domingo, 4 de agosto de 2013

O SENHOR SADIGURSKY (Parte 5, final)


O senhor Sadigursky - Parte 5 (final)


               Foto do homenagiado no dia do seu " Bar Mitzva" ( Festa dos 13 anos de idade)
Os pregões que me lembro do Recife "matuto"
Paulo Lisker, de Israel

Segunda aquarela judaica  do Recife. Parte 5 (final)
 "SADIGURSKY"

(O nome provavelmente deriva da cidade Sadigora (1) no Leste Europeu, possivelmente Ucrânia)

"
SADIGURSKY", o mascate judeu e outras coisas.

Lá para as tantas, a festa do casamento estava muito animada, todos os convidados dançavam em roda a "Hoira" (2) e pulavam alegres com as músicas "kleizmer"(3) e "Freilach" (4) dirigidas pelo "maestro" Sadigursky, ele e os músicos suavam aos cântaros, não havia ar condicionado, nem ventiladores, só a brisa e que nem sempre soprava pelas janelas abertas do salão, puta de um calor arretado. Aí davam o merecido descanso aos músicos. Nesta oportunidade era servida uma lauta janta para os convidados e também para os músicos da banda.
O maestro Capiba (5) tomava o seu conhaque e olhava com carinho o "maestro reserva" ao terminar a sua atuação com música judaica. Daí por adiante a Jazz Band Acadêmica vai ter um maestro de verdade, o muito estimado e conceituado pela colônia israelita do Recife, o maestro Capiba.
Agora seria música para dançar agarrados e a meia luz que antecipava a celebre "dança dos noivos" com a clássica valsa especial para este evento.
Logo em seguida o rabino casaria os jovens noivos debaixo da "Hupá (6), como manda o costume judaico, dizem uma prece com o vinho tinto, o noivo descobre o véu do rosto da sua futura esposa, e provam do vinho que lhes é servido pelo rabino num cálice de prata.
O rabino lê em voz alta para que todos os convidados escutem o resto das preces para tal evento e logo a seguir o "protocolo" (há Ktubá), que está escrito a mão pelo rabino num pergaminho. Lá estão às condições acordadas pelo jovem casal e suas respectivas famílias para este matrimônio. A soma em dinheiro para indenização que deverá ser paga caso haja separação ou divórcio.
Antes mesmo de finalizar este costume tradicional, o noivo quebra um copo com a planta do pé em lembrança a destruição do templo em Jerusalém, dizendo as palavras:
"Que Deus me castigue paralisado a minha mão direita e secando a minha língua, caso me esquecer de ti priorizar nos meus pensamentos, oh Jerusalém".
Em hebraico: "Im eshkachech Yerushaluaim, ishachach iemini. Im lo ihaléh Ierushalaim al rosh simchati, tebak leshoni le leichi".
Todos juntos numa só voz respondem: Ámen!
Se a ordem da cerimonia religiosa, não era exatamente assim, me desculpem pois era eu muito criança na época. 
O Senhor Sadigursky há esta hora já tinha comido pela segunda vez.
Claro, porque não aproveitar esta "imensidão de comidas judaicas super gostosas" que estava à disposição para qualquer convidado e claro que também para ele que estava de "barriga vazia". Uma fome danada desde ontem, agora era só estender a mão e pegar do bom e do melhor, então por que não? Pergunta tola!
Era nesta hora que ele se vingava dos patrícios "novos ricos", a família Begleibter (do lado do noivo) e a família Zingorevich (do lado da noiva).
Agora ele iria explorar ao maximo o bufê e mostrar "por onde mija o peixe" (fun vanet pisht a fish, em iídiche).
Ia de mesa em mesa arrumando, servindo algo que faltava e murmurava com seus botões do paletó preto lustroso e fedendo a naftalina.
"Estes mesquinhos pagam uma miséria pelo meu trabalho de "maestro reserva", ajudante de garçom e responsável pelo gelo nas bacias das bebidas frias, uma bagatela de três contos de réis, que vergonha!
Por um lado satisfeito pela boa sorte de ter grátis ótima comida a sua inteira disposição e igualmente abusado pelo azar de ser mal pago pelo trabalho puxado durante horas. Dialética da vida.
Arrastando os pés ia de mesa em mesa servindo numa bandeja cheia de "knishes" (pastel recheado com puré de batatas, cebola frita e condimentos diversos), andava e murmurava:
Podiam pagar bem melhor, quem eles pensam que é Sadigursky, um "pusheter leidigueir" (um vagabundo qualquer)?
Cheguei aqui ao meio dia para preparar o salão, trabalho a noite toda, sem tempo nem pra respirar, não se envergonham? Esqueceram seu passado.
O que são três contos de réis hoje, nada, uma esmola, mesquinhos de merda!
A diferença vou tirar na comida, "Fressn azoi vi a belguisher ferd" (devorar feito um cavalo belga faminto). "Hamehaie" (será um alento até para minha alma). Maneira de se expressar em iídiche quando um está arretado da vida.
Todo tempo estava em movimento e não parava um minuto sequer. Agora vinha correndo ao seu encontro "Elék chop-chop" outra figura fora de serie, o único garçom judeu profissional de bares de segunda, junto a Ponte Velha, esta noite foi recrutado para o casamento.
