Recife do bicho e as empregadas domésticas (Final)

O JOGO DO BICHO E A COMUNIDADE ISRAELITA DO RECIFE - Parte 8 (Final)
Tema:RECIFE DO BICHO E AS EMPREGADAS DOMÉSTICASPaulo Lisker, de Israel
Para que esconder o fato? No Recife até as empregadas domésticas "jogavam no bicho".
Elas pediam quase sempre um dinheirinho adiantado e corriam até a banca do bicho na esquina da Rua do Jiriquiti, colocavam as suas apostas, todas elas baseadas nos sonhos da noite anterior ou outros catimbós que realizavam com outras entendidas no assunto catimbozeiro.
Um dia Maria do Carmo ganhou 200 mil réis, um dinheirão naqueles tempos. Pediu férias por uns dias e "viajou de sopa" (ônibus, em nordestino) para Serra Talhada onde moravam seus pais.
Antes de viajar comprou no mercado São José uma porção de bugigangas, roupas para sua família, um enxadão, uma picareta, duas peixeiras e quatro baldes de lata. Afinal de contas, era ou não filha de um roceiro?
Esta menina de Serra Talhada era o "cão" (muito trabalhadora).
A alegria da família com a chegada de Maria foi, sem duvida, enorme por contribuir com a mão de obra no exaustivo trabalho da colheita e, ademais, pelos tantos presentes trazidos da cidade grande, o Recife.
A colheita caía exatamente naquela época do ano.
Os pais de Maria, gente de idade tinham dificuldades em "apanhar" (colher) toda produção para mandar pro mercado mais próximo que distava mais de três léguas da roça familiar e armazenar algo no deposito, esperando um aumento dos preços, semanas mais tarde.
Ao chegar, ajudou a organizar o trabalho da família na colheita da batata doce.
Nesta horta plantavam todos os anos orientados pelo extensionista local, Pedrinho Salustiano, um rapaz bem postado, com ordenado mensal do governo, o sonho de toda moça solteira no interior à espera do seu príncipe encantado, montado no seu jipe. (não cavalo branco, como nos contos de fadas).
Contam que o extensionista chorou quando Maria foi-se embora para o Recife trabalhar de empregada e, assim, ele perdeu a oportunidade de "tirar o cabaço" da ninfeta. Ela lhe escapou por entre os dedos.
A volta inesperada de Maria depois de quase três anos foi uma grande alegria para seus pais e não menos para o extensionista Pedrinho que continuou "arriado" por ela ("arriado" = loucamente apaixonado). Seu sonho era "comer aquele broto" desde quando ela completou seus doze aninhos, fato muito comum acontecer no nosso interior.
Na roça, a puberdade é curta e bem cedo a jovem se faz mulher e logo procura um camioneiro, um viajante ou mesmo um extensionista para sentir o "amor da primeira vez".
O importante para Maria era que não fosse com um matuto (Jeca Tatu) dos muitos que apareciam lá pela roça.
Ser "descabaçada" (perder a virgindade), melhor seria com "um de fora", talvez pudesse leva - lá à cidade grande que tanto sonhava conhecer, mesmo pelo preço cobrado por um desses que vivem rondando atrás das mocinhas matutas virgens .
Não faz mal não, o sacrifício não é tão grande assim, pensava ela. Um dia terei que dar para alguém, não é mesmo? Pedrinho não era má escolha.
Maria quando chegou pela primeira vez ao Recife procurou trabalhar de empregada nalguma casa de judeus.
Esta gente já naquela época pagava muito melhor que as patroas veteranas e as exploravam menos dando-lhes o descanso merecido, folga nos sábados ou domingos, comida a seu gosto e roupa usada da família, por estas e outras, as jovens do interior procuravam nestas casas, o trabalho de domestica.
Maria foi em paz e voltou em paz de Serra Talhada, porém desta vez não só colheu batata doce, ela "deu" ao Pedrinho o que ele tanto cobiçava desde que a conheceu como menina.
Para surpresa dele, ela ainda era virgem, apesar de viver quase três anos na cidade do Recife (uns diziam que naquele tempo era uma vila de matutos), cheia de estudantes libertinos, "doidos para comer" empregadas do interior que vinham se empregar nas casas de família ou pensões.
