gostosão" que vivia no sobradão da Rua Visconde de Goiana.
Como na época não era comum à existência de judeu negro nestas comunidades de origem "ashkenazitas", ninguém acreditou nesta tal estória de Capitulino e ele ficou sendo para a comunidade judaica do Recife um mero carregador e limpador de casas dessa gente.
Bom, mas isso "já são outros quinhentos mil reis".
Meu avô sempre me contava sobre suas amizades com os fregueses, nos subúrbios pobres da cidade. Ele vendia à prestação (a prazo), objetos de primeira necessidade, como cortes de tecido, sombrinhas, sapatos e, até, uns móveis rústicos, para a população suburbana da cidade, e para a interiorana do Estado pernambucano. E admirava a honestidade dessa gente humilde, bem como a curiosidade deles em querer saber o que se passava no mundo. Para eles, o "mundo" era a “grande cidade do Recife”: de lá, vinham todas as novidades.
Fora raras exceções, os fregueses não fugiam aos compromissos de pagar as prestações daquilo que adquiriam. A palavra deles era uma palavra de honra. Isto o meu avô tanto enaltecia e contava a seus amigos.
Cabe salientar que, naqueles tempos (décadas 1920-1930-1940, até os anos 1950, do século passado), o negócio dos prestamistas era vender a longo prazo, sem qualquer documento de garantia. Quando muito, registravam num simples cartão, o nome do freguês, o objeto que comprou, a data, o custo, quanto ficou acordado que seria a parcela de pagamento (semanal ou mensal) e a lista dos pagamentos efetuados (data e quantia).
Um cartão para o prestamista e, outro, para o freguês, e tudo escrito a lápis, muitas vezes com letras em hebraico, (o iídiche também usa as mesmas letras), ou cirílicas, já que o próprio prestamista não dominava o alfabeto da língua portuguesa.
Acredite-me, quem guardava e controlava o movimento daqueles cartões, com "todas as informações", era, em geral, a mulher, que vivia com o freguês no mocambo. Faz-se necessário lembrar que ambos, prestamista judeu e o freguês, eram analfabetos. Este último, geralmente, não tinha tempo nem dominava as “altas matemáticas” e precisava fazer algum biscate (trabalho), para poder pagar ao prestamista, sobrevivendo "na lona", como era comum se dizer na época, ou seja, no nível mínimo de subsistência.
Perguntariam vocês, então: e o endereço do cliente, não era importante constar no cartão? (cartundle, em iídiche).
Era sim! Porém, não havia, na maioria dos casos, endereços, nem ruas (eram arruados espontâneos), ou numeração dos mocambos.
Quando muito, era comum registrar em iídiche, no lado oposto do tal cartão, o nome do subúrbio, qual o bonde que lá chegava, e mais alguma informação que pudesse orientar, como, por exemplo: “junto da venda do perneta”, “dentro da horta", “tem um galinheiro na frente do lote”, “junto do Grupo Escolar”, “o do telhado de zinco”, e assim por adiante. Sendo assim, dominavam não só as matemáticas, mas, ainda, a geografia, para se manter de pé, numa situação daquelas.
Tais prestamistas não eram bons fisionomistas (parece que nunca o foram, me desculpem, sem querer ofender), pois diziam: “os negros são todos iguais e, os mocambos, também”!
Não era fácil, ao se passar uma semana ou um mês, vir cobrar a dívida de um sujeito sem documento de identidade, quando, para os estrangeiros, todos os fregueses e suas vivendas eram iguais.
Em tempo, é bom ressaltar que os “cartões de registro” (cartundles) eram, unicamente, informativos, ou seja, não tinham valor jurídico algum. Na realidade, em casos de discórdia, não valiam nada, muito menos quando escritos a lápis, que, facilmente, poderiam ser adulterados. Muitas vezes, por ter vergonha de não identificar o freguês, ou o mocambo, e não ofender o dito cujo, deixava de cobrar, e considerava a dívida perdida.
