quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O senhor Severino de São Lourenço e a Entrega do pão em casa.

DEZEMBRO DE 2011

O senhor Severino de São Lourenço




Rabisco  do autor do texto

Os pregões que me lembro do Recife "matuto"
Paulo Lisker, de Israel

Minha rua era um mercado ambulante dos mais variados do mundo, com serviço na porta de casa.
Eu como menino imaginava que a nossa rua e seus vendedores ambulantes "ganhavam" até do famoso Mercado Persa.
Eu satisfeito, as amas de casa satisfeitas, os vendedores ambulantes satisfeitos, a rua toda satisfeita e o Recife também.
Que se pode exigir mais que isso?
Pensei relatar numas poucas linhas do que recordo porem os anos não perdoam e possivelmente me esqueci de um ou outro vendedor ambulante com seus balaios ou tabuleiros cheios de coisas gostosas que nunca deveria esquecer, mas acontece.
Estas imagens parecem que ficaram grudadas nos nossos genes e acompanham a gente até o fim e pronto!
Era uma verdadeira festa de cheiros, cores, gostos e ambulantes compadres simpáticos.
Assim era o passado da nossa rua e talvez de todo o Recife "matuto".
Um palco gigante, atores, protagonistas com tez de todas as cores, cada qual vestido a sua maneira, eles mesmo escreviam o enredo, a letra, a musica, o ritmo e o tempo de duração do espetáculo diário.
Nós os moradores desta rua éramos os espectadores na platéia destes "atores saltimbancos".
Platéia que nunca ficava "enjoada" (insatisfeitos, em nordestino) com o "espetáculo", pois todo dia era diferente, cheio de mudanças, imprevistos, discussões sobre a qualidade do produto, o preço deles, a carestia em geral e até se falava sobre a política local.
Depois do meio dia lá pro lado da Rua do Sossego, ainda se ouvia os últimos pregões e sabíamos que mais um pouquinho chegariam à Rua Gervásio Pires, a minha rua.
Entre outros, aparecia como de costume nas quintas feira o "provedor de carne de carneiro" na sua fubica buzinando com aquele som do passado AUA- AUA- AUAUAAÁ.
Desta forma ele avisava que chegara trazendo o que tantos esperavam.
A carne fresca de carneiro novinho, criados em pastos de brêdo, capim e azevém (Será que tem disso em Pernambuco)?

O SENHOR SEVERINO DE SÃO LOURENÇO
(O homem da carne de carneiro)
Recordo-me muito bem do senhor Severino de São Lourenço.
Ele entrava em ação quando havia falta de carne fresca (racionamento em determinadas épocas).
Havia disso no Recife e talvez em todo território nacional, obedecendo às promulgações de proibição de abate de ventres bovinos, ou de gado para o mercado interno no intuito de cobrir as cotas de exportação ou qualquer outra razão.
Senhor Severino era amigo de casa do coronel Chico de Limoeiro. Ele tinha uma pequena estância de engorde em São Lourenço e criava para levante (engorde, nas épocas de fartura de pastos), algumas cabeças de gado bovino e especialmente ovino e caprino.
Ele era que quase sempre resolvia o problema da falta de carne no mercado do bairro da Boa Vista onde a comunidade judaica fazia as compras deste produto para o "shabes" (sábado).
Sempre dava um "jeitinho" ou "quebrava o galho" (expressões que significava na boca do povo, contornar o que está difícil ou proibido de momento), trazendo carne, de preferência ovina em certos dias da semana, houvesse racionamento ou não. O tal "jeitinho"!
Carne fresca tão procurada nos açougues da cidade não estava sempre à disposição do publico nestas etapas do ano. Sim existia carne congelada proveniente da Argentina ou do Uruguai e que os judeus naquela epoca evitavam o seu consumo.
Para a comunidade judaica que a buscava carne fresca para as comidas do sábado, esta falta era vital e os entristecia por não poder "Lekabel hashabat ki halahá" (festejar o sábado como deveriam de acordo com a tradição religiosa).
Para que não faltasse alguma carne na mesa das casas judaicas, nos fins de semana para a ceia da sexta feira, entrava em ação o senhor Severino de São Lourenço.
Pelo horário dos judeus na tardinha da sexta feira já inicia o sábado.
Ao despontar a primeira estrela ao escurecer na sexta feira, inicia o dia de sábado. O dia muda com o aparecimento das estrelas e não quando vira os ponteiros do relógio à meia noite.
O sábado é considerado a "rainha dos dias" ("Shabes Malque", em iídiche), mesmo nas casas mais pobres se dava alguma relevância a este dia e na mesa da ceia do sábado estava presente o melhor dos alimentos que a família podia dentro de suas possibilidades conseguir.
A carne era uma delas e sempre causava alegria dos presentes na hora do jantar do sábado, dia do Senhor e do descanso.
Lembro que para nossa casa o senhor Severino sempre trazia um quarto de carneiro na quinta feira e minha mãe lhe pagava o dobro do preço tabelado no açougue. No açougue estava o preço tabelado, porem carne não existia, só ganchos vazios e as portas da geladeira abertas para ventilação, mas carne mesmo, nem pra remédio, nem hoje nem amanhã. Assim era nas etapas de racionamento da carne.
Como era o costume nestas ocasiões os açougueiros diziam: 
-"Está em falta hoje minha senhora! Quem sabe amanhã chegará, venha amanhã, guardo para a senhora sem falta"!
Neste período de falta, senhor Severino "quebrava o galho" e a carne verde para o fim da semana chegava a nossa mesa e de muitas outras famílias judias da comunidade.
Os mais entendidos na problemática do comportamento da vida judaica na diáspora, perguntariam e com toda razão sobre o abate destes animais. Era ele feito segundo os princípios religiosos da "Cashrut"? Pois era para estar na mesa no sábado santo, a "rainha dos dias", assim deveria ser não é mesmo?
Infelizmente a resposta é negativa.
Durante um tempo um dos açougueiros judeus do Recife, o senhor Abel que tinha um açougue na Rua do Hospício viajava para o interior e lá dava as instruções como fazer o abate "casher" destes animais.
Porém depois de uns tempos com a intensificação da fiscalização nas estradas a coisa deixou de funcionar, apesar de quase nunca ter havido racionamento para o abate de ovinos e caprinos no nordeste. Culpavam estes animais como sendo os verdadeiros causadores pela desertificação de areas sertanejas (Deserto, desertão, sertão), então quanto deles abatidos para carne, melhor.
Logo depois do abate, o senhor Severino voltava para o Recife trazendo e distribuindo a carne na sua camionete Fiat (caindo aos pedaços). Ela vinha cheia de barras de gelo envoltos em sacos de juta para conservar o frescor da "carne verde" até sua entrega na porta de nossas casas.
A vida dos judeus na diáspora obrigou a esta comunidade viver num compromisso entre a sua religião e a realidade do cotidiano.
Assim este povo apesar de todas as dificuldades do cotidiano nas novas terras, conseguiu atravessar de uma maneira sutil as diversas etapas históricas conservando suas bases religiosas e costumes de seus ancestrais convivendo em harmonia com a sociedade local.
Como diziam todos, vivacidade judaica, "acredite em Deus, mas desconfie".