Vindo trabalhar no Recife se livravam da vida dura nos campos do interior do Estado.
A coisa foi quase uma simbiose, para ele a realização de um sonho muito antigo e para ela finalmente "perder o cabaço" não com qualquer um, mas com um doutor, ademais ela se livraria do estigma de ser virgem na cidade grande.
Não mais seria a "santinha virgem" que causava serio embaraço a todas que chegavam nestas condições e eram alvo de gozação das outras empregadas do bairro. "Olha ali a santinha passando" ou, espia pra aquele lado da calçada, está passando a "criada com vó", que ainda só "faz nas coxas". Francamente, era um vexame, a virgindade. Agora isso acabou-se, fim, mulher dona do seu nariz.
Ela não contou pra ninguém da família, só assim de segredo para sua mãe antes de tomar a "sopa" de volta ao Recife.
A mamãe de Maria ficou até muito orgulhosa. Ela não teve sorte igual quando "perdeu o seu" com um matuto que trabalhava de diarista nas fazendas da região. Hoje ela já não pretende muito mais que uma boa safra de batata doce todo ano.
Mãezinha ficou deveras muito satisfeita com a sorte que teve sua filha Maria e pedia a Nossa Senhora dos Prazeres todo santo domingo quando ia para a missa que tomara que ela "pegue bucho" e tenha um filho de pai doutor, assim ele fará parte integral da família e não só doutorzinho extensionista. Mas o plano "pifou" (não resultou)!
Agora se livrara da tal virgindade que só lhe "trazia prejuízo" e ao chegar ao Recife a primeira coisa que fez foi contar a todo mundo que estava sedento para escutar das novidades que Maria trazia do interior.
Depois de tudo posto em "pratos limpos", acabou-se as zombarias, agora sou parelha a todas as outras que viviam mangando (riso sarcástico em nordestino), de mim, fim disso!
Quando Maria a empregada acertou certo no bicho e todos na nossa casa ficaram "cheirando grama", (erraram totalmente, na língua do povo), minha mãe perguntou-lhe:
Minha filha, que diabo te passou pela cabeça pra você "jogar" (apostar em nordestino) uma milhar logo no veado que deu hoje e aqui em casa ninguém nem por perto "cheirou este bicho".
Olha nem a minha irmã Diva, amiga intima de dona Socorro, a mãe de Santo do terreiro do Bábálao Crispino, aquela que lê no café, naquele dia deu em segredo o seu palpite, dizendo que ontem de madrugada recebeu uma mensagem numa sessão do Xangô e errou em cheio. Ela e minha irmã "jogaram" jacaré. Ta vendo?
O teu palpite Maria, foi mesmo sonho, foi?
Foi sonho sonhado, dona Anna!
Que sonho foi esse menina? Tu vistes algum veado correndo aí pelo sitio e te deu na veneta de jogar nele, logo na milhar?
Foi muito simples, patroa. Sonhei com Nezinho, meu namorado! A senhora conhece ele, todo cheio de "não me toque e meio desengonçado". Que bicho a senhora queria que eu jogasse? Só dava pra jogar no veado! Num é mesmo patroa?
Tens razão minha filha, excelente palpite, retrucou minha mãe e estampou um sorriso leve de satisfação com sua empregada domestica e também algo de inveja, que ficava estampado nas rugas, que nestas ocasiões apareciam na sua testa. Algo não comum pois tratava da pele do seu rosto com o maximo cuidado. Durante anos usava o famoso "Leite de Rosas", que para ela era a verdadeira "Fonte da Eterna Juventude" que só se comparava com a celebre "Água de Colônia" desta cidade européia e por sorte encontrou este substituto, no Recife matuto.
Agora, pergunto eu a vocês, meus leitores:
De que valem os famosos profetas que tiveram a honra de ser incluídos na Bíblia, economistas prêmios Nobel, que interpretam e analisam as tendências futuras da bolsa de valores e a economia mundial, os futurólogos que interpretam o crescimento de países e continentes, os psicólogos interpretadores de sonhos (judeus, na sua maioria), as videntes profissionais, e mais uma laia de safados que dizem saber interpretar o sobrenatural se, uma "quase menina" de Serra Talhada faz isso muito melhor que todos eles juntos?