Fazia malabarismo, trazia seis garrafas de cerveja bem geladas entre os dedos, para satisfazer o pedido da mesa numero 36 da família de "Galo de Raça", apelido dado pelos zombeteiros da colônia judaica ao chefe desta família.
Aqui entre nós, quase que não existia um judeu nesta comunidade sem apelido, tanto homens como mulheres.
Eu mesmo juntei de memória pelo menos 200 apelidos, mas isto não é tema para publicar atualmente em blog.
Quem sabe com uma ou duas gerações mais, alguém com dom literário maior que o meu, escreverá alguma sátira que tenha a ver com este assunto interessante.
De apelido, ninguém escapava. 
Com a boca ainda cheia, mastigando os "varenikes", os "kreplach" ou os "knishes" (Comida tipo pastel do cardápio judaico) servido em bandejas por outros garçons, saiu de mansinho senhor Sadigursky do salão da Sociedade Israelita na Rua da Glória e ia rapidinho de volta ao "pé de escada" na Praça Maciél Pinheiro.
Trocava de roupa com seu irmão gêmeo e o mandava de volta em seu lugar para a festa (Onde cabem dois cabem três também).
"Vai rápido mano, ainda chegarás a tempo de deliciar uma apetitosa refeição, muito chope de barril, fino conhaque, tudo de primeira. Ninguém vai notar, pode estar certo"!
Todo mundo está com a cabeça e os olhos voltados aos lautos pratos servidos cheios de comida e se alguém quer mais é só pedir e logo vem. Muita comida mesmo!
"Guei shnel, azoi vi a vint" (em iídiche: Vai rápido feito o vento).
Tem tudo do bom e do melhor, é o casamento dos Begleibter com os Zingorevich da Bahia, gente de posse, mas mesquinhos pra pagar pelo meu trabalho. Na festa não falta nada, tem de tudo à vontade e do melhor, repisava. Só a minha propina uma grande merda (em iídiche: a groisser drek).
Quando tu chegar lá, logo na entrada tu pegas um par de "varenikes e de knishes", obra culinária conhecida de dona Shprintze, cochas tenras de peruas, Fígado a carreteiro (Guehakte leiber) de dona Luiza a "gordona" do Beco da Mangueira, campot e o famoso fludn (enrolado recheado com frutas secas nozes e castanhas) de dona Rostolder, uma delicia. Conhecido em todo o Recife e até em Salvador da Bahia.
Na primeira oportunidade pega umas maçãs "Rio Negro" da Argentina e trás pra casa, elas são gostosas e boas para "prisão de ventre" quando o "Leite de Magnésia" não faz efeito. Vai, vai mano, te apressa.
Apressava-se o irmão gêmeo e quando dava seus primeiros passos na rua se volta e pergunta:
Como estou mano, a coisa funcionará?
Vai, responde senhor Sadigursky.
Sempre funcionou por que exatamente hoje que tem comida e bebida de primeira não funcionará! Estás prontinho?
Não mano, esqueci o chapéu!
Olha rapaz se tu vais nessa moleza não irás comer nada, deixa pra lá aquele chapéu machucado e sujo, ele só presta pra pedir esmola e não para ir a casamento de gran finos.
Não esquece a dentadura postiça, viu!
Ai é verdade, onde estava a minha cabeça.
Não é a cabeça que não tens no lugar certo Shmil e sim a dentadura. Sem ela estás "lascado" e voltarás faminto.
Toma, coloca a "nossa dentadura" na tua boca agora e vai correndo para o salão.
Caminhando, colocando a dentadura na boca, que minutos antes mastigava as boas comidas na boca do seu irmão gêmeo, murmura em voz alta:
Parece que esta festa tá muito boa e sortida, tem arenque importado e do bom ou será caviar persa? O gosto grudou na dentadura e ainda se faz sentir. "A mulé taam", (um gosto celestial).
Já se afastando, ainda escuta o seu irmão gêmeo dar-lhe as ultimas instruções:
- Mano, não te esquece de trazer de volta as minhas partituras, (di notn, em iídiche) que deixei com o maestro Capiba quando saí apressado as escondidas, estas ouvindo?
Se ele perguntar alguma coisa, diz que agora ele tome a batuta da banda com as músicas dele e que tu vais beber, descansar e conversar com os pais da noiva.
Fica até o fim da festa, ajuda a arrumar o salão, aproveita e traz uns potezinhos de azeitonas gregas da Helvética, pepinos e pimentões encarnados em conserva com vinagre e alho feito por dona Rosa Litvin da venda na Rua da Matriz. São deliciosos, tudo isto está em cima das mesas e sobrou da grande "comilança dos famintos" esta noite.
Se tu não recolhes e trás pra nós, irá tudo para o lixo. Escutaste mano? Uma pena.
Antes que me esqueça, escuta bem, eu vou dormir. Quando chegares de volta na madrugada não te esqueças de tirar a dentadura postiça e colocar num caneco cheio cachaça, para desinfetar, está no banheiro junto do espelho. Amanhã logo cedinho preciso dela sem falta. Tenho que ir a sinagoga do Beco do Camarão para o Bar- Mitzvá (7) de Rubinho. Ele foi meu aluno nestes 3 últimos meses de preparação para este importante evento.
Estás ouvindo, "guei shoin" (vai rápido, desaparece) "guei in sholem" (caminha em Paz, em iídiche).

