DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ.
Tema: Os bebedores de chá e bolacha Maria.
Paulo Lisker, de Israel.
Era no tempo do Recife matuto.
Eu era menino e até que fiz amizade com meu avô levou algum tempo.
Eu o via um "semi Deus" com aureola e tudo. Faltava-me coragem ou temas para conversar com ele.
Naquele tempo de miúdo, eu pensava que gente velha só deveria ter idioma comum com gente velha.
Quem sabe é verdade. Será?
Todos em casa o respeitavam, fazia as refeições conosco, ninguém sentava junto à mesa ou começava a comer antes de seu Josef sentar primeiro e pegar nos talheres.
Estava a sua disposição para morar o sótão inteiro e seus amigos entravam e saiam do nosso casarão na Gervasio Pires, como se fosse a "casa da sogra".
Amigos de sua idade vinham visitá-lo pela sua sabedoria, para contar e escutar novidades.
Ele era o "jornal e a radio" para os amigos meio analfabetos.
Os seus amigos tinham a sua maneira de se comunicar avisando que estão na porta à espera que alguém venha abrir. Isso era a maneira que tocavam a campainha que sempre funcionou na nossa casa.
Os amigos veteranos dele adotaram um toque curto e um longo, diferente da do meu pai que era 3 toques longos. Durante anos isto funcionou mais do que perfeito.
Dessa maneira sabíamos que não eram moleques da rua ou os alunos do colégio de padres "Marista" que ao terminar o dia escolar tocavam a campainha e corriam só para fazer anarquia ou esculhambação.
Naquele tempo o que valia era as estórias que corriam pela cidade em forma de boatos. Por mais incrível que pareça, estes boatos carregavam em si algo dos fatos verdadeiros e eles em geral eram as informações diárias destes amigos do meu avô.
Sentavam-se no terraço do nosso casarão junto ao enorme Jasmineiro e a vitalícia trepadeira de Camélias que de noite floresciam cachos de flores brancas exalando um cheiro embriagante e pela manhãzinha cedinho as flores mudavam de cor para vermelho intenso.
No passado era costume de estes adultos reunirem-se na Praça Maciel Pinheiro porem depois de bem mais velhos fizeram da minha casa um lugar mais sossegado para conversar em iídiche (dialeto usado pelos judeus europeus) entre si.
Conversavam neste iídiche em todos os sotaques, russo, polonês, alemão romeno, lituano e outros que já não me lembro mais.
A base era sempre este dialeto porem muito influenciado pelos idiomas dos paises onde viviam antes de imigrar para o Brasil.
Depois de adulto eu tinha quase certeza que também no Brasil (pelo menos no Recife) se formaria um "iídiche Tupi".
Lembro-me que o fenômeno já era mais que embrionário.
Por exemplo, minha mãe falando com a empregada:
- "Maria, fechar as janelas es chuviskirt shoin"!
(Maria vai fechar as janelas já está chuviscando)!
Ou, "Severina, shnel tira a roupa do arame, gueit a goss"!
Ou seja: Severina tira a roupa do arame está chegando um aguaceiro.
Parece incrível, porem muitas empregadas captaram o iídiche muito mais rápido que as suas patroas o português.
Falavam o iídiche fluente em casa, com a família de judeus.
Eu mesmo tinha uns tios no bairro da Madalena cuja empregada Edithe falava fluentemente o iídiche que aprendeu sem nenhum estudo, só por audição e que iídiche literário tinha esta matuta de Currais Novos no interior de Pernambuco. Iídiche excelente!
Muitas palavras derivadas do iídiche se enfronharam nas conversas do dia a dia:
- "Shmok, Huhem, krenk, shikse, kishke, sheiguets, goi, Tshvok, Griner, Mamzer, dreek, shtinker, moisser, assimilirt, imigrirt, formirt, estudirt, a kaker, a griner" e muitas outras que estavam entremeadas no dialogo aportuguesado do cotidiano na colônia israelita.
- "Shmok, Huhem, krenk, shikse, kishke, sheiguets, goi, Tshvok, Griner, Mamzer, dreek, shtinker, moisser, assimilirt, imigrirt, formirt, estudirt, a kaker, a griner" e muitas outras que estavam entremeadas no dialogo aportuguesado do cotidiano na colônia israelita.
Se o Brasil não fosse na época um país tão acolhedor, não resta duvida que se formasse um "iídiche tupi", sim senhor.
Porem aconteceu que a segunda e terceira geração de judeus no Recife se alfabetizou e assimilou rapidamente a língua portuguesa e já não usavam o iídiche para dialogar nem com os mais velhos ou mesmo entre si, daí o "iídiche tupi" não resultou.
Com os pais e avós prezavam dialogar em português, mesmo que estes falassem um "português capenga".
Nestes encontros do meu avô com os velhos da colônia sempre era servido um chá.
As marcas no mercado eram Lipton ou Mate Leão.
Sempre era servido com Kichalach, Pirishkes (guloseimas judaicas) ou bolachas Maria, Champanhe, quando as primeiras estavam em falta.
Imaginem chá fervendo no Recife quente e úmido. Loucura.
Porem o que não se faz para uma boa conversa entre amigos.
Eu menino às vezes ficava escutando as conversas destes velhos
ex-prestamistas em Iídiche (acho que foi assim que aprendi) até que me dava sono e ia dormir.