Aqui em segredo eu como menino curioso, fiquei sabendo que ela e uma empregada da pensão Internacional de nome Martinha com ares de feiticeira, usavam um artifício de "adivinhação" não muito conhecido e se chamava "nódoa da madrugada". Este catimbó estava baseado em enfiar uma peixeira numa bananeira adulta nas noites de lua cheia e na madrugada com os primeiros raios do sol retira-la com muito cuidado e depois de secar aparecia na lamina uma nódoa que diz muita coisa, dependendo do que se perguntou. Também o bicho do dia era muito comum aparecer na nódoa da peixeira que em geral naquele tempo não era de aço inoxidável que facilitava a formação da nódoa na lamina.
Depois, eu com mais idade tentei meter uma peixeira que tinha e fazer este catimbó numa noite de lua cheia. Era a bicicleta, a tal bicicleta que tanto almejava e o único jeito de chegar a ela, era ganhar no bicho. Para isso tinha que me arriscar numa noite de lua cheia, naquele sitio mal assombrado, bem no fundo do quintal.
Cadê coragem pra fazer isso sozinho. Chamei meu amigo da infância Jaime Zimilis (nosso apelido era,Tim e Tom, dois marujos, personagens do Gibi saudoso).
Ai meu Deus, me deu um medo danado, mesmo com Jaime ao meu lado, todo ruído do vento ou da folhagem era como se algum mal-assombrado estivesse andando nas trevas, atocaiando ou ao menos um lobisomem que andava solto pelo sitio procurando uma presa fácil naquela noite (agora eu sei o que quer dizer "se cagar de medo").
Deixei a peixeira cair na terra, puxei Jaime pela manga da camisa e demos uma carreira cada qual pra sua casa. Eu me meti debaixo das cobertas e só me acordei no dia seguinte com as risadas de Maria com a peixeira na mão, que horas antes a achou jogada no meio das bananeiras.
Era essa cabocla do interior de Pernambuco que preferia dormir em rede, dentadura mais que perfeita apezar de chupar rapadura e fumar "fumo de rolo" num cachimbo de pau, comprado no mercado de São José, nunca frequentou escola, nem sabia fazer contas, mas era o próprio "dunga" em acertar em cheio nos bichos.
Quando ela estava descansando sozinha na rede, no quarto dos fundos do nosso casarão, tirando umas baforadas
do seu cachimbo de pau, ( e eu só espiando pra ver), aí era que ela fazia a interpretação de seus sonhos daquela noite ou das nódoas na lamina da peixeira, com quase cem por cento de êxito na loteria do jogo do bicho. Pois é!
Agora, pergunto a vocês: me digam de que vale essa
"cambada" de estudiosos, profetas, economistas, futurólogos e outros? Por favor,me digam!
FIM
P.S. Eu e meus amiguinhos que vinham brincar no nosso sitio, também tínhamos "más intenções" para com Maria e sua irmã, mais nova que também veio tentar uma vida melhor no Recife.
Éramos pivetes de 10 á 12 aninhos, mas sabíamos quanto de gostoso estas meninas enxutas do interior do Estado poderiam nos dar quando estávamos começando a entender que não era paixão que nos acometia coisa nenhuma, eram os hormônios que começavam a transbordar e levantar tudo que estava adormecido.
Mas minha mãe vigiava a gente e vivia dizendo: Deixa Maria e Lurdinha em paz, elas têm o que fazer!
Eita mãe coruja, deixa de chateação!!!!
Bem, agora é mesmo o fim. Fim bem findado.
20/3/2012
(Todos os direitos autorais reservados)
Dr.M. Rosenblatt- Israel
ResponderExcluirDISSE:
Ferias, coisa nenhuma. Você vai é publicar um livro intitulado: O Recife Judeu nos anos 30-40.
No futuro você estará vivo e estará morto.
Tudo depende de “quanto” futuro você está falando. hahahaha!
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Semira Adler- Recife.
Disse:
Querido Paulo,
Por favor, não pare de escrever.
Seus escritos são preciosos e raros.