Estimados leitores vocês estão meio atônitos?
Agora entenderam quão semelhantes eram estes gêmeos, até a dentadura postiça, usavam em comum.
Ninguém no salão do casamento deu fé que o Sadigursky verdadeiro já estava dormindo há muito tempo.
Agora entre os convidados "rodava" (circulava na língua de gente) no seu lugar, o irmão gêmeo Shmerl.
Eita peste de parecidos, Ta até demais, usando a mesma dentadura postiça é mesmo para estourar de gargalhar. (em iídiche: Zei nitsn di zelbe falshe tzein, me ken platzn fin a guelechter).
Papel carbono, a cara dum o c..... do outro.
"Cuspido e escarrado", como diziam na gíria da rua.
Os dois irmãos realizavam quando lhes davam a oportunidade "a mamzerut judaica" que os deixava de barriga cheia com o bom e o melhor.
Era mais uma noite de sono sossegado, sem roncaria do nariz fanhoso e da barriga vazia.
Meu desejo é que estes judeus novos-ricos tenham se Deus quiser muitos anos de vida e muitos filhos pra noivar e casar. Só assim os irmãos Sadigursky "tirarão a barriga da miséria".
Da inteligência e a perspicácia destes irmãos gêmeos um dia alguém escreverá um livro com muitas páginas e que interessará a meio mundo.

Uma comunidade que tem gente como os irmãos Sadigursky,
viverá eternamente num clima de alegria, humor, e satisfação.
Terão estórias para contar a seus netos e bisnetos.
Isto, sempre que nesta comunidade existam cronistas que registrem os acontecimentos em tempo útil e não como estamos fazendo agora, 60 -70 anos depois do acontecido.
Por isso mesmo, hoje muita gente dúvida que isto tenha acontecido e considera toda essa "estória comprida" que relatamos nesses 5 capítulos, uma "lenda urbana" e que jamais existiu! Será?
A pobreza em que vivia a maioria da comunidade israelita no principio do século passado no Recife, forjava indivíduos com uma enorme força de vontade e imaginação para vencer e construir pra si e a sua família, um mundo melhor no Brasil.
Este povo criava na vida calma do Brasil, condições que permitiam situações sarcásticas, satíricas e estórias "para o boi dormir", rindo de si mesmo e deste povo errante hoje e eterno pela proteção divina.
Mangando (rindo), sobreviveram todas as situações caóticas criadas pela bestialidade humana.
As próximas gerações deverão se cuidar para não se assimilar muito rapidamente e se tornar 100% "goim" brasileiros.
Caso isso aconteça, perderiam a "mamzerut" (humor sarcástico judaico), seria uma pena.
Esta "mamzerut" permitiu a este povo conservar o bom humor durante os dois mil anos da diáspora.
Então gente, cuidado, muito cuidado com a assimilação.
Pensando bem, o brasileiro nato não fica muito para atrás, ele também é muito brincalhão, cheio de "macetes e quebra galhos" de uma criatividade ímpar e de atitudes inesperadas.
Quem sabe não é herança do sangue judeu que veio com os Cristãos Novos (8), nos veleiros de Cabral.
Este talvez tenha sido o motivo principal da boa integração dos judeus no Brasil.