O que me lembro até hoje, acho que foi um produto dessas conversas no terraço da nossa casa na Rua Gervasio Pires no Bairro da Boa Vista.
Os germanofilos nunca se entregaram totalmente ao Iídiche e guardavam dentro de si um cantinho saudoso para a língua germânica. (alemão).
Assim era o meu avô, minha mãe e suas irmãs. Sempre procuravam alguém da comunidade para "matar as saudades" dialogando na língua do Danúbio.
Minha mãe e as irmãs tinham na dona Gisela Verfel (a mãe de Jorge, o jovem judeu comunista) como contrapartida para estes diálogos quando ouviam as novelas que nunca tinham fim de João Loureiro no radio de uma delas.
Já o meu avô encontrou no senhor Kurt Newman, conhecido como "Der Becker" que falava alemão fluentemente e correto.
"Ele ia até a Confeitaria Confiança na Rua da Imperatriz, comprava algo no estilo europeu, especialidades do seu Kurt, "Mil Folhas", "Keis Kuchen" (Torta de Queijo) ou "Apfel Shtrudel" (Torta de Maçã).
Pagava o "estrago gostoso" e pegava uma longa conversa em alemão com senhor Kurt até que os seus ajudantes vinham chamá-lo para opinar sobre o resultado dos produtos saídos agorinha do forno.
Parece que estes diálogos na língua materna "carregavam as baterias" do meu avô, que voltava destes encontros sorridente e satisfeito da vida, distribuindo em casa as tortas do seu Kurt.
O gosto destas guloseimas só no tempo em que meu avô viveu na Áustria.
Quando me aproximei do meu avô e isto ocorreu em geral quando estava ele sentado na cadeira de balanço esperando a chegada de seus amigos e eu depois dos deveres da escola não tinha nada mais útil para fazer, ficava rodando pelo terraço jogando iô-iô, até que os amigos dele chegavam.
Para um neto de 6 ou 7 anos, teria ele a suficiente paciência para entabular uma conversa? Era a minha grande duvida!
Ele costumava fumar cigarro Regência e tomar pitada de rapé (pó do tabaco).
Levava sempre consigo numa linda tabaqueira de madrepérolas que trouxe ainda da Áustria.
Ele sempre muito educado oferecia pitadas aos demais amigos sentados no terraço. Nem todos aceitavam, pois não era costume na terra deles na Europa.
Eu via isso como um costume bizarro, quem sabe dos tempos românticos nos cafés de Viena a beira do rio Danúbio.
Eu o chamava de Zeide (avô em iídiche), minha mãe o chamava de Papa (deve ser pai em alemão), os amigos o chamavam Her Iozef que na realidade era seu nome, Senhor Josef.
Quando ele estava a sós dei a minha primeira investida: Zeide me dá um traguinho do cigarro, pedi.
Diversas vezes ele se negou porem no fim disse: Vai toma, só uma e que tua mãe não te veja, ela te mata e a mim também, eita menino traquino!
Já com o pó de tabaco (rapé) não houve problemas. Eu pegava dos seus dedos uma pitada do pó negro, aspirava e saia espirrando sem controle pelo quintal todo que nem uma galinha com gôgo, "atichim, atichim, atichim"....
As empregadas mangavam (riam em português matuto) como se fosse o maior espetáculo da terra.
Ficou um costume, quando ele sentava no terraço e fumava, eu pedia um traguinho do cigarro e pegava uma pitada de rapé do"atichim".
Quando chegavam os amigos dele, depois de alguns minutos a empregada servia "o diabo" desse chá fervendo. Cada copo vinha com sua colherzinha, pois naquele tempo não havia vidro resistente à água fervendo e então ao "emborcar" a água, o copo lascava.
As empregadas já sabiam do "prejuízo" e colocavam em cada copo a sua colherzinha de metal, que evitava o copo lascar.
O interessante é que ninguém na roda da conversa utilizava a colherzinha, pois também nunca vi açucareiro sobre a mesa. Sim estava sempre presente uma caixa de papelão com escritas estranhas (só depois de muito tempo vim saber que era persa) cheias de cubinhos de açúcar, às vezes vinham embrulhados e às vezes não.
Ninguém a priori adoçava o chá, pois queriam sentir o gosto original da erva nos primeiros sorvos, aí dava aquele estalar com a língua opinando assim cada qual a sua preferência da erva servida se lhe agradava ou não.
Depois de 2-3 sorvos do chá fervendo colocavam na boca um desses cubinhos e na boca adoçavam o liquido na medida do seu gosto. Maneira interessante de adoçar o chá amargo e fervendo.
Quando já ia "lá para as tantas" e no tempo do Recife matuto "lá para as tantas" (22horas) já era quase madrugada.
A única maneira educada de mandar o pessoal embora de volta pra casa era perguntar se queriam outro copo de chá. Desta vez fervendo e amargo mesmo, pois a empregada já tinha retirado os cubinhos de açúcar para esconder num lugar onde nunca os achei.
O grupo todo entendia a indireta, levantavam-se das cadeiras de vime se despediam com aperto de mão dizendo: "A guite nacht, shalom-shalom"! (Boa noite, paz e mais paz, em iídiche).
FIM DA PRIMEIRA PARTE- "Das conversas com meu avô".
Paulo Lisker, Israel.
Maio-2011.

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