Não era nenhuma surpresa para meu avô quando um freguês o encontrava parado, esperando junto ao poste do bonde, depois de um dia de andanças, cobrando as dívidas e, apressado, para voltar para sua casa, no bairro da Boa Vista. E lhe indagava:
Que azarada lhe deu na semana passada, que vosmecê não apareceu na minha casa para cobrar a prestação semanal, seu Josef? Minha mulher ficou aperreada, pensando que aconteceu “arguma coisa má” com o senhor. Foi mermo?
Tirava a quantia de dinheiro do bolso e pagava a prestação devida.
Me pagaram agorinha o biscate que fiz, eu mais meu amigo Zé pé troncho. Entregamos o piano sem um arranhão, na casa do senhor Valdemar na Madalena. Ele me pagou o prometido e ofereceu, para cada um de nós, uma garrafa selada de cachaça Pitu. Então, estou satisfeito da vida.
Gente muito conversadora, aqueles moradores dos arrabaldes. E, ao se despedirem, diziam:
Deixe pra apontar no cartão na outra semana, quando "vortar”, se "avie", aí vêm o "bondes", se perder esse, agora, só de noite, se avie... Inté amanhã!
Aí está a palavra dessa gente! Palavra de honra!
Contou-me um amigo do passado, um escritor que viveu no Recife algumas décadas, e era natural dos Países Baixos. Seu pai era prestamista (klintelchik, em iídiche). Depois que faleceu, os fregueses, ao perceberem o sumiço, descobriram o seu endereço, no centro do Recife, e vinham, dos subúrbios, procurar os parentes do falecido para pagar as prestações que deviam.
Como este comércio era o “ganha-pão” da família, começou o filho (o meu amigo de infância Jacques Cano) a cobrar, dos fregueses devedores, em suas moradias. No entanto, ao ver as condições de vida daquelas pessoas, ficou muito sensibilizado, ainda mais porque era esquerdista, desde jovem.
Daí tomou uma decisão radical. Um belo dia foi até à Ponte Velha, e atirou todos os cartões e as listas dos endividados, para com o seu falecido pai, no Rio Capibaribe, e fim das dívidas: ninguém lhe deveria mais nada!
Eu acho que ele se sentiu como uma versão moderna da Princesa Isabel, ao declarar a Lei Áurea que, finalmente, extinguiu a escravidão no Brasil. E, não é para menos!
O escritor, meu amigo, deixou o Brasil e foi para Israel. Vive lá e produz literatura, até hoje em dia. Ultimamente, ele voltou ao Recife para o lançamento do seu livro: Jornada de volta ao crucificado, de Jacques Kano, Recife: Carpe Diem, 2010.
Ai, minha gente, aquele eram os tempos em que, no Recife, "o galo cantava e sabíamos aonde"!
No Recife matuto, sobretudo inocente, dizem que, hoje, não tem mais nada disso, não!


P.S.: Agora fica claro porque o comércio das vendas à prestação, nos arrabaldes e subúrbios da cidade do Recife, floriu e permitiu aos judeus ganhar a vida, trabalhando duro e, em pouco tempo, ajeitar sua vida no novo continente. A sorte daqueles mascates foi que nenhuma loja, estabelecida na zona do comércio do Recife, venderia algo para um indivíduo descalço, mal vestido e sem documento de identidade, de qualquer espécie. Os judeus, sim, enfrentaram tal risco. Eles confiaram na palavra de honra dos matutos brasileiros (de brasilianishe shkutzem, em iídiche) e, essa confiança mútua, fez com que, aquele tipo de comércio, fosse favorável a ambas as partes.
Como dizia meu avô, com muito respeito e humildade: Nós vestimos e calçamos o brasileiro pobre dos subúrbios e do interior.

(Primeira versão resumida foi postada no Jornal da Besta Fubana, em 19/7/2011).

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