domingo, 4 de agosto de 2013

LATARIA BOIANDO NO TEMPO DA SEGUNDA GRANDE GUERRA.


Lataria boiando


Das Conversas com meu avô. 

  
Tema: LATARIA BOIANDO             
(Guerra na Europa e blecaute no Recife). 

Paulo Lisker, de Israel, em 18/7/2012 

No terraço do nosso casarão na Rua Gervásio Pires, meu avô sentado na sua cadeira de balanço esperava a costumeira reunião noturna com seus amigos.
Ele se sentia pelo menos como um rei entre seus súditos, talvez ainda mais que isto.
Gostava muito quando vinham lhe pedir conselhos, opinião antes de fechar negócios, e especialmente o grande respeito que esses velhos amigos lhe dedicavam durante longos anos.
Até as 20 horas todo o grupo de amigos já estava sentado no terraço e se deliciavam com o cheiro intenso das flores do jasmineiro e da enorme trepadeira de camélias com suas flores brancas que exalavam um cheiro doce de mel de abelha recentemente retirado da colméia, era mesmo de embriagar qualquer mortal.
Esta noite ele achou de relatar um aspecto pouco conhecido pelo grupo, resultante da carnificina provocada pela segunda guerra mundial e só a dialética poderia dar uma resposta para este bárbaro crime contra a humanidade.
Guerra, não tem lógica dizia ele, não tem lógica!
Nunca há nada unilateral dizia, sempre existem dois lados em toda questão e por isso mesmo entra em ação a dialética.
Nestas batalhas navais no nosso litoral, surgiu um fenômeno que exatamente traduz esta teoria.
Os amigos já de idade avançada não eram grandes entendidos nestas "filosofias", porem sabiam que se é seu Joseph quem diz, deve ser coisas muito importantes e que vale a pena prestar toda atenção.
O silencio era tal que podia se ouvir o "piscar dos olhos esbugalhados" da roda dos "bebedores de chá com bolachas".
Meu avô tirou uma pitada da sua caixa de rapé, acendeu o seu cigarro preferido, "Regência", se acomodou na cadeira de balanço e começou a contar sobre um assunto que nem os escritores da época colocaram no papel para a posteridade.
Não preciso dizer pra vocês que a guerra é uma "desgraceira medonha", (coisa horrível em escala maior, em nordestino, em iídiche: "ha shreklize zache"), mas tem sempre alguém que ganha dinheiro com a guerra.
Não só os imperialistas safados que em qualquer situação, mais caótica que seja sempre saem com as mãos cheias de mais e mais riquezas.
Tenho um exemplo dos melhores, escutem, pois isto é o que chamo de dialética (ouviu o galo cantar, mas não sabia onde).
Mais uma baforada do seu cigarro Regência e logo continuou a sua estória.
Quando acontece que afundam barcos e nesta guerra muitos tiveram este triste destino o fenômeno do que eu falo se torna realidade.
Por um lado centenas ou talvez milhares de mortes, feridos, inválidos e perdas materiais enormes.
Por outro lado, milhares e milhares de latas de conservas de alimentos que estavam armazenadas nos porões nestes navios, passados uns dias, sobem à tona e ficam boiando mesmo que o barco tenha descido pra mil metros ou mais de profundidade.
As latas sempre acham um caminho para subir a tona flutuando de mansinho sobre a água, ficando à mercê das correntes marinhas até que no final das contas chegam à terra firme, no litoral.
O que estava ainda boiando na água era só colocar na canoa ou na jangada.
Se já tivesse chegado à terra firme, era só apanhar na areia da praia e levar pra casa.
Era tanta lata que chegava que grande parte delas ficavam ao ermo até serem apanhadas por quem por lá por acaso perambulava.
Os pescadores que não são bestas (tolos, na língua da rua) preferiam nesta época, deixar a pesca de lado e dedicar diariamente o seu tempo nesta nova atividade, "catar latas".
Para que perder tempo, arriscando a vida no mar brabo ou cheio de sargaço lançando a rede no mar para tirar peixe desse nosso mar poluído, quando as latas estão aí em quantidade enorme "dando sopa" (em demasia, na língua do povo).
Para quem ainda não "pescou a coisa", (entendeu, na língua do povo), estas latas poderiam ser vendidas ao publico por um preço melhor que o "peixe fresco" que ultimamente era pouco e de má qualidade. A causa disso era a enorme poluição resultado dos combates quase diários nas nossas costas e os dejetos lançados ao mar pelos canos que drenavam os esgotos da cidade no nosso oceano Atlântico.
Dizia o jangadeiro Bebeto Cearense: "Fica mais em conta (rentável) vender latas de conserva apanhadas de graça que ter os problemas com o pescado que se estraga com facilidade neste clima quente e úmido do nordeste".
Deus é brasileiro e nos mandou um montão de latas para ajudar no "ganha pão" de seus pobres fieis.
Em agradecimento pelo milagre, nós vamos todos os domingos participar da missa e escutar o sermão do padre Celestino na capela do Pina.
Desde que chegaram as latas nas nossas praias, a capela está lotada de pescadores e jangadeiros.
Durante todo o período da guerra o fenômeno da lataria boiando era uma realidade do cotidiano.
Com muita razão os jangadeiros faziam delas um amplo mercado e ainda ficavam latas ao ermo nas praias do nordeste pra quem quiser!
Tomando mais uma pitada de rapé perguntava meu avô aos seus amigos: -Então tem ou não tem quem ganha dinheiro com a guerra?
 Neste caso não os imperialistas safados, mas o Zé povinho mesmo. 