Desculpem-me, agora já estou especulando.
Acho que ninguém mais que os irmãos Sadigursky, de bendita memória, merecem a honra de estar hoje com toda razão em companhia dos Patriarcas Moisés, Abraão, Isaac e Jacob lá em cima nos vigiando para que preservemos mesmo na "sombra e água fresca" brasileira, a eternidade deste "povo preferido", como diz a Bíblia. Ámem!

Fim da Parte 5 (final) da segunda "Aquarela judaica do Recife" 
"O SENHOR SADIGURSKY, mascate e um pau pra toda obra". (Recife)
("ZICHRONÓ LE BRACHÁ", em hebraico "DE BENDITA MEMÓRIA" em português).
07-11-2011
Paulo Lisker-Israel
(Todos os direitos reservados por lei)
Na próxima semana se Deus quiser, outra "aquarela judaica do Recife".

GLOSSÁRIO:
1. SADIGORA: uma pequena cidade no leste europeu (Ucrânia) que gerou durante gerações Rabinos famosos e ultras ortodoxos.
2. HOIRA- Dança tipo Ciranda (em roda) originaria do mundo judaico no Leste Europeu.
3. Kleizmer- "muzicant", tocador de um instrumento musical.
4. Freilach- Música executada em estilo saltitante, rápido e alegre que faz mexer com o corpo e alma.
5. Capiba- Lourenço da Fonseca Barbosa. Maestro e compositor. Nascido na cidade pernambucana de Surubim, viveu e compôs no Recife.
6. Hupá- O casamento com todos os requisitos religiosos é realizado debaixo de uma cobertura de pano preso por 4 bastões que as testemunhas do ato seguram.
7. Bar Mitzvá- Comemoração dos 13 anos dos varões judeus, que nesta oportunidade recebem todas as responsabilidades sobre si e seu povo. Podem participar das rezas e dos costumes religiosos da comunidade.
8. Cristãos Novos- Judeus que foram forçados pela Inquisição na Península Ibérica a se converter ao cristianismo. Desde o tempo do descobrimento vieram para o Brasil milhares de pessoas desta fé. Só assim escapavam das garras da famigerada Inquisição.

2 comentários:

  1. Claudio Azoubel Salvador-Bahia
    Disse:
    Paulo
    De inicio quero te agradecer pelo envio da Parte IV do Senhor Sadigursky. Acompanha o padrão de qualidade das outras quatro e sem dúvida relembra coisas de uma época onde não havia na comunidade judaica de Pernambuco, cultura de registros.
    2 - Claro que quero que voce coloque o meu nome na sua lista. Será uma satisfação para mim receber suas cronicas
    3 - Realmente, é uma pena que nenhuma entidade judaica aqui no Brasil venha publicando suas cronicas. Alias, tomei conhecimento delas atraves de uma amiga goim Leony Muniz que me enviou a parte III do Senhor Sadigursky. Só depois é que consegui com a Sluva, as partes I, II e V. Estou há muitos anos residindo em Salvador/BA, mas pelo que lembro, o Germano Haiut era (e acho que ainda é) um ativo membro da comunidade de Recife. Será que ele se interessaria em promover a divulgação ? Pelo que ví, você já tem contactado ele.
    4 - Dou tambem meu testemunho dos poucos recursos dos judeus que chegaram aqui no inicio do seculo passado. Meu avô David, que chegou em 1903, veio mesmo só com a cara e a coragem e só depois de conseguir algum ganho é que mandou buscar a familia em Smirna.
    5 - Estou anexando as 15 faixas do LP do Gilvan Chaves (consegui passa-las para CD). As faixas 13, 14 e 15 contêm os pregões dos vendedore de rua que mercavam em Recife nos meados dos anos 40 e 50. Eram figuras interessantissimas que creio terem circulado muito pela praça Maciel Pinheiro,bairro da Boa Vista, e atendido a muitas das familias judias que lá moravam. Por considerar as outras faixas tambem reliquias para quem viveu Recife na época, não resistí e seguem todas.
    Um abraço,
    Claudio Azoubel

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  2. Lucivânio Jatobá
    Disse:
    Excelente crônica!

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