E você é o único a fazê-lo por nós todos.
Beijãozão,
Semira
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Israel Coslovsky-São Paulo, Brasil
DISSE:
PAULO
MUITO BOM. FECHASTE A SERIE DO JOGO DO BICHO EM RECIFE COM CHAVE DE OURO !
ISRAEL
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ResponderExcluirRosaly- Recife.
Contatou e disse:
Sr.Paulo Lisker,
agradeço a atenção e gostaria de receber a crõnica sôbre papai "zl que disse ter escrito.Papai sempre dizia que seria conhecido não como o engenheiro e professor que foi,mas como goleiro do Sport,uma de suas paixões.Grata e Shabat Shalom.
Rosaly
PS.Se enviar seu endereço,remeteremos o livro sobre papai que mamãe escreveu.
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Paulo Lisker-Israel
Responde:
Estimada Sra. Rosaly , saudações da "Terra Santa"!
1.Muito me alegrou receber este seu mail contando coisas do passado que envolvem mais conhecimentos sobre nossas famílias e a pequena comunidade judaica do Recife em que todos se conheciam e de uma forma ou outra eram parentes.
2.Não restam duvidas que colocarei o mail que me enviaste na minha lista de correspondencia destas cronicas que só no fim da vida comecei a relembrar e escrever.
3.Não tenho tendências para esta profissão, e meu português está tão "enferrujado" por estar por mais de meio século no "estaleiro" do esquecimento e não ajuda. Porém era necessário deixar algo registrado desta época que a denominei "Etapa Prestamista". Sem esta ação ela seria totalmente esquecida e as novas gerações não teriam ideia do que na realidade se passou no principio do século passado com nossos pais e avós, fossem os fatos relatados puras verdades ou lendas urbanas.
4.Terei o máximo prazer em enviar as próximas cronicas e receber de vocês criticas e comentários pois disso um diletante como eu, só tenho a aprender. De ante mão agradeço.
5.Vocês são da família do legendario (no passado) goleiro do Sport José Buchatsky? Sobre este guarda-valas judeu, famoso no seu tempo, também dediquei uma crônica sobre o que não geramos naquele tempo, futebolistas e cronistas e "Buchada", como José era conhecido nos meios desportivos era uma excessão. Imagine, que outros bloggers recifenses copiaram trechos desta crônica, palavra por palavra, nas suas publicações.
A falta de cronistas naquela época faz com que do tempo de "Caramuru" o nosso museu está cheio e desta etapa do principio do século passado nada ficou registrado.
6.O material é tanto que já tenho mais de 100 crônicas, parte já publicadas e outra em "borrador".
7.O que mais me dói é que no Recife não encontrei blogger judeu nenhum, nem organização judaica para através dela chegar a comunidade judaica, pois para ela eu escrevo e assim deixar para posteridade esta etapa e os acontecimentos na Internet. Pena!
Foi a gentileza do Poeta e Escritor e blogger Clóvis Campelo e o seu blog Geleia General, que permitiu que 50 ou mais destas crônicas chegassem dentro e fora do Brasil e por isto todos os meus agradecimentos possiveis a este camarada que nunca conheci e se tornou um amigo do peito virtual.
Outras 10 crônicas "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ",foram postadas no blog Gazeta Besta Fubana do escritor senhor Papa Berto.
8.Um abraço para ti e teus pais.
Paulo Lisker.
ISRAEL.
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Sra. Rosaly Buchatsky N.- Recife.
DISSE:
Sr.Paulo Lisker,
Boa Tarde!
Tenho recebido suas crônicas via email de amigos.São muito interessantes.
Sou do Recife,da comunidade judaica local,lembro bem da sua mãe e seu irmão.
Aliás a sua foto lembra demais D.Ana.
Meu pai,falecido,José Bushatsky,e minha mãe Flora S.Bushatsky,para quem repasso seus emails.
Mamãe guarda fotos ainda da sua mãe,e lembra bem da familia.Se quiser entrar em contato com ela,seria bom.
Suas crônicas,nos reportam a um tempo muito bom.Se faz necessario editá-las.
Kol Hakavod!
Shalom!
Rosaly Bushatsky Naslavsky(Chochana)
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