Perguntou, mas não para receber resposta.
Na reunião de "bebedores de chá", o senhor Jorge nesta ocasião contou que o senhor Mauricio seu cunhado e genro do "semi Deus", comprava dos pescadores muitas dessas latas de todo os tamanhos, que chegavam boiando até às praias do Recife.
Era o efeito causado pelas batalhas marinhas na segunda grande guerra mundial.
Sr. Mauricio (meu pai) tinha num dos quartos do casarão uma enorme dispensa cheia destas latas, que chegavam de oceanos dos mais longínquos, não só do nosso litoral.
Entre nós falando, devo confessar que estas eram gostosissimas (o conteúdo, não as latas, se entende, verdade?).
Porém existia neste "Eldorado da lataria" um problema crucial, só depois de abertas sabíamos o que continham!
Naquele tempo a tecnologia dos invólucros não era tão aperfeiçoada como hoje e os rótulos eram de papel colados nas latas, com a permanência na água do mar, se descolavam, agora vá saber o conteúdo dessas.
Por sorte às vezes ficava algo carimbado com tinta, porem era uma verdadeira "loteria".
Ao abrir, poderia conter leite condensado ou cacau em pó ou simplesmente água potável, geléia de pêssego ou morango, grãos de milho verde cozido em leite desnatado, carne porcina ou bovina, manteiga, conserva de ervilha, feijão branco, enormes azeitonas gregas, óleo comestível de girassol argentino, sabão liquido ou desinfetante para latrinas.
Era uma variedade infinita de produtos, lhes digo mais, que quando eram procedentes dos afundados navios norte americanos, ingleses ou até mesmo alemães, eram ainda melhores.
Pela qualidade do conteúdo podia-se saber a procedência das latas. Para dar uma idéia o conteúdo das latas japonesas era uma porcaria para o nosso gosto. Só nipônico mesmo teria estomago para comer esta "gororoba", mas se já comprou e perdeu dinheiro só restava agora dar aos gatos e cachorros que nem sempre queriam comer depois de farejar.
As latas brasileiras, não eram das melhores, porém davam pra passar. Eram produtos das fabricas Swift e da Armour e talvez de outras que já hoje não existem mais.
Do nosso produto nacional tinha latas de 5 quilos com feijoada pronta com todos os ingredientes, deliciosa.
Postas de bacalhau em coco (super deliciosas), postas de carne de charque em vácuo, pasta de tomate, goiabada cascão, até queijo do "Reino" que vinha numa lata redonda vermelha, (produto de Portugal), dizem que elas chegavam boiando até Miami, tudo dependia das correntes marítimas.
Em geral quase tudo que o "praça" brasileiro ou o marinheiro estrangeiro necessitava para se alimentar quando estava longe de casa estava a sua disposição.
Depois do naufrágio, as latas chegavam de mansinho até as nossas praias.
Quem podia comprava, não era caro e no fim do dia os pescadores vendiam por qualquer preço, pois não queriam ou podiam carregar a mercadoria de volta para os subúrbios onde moravam.
Com o tempo e a "experiência acumulada, corria uma teoria que as latas pequenas não valiam à pena comprar, pois o conteúdo não pagava o preço. As grandes sim, estas sempre tem coisa boa. Errado, errado, errado, como tudo numa guerra!
Não era comum, porem as latas pequenas às vezes eram de comida "chick" destinadas ao fino paladar do comando dos barcos. Nestas latas era comum encontrar comida de primeira, assim como, Caviar persa, (eu só comi esta coisa na guerra e nunca mais). Pathe de Foie francês (patê de fígado), salgadinhos de amendoim, amêndoas, castanha de caju, "frutos do mar" em molho picante de piri-piri português (postas de lagostins e camarão gigante de Moçambique, ostras das Filipinas etc.).
Às vezes chegava também em embalagem diminuta sardinhas portuguesas em azeite de olivas ou concentrado de tomate, eram mesmo de se ficar com água na boca, não é mesmo?
Ao contrário, já nas grandes era comum encontrar material para limpeza, (creolina, cloro, sabão em pó, produtos sanitários em geral), ademais sal grosso, óleo mineral.
Não tinha jeito nenhum segundo o tamanho da lata saber o que ela continha. Noventa e nove por cento delas estavam sem invólucro de espécie alguma. Vá saber o que tem dentro. Impossível.
Meu pai antes de comprar perguntava ao jangadeiro o que continha na lata que queria comprar, este balançava a lata pra cá e pra lá e dizia como se fosse ele mesmo o próprio aparelho de Raios-X: 
-"Esta lata seu Moisés (todo judeu no Recife matuto era conhecido como Moisés), contem leite condensado e grãos de milho verde, pode levar com toda certeza e bom apetite, amanhã me conte quando passar por aqui". 
Em casa ao abrir na hora da janta, então vinha à decepção. A lata continha centenas de pílulas contra malaria ou conserva de pepinos azedos ou compota de pêssegos, era dificílimo acertar em cheio, já estávamos conscientes disso.
Judeu é cheio de compreensão com o sofrimento alheio (está nos genes deste povo pelo o que ele mesmo absorveu durante sua existência como coletivo), então minha mãe vivia dizendo: "O que vem das desgraças de uns não necessariamente deverá trazer bonança para outrem". 
Tens razão mãezinha querida, é assim mesmo ao pé da letra!
Quando estas comidas em conserva vinham a nossa mesa e tínhamos sorte com o conteúdo das latas, comíamos uma refeição e sobremesa apetitosa pra valer, o café ficava por conta da casa.
Dava um nó no gogó. (Fenômeno do "bode expiatório"), pois sabíamos da procedência duvidosa. Quantos não perderam a vida para que estas latas de boa comida chegassem a nossa casa e fossem servidas na nossa mesa.
Ademais poderiam ter sido fabricadas por nazistas ou os judeus obrigados aos trabalhos forçados nestas fabricas de apoio logístico ao exercito alemão.
Salsichas com repolho azedo (Wurstchen mit zauerkraut), comida predileta do povo alemão era o que mais chegava quando os aliados torpedeavam submarinos ou corvetas nazistas que viviam fuçando as nossas costas.
Claro que esta lataria não era "Kosher" (comida preparada e supervisionada segundo os regulamentos da religião judaica), mas na guerra é como na guerra, se "come até gato por lebre" e ninguém reclama.
Então minha gente, dizia o meu avô tomando mais uma pitada de rapé e acendendo outro cigarro Regência, tem ou não tem quem ganha com a guerra? 
Meu Deus, até me arrepio quando digo esta infâmia e que minha boca não emudeça e minha língua não entorte. (Praga usada, derivada do dialeto judeu, o "iídiche").