- ENTREGA DO PÃO
Às 10 horas vinha correndo Zezinho da padaria da praça e fazia a entrega ainda quentinho de pão francês, pão doce e o bolachão famoso desta padaria. O pagamento era feito uma vez por semana na padaria pra evitar o contacto de dinheiro com as mãos de quem levava e distribuía a mercadoria. Muito bonito e higiênico para aquela época.
Zezinho ganhava uns cruzados quando levava e trazia de volta as tortas que as senhoras donas de casa preparavam, mas não tinham a possibilidade de assar.
Então veio a genial idéia de pagar algo para que na padaria da praça aproveitassem o calor dos fornos para o pão e também colocassem as tortas.
Desta forma, todos, especialmente Zezinho, saiam satisfeitos e bem pagos.

Todos os direitos autorais reservados.
Cuidem com os créditos

3 comentários:

  1. Eng. Isaias Rosenblatt Recife
    DISSE:

    A CARNE DECARNEIRO
    De: Paulo Lisker
    Muito interessante, mesmo.
    Muitas coisas mudaram, já não temos o mesmo problema de racionamento de carnes já que o Brasil é o maior criador de gado (adeus florestas...) do mundo com todos os requisitos mais modernos de criação, e é claro não tem mais os mercados persas de comida, agora tem muito ambulante vendendo tudo que é produto chinês contrabandeado do Paraguai por uma fração do produto nacional.
    O mercado da Boa Vista (e os outros tb.) estão mais ajustados, mas tem de tudo, e no sábado vou com os amigos tomar umas cervejas por lá e comer uns arrumadinhos de charque e chambaril.

    ResponderExcluir
  2. Eng. Isaias Rosenblatt Recife
    DISSE:

    A CARNE DECARNEIRO
    De: Paulo Lisker
    Muito interessante, mesmo.
    Muitas coisas mudaram, já não temos o mesmo problema de racionamento de carnes já que o Brasil é o maior criador de gado (adeus florestas...) do mundo com todos os requisitos mais modernos de criação, e é claro não tem mais os mercados persas de comida, agora tem muito ambulante vendendo tudo que é produto chinês contrabandeado do Paraguai por uma fração do produto nacional.
    O mercado da Boa Vista (e os outros tb.) estão mais ajustados, mas tem de tudo, e no sábado vou com os amigos tomar umas cervejas por lá e comer uns arrumadinhos de charque e chambaril.

    ResponderExcluir

  3. Eng.Ildo Eliezer Lederman-Recife
    DISSE:

    Paulo, Chag Chanucá Sameach.
    Gostei muito de ler esta sua última crônica que trata com muita propriedade, estilo e sentimentos do 'fornecedor' de carne de carneiro á comunidade judaica do Recife do bairro da Boa vista.
    Venho lendo e acompanhando as suas crônicas desde o momento em que vc. começou a escrevê-las e, posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que elas foram melhorando, sensivelmente, a medida que vc. ganhou confiança e acreditou naquilo que passou a ser a sua 'musa inspiradora'.
    Bravo, bravo, Paulo.
    Helinho

    ResponderExcluir