(Todos os direitos autorais reservados) 

2 comentários:

  1. M. Rosenblatt- Israel
    DISSE:
    Muito bom mesmo mas, se seu avÔ tivesse lido esse artigo meu que vai aÍ anexo, ele saberia porque existem guerras.
    ------------------
    I. Coslovsky- São Paulo
    DISSE:
    PREZADO PAULO,

    MAIS UMA VEZ, NADA A COMENTAR, O ARTIGO ESTA PERFEITO. CADA VEZ ADMIRO MAIS A SEMELHANÇA DAS SUAS LEMBRANÇAS COM AS MINHAS. SÓ QUE, AQUI NO RIO, AS LATAS QUE DAVAM NAS PRAIAS, PRINCIPALMENTE A DE COPACABANA, PERTO DA CASA DOS MEUS PAIS, NÃO ERA, DE COMIDA, E SIM DE MACONHA...UM BARCO OU NAVIO,PERSEGUIDO PELAS AUTORIDADES, RESOLVEU DESOVAR A CARGA EM FRENTE A PRAIA DE DECOPACABANA, E NO DIA SEGUIINTE TODO MUNDO CORREU PARA SALVAR AS LATAS... DE MACONHA !

    UM ABRAÇO

    ISRAEL ; NECO
    ______________________
    Paulo Lisker de Israel

    Estimados leitores,
    Muito obrigado pela vossa atenção dispensada a estas minhas crônicas sobre fatos acontecidos no Recife e visto através da colônia israelita do Recife.

    21 de julho de 2012 11:06 Excluir

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  2. Matilde Steinberg
    12:07 AM (15 hours ago)

    to me
    Caro Paulo
    Parabens pelo blog.
    Está ótimo .Imagine que eu já tinha separado suas cronicas numa parte do meu computador.
    Todas que chegavam ia colocando lá.
    Agora ficou melhor ainda.
    Desejo para você e seus familiares um Shavua Tov (Ótima semana).
    Abraços

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