Entendidos no jogo do bicho, para dar e vender

O JOGO DO BICHO e a colônia judaica do Recife - Parte 5
Tema: ENTENDIDOS NO JOGO DO BICHO, PARA DAR E VENDER.Paulo Lisker, de Israel
Compadre Benjamin dizia ao compadre Samuel, nada mais fácil não é?
É só ir à banca do bicho de Vicentinho, ali na esquina do açougue da Rua Jiriquiti defronte da mercearia do senhor Lopes e cochichar o teu palpite do "bicho" e pronto, leva o teu recibo e não esquece, sem ele, caso tu ganhas não te pagarão nem um vintém.
Por que cochichar compadre Benjamin, agora que sei que não tem espia nenhum nos vigiando.
Tolo, tu confias nesta gente? O palpite é só teu, queres que toda gente te ouça e joguem como tu? O premio neste caso será tão pequeno que não vale a pena nem caminhar a pés pra chegar até a banca. Fica em casa é melhor!
Escuta "tipesh" (tolo em iídiche), somos filhos de um povo de profetas, o nosso palpite vale mais que ouro, pois os profetas sempre estão com um "pé na frente" de toda gente, imaginas não saber que bicho vai dar hoje de tarde ou amanhã? Então que diabo de filhos de profetas, somos nós.
Olha eu já estou pensando que tu não es judeu, onde está a tua cabeça ou o que tu tens pegado no pescoço é um jerimum e nem presta pra botar o chapéu?
Ai meu Deus, às vezes se depara com cada judeu burro! Onde você nasceu? Tu com certeza es proveniente da aldeia de Helem, não é? Aquele vilarejo na Polônia oriental que o escritor judeu Shalom Aleihem escreveu que lá vivia a população mais idiota da Europa. Nem a tabuada sabiam de cor para fazer contas, para tal, usavam os dedos das mãos e dos pés e quando acabavam os dedos, as coisas se complicavam e a conta saía errado, ai que vergonha!
Uma das estórias deste escritor que ainda me lembro, era assim:
"Em Helem tinha um buraco na ponte que dava passo a feira. Todo dia caía desta ponte um pedestre e se feria demais. Então urgentemente foi decidido na comissão diretiva da aldeia, construir uma enfermaria debaixo da tal ponte". Resolvido o problema!
Já viu uma coisa destas, "judeus burros"!
"Mentsh" (cidadão, em iídiche), toma jeito e cuidado com estranhos junto da banca do bicheiro, guarda o teu palpite só pra ti. Estás ouvindo?
Retrucou Samuel: Eu sou romeno da Bessarabia Senhor Benjamin. Segundo eu sei os ali nascidos, são os judeus mais inteligentes e os melhores comerciantes de toda Europa.
Espantado com a resposta, diz o senhor Benjamim: Samuel, quem sabe o senhor é à exceção a regra. Riu e lhe deu uma palmadinha amigável nas costas e acrescentou num tom quase familiar: Faça o que te digo e não te arrependerás, "oi bist a eizl" (em iídiche: es um jumento).
Te digo outra coisa importante, recorda este ensinamento durante toda tua vida, assim como nunca esquecemos a "Santa cidade de Jerusalém" (usam a expressão em hebraico: "Im eshcahech Ierushalaim"), da mesma forma nunca esqueças de levar a copia do teu talão do "bicho", pois sem ele é mesmo como se nunca tivesses jogado.
Lembra o lema que todo bicheiro respeita mais que sua própria mãe: "VALE O QUE ESTÁ ESCRITO", e no recibo tem um sinal de alerta bem grande. Sem o recibo estás fodido!
Na nossa Bíblia Sagrada (em iídiche: "Di heilike Toire"), também só vale o que está escrito, não é mesmo compadre Samuel?
Agora o talão do bicho e a nossa "Toire" (Bíblia) têm o mesmo valor, responsabilidade e sinal de alerta para o "que der e vier", pois sem ela a nossa vida não valeria mais que "as cascas do alho" (klipot há shum, usado no iídiche, derivado do idioma hebraico).
Sem o talão, mesmo que "tiraste a milhar" no bicho do dia, é o mesmo como não tiveste jogado. Não adianta "nem choro nem velas" (ha neveire fin daine trern, do iídiche), não receberás nada, cascas do alho, talvez!
Assim como sem Jerusalém, não valemos nada como povo judeu, ta vendo compadre Samuel.
Pura ironia raciocinar desta forma, relacionando o mais sagrado com uma ação mais que ilegal.
Mas assim é!
Este povo milenar vive eternamente em simbiose com a dialética e as contradições do cotidiano.
Ambas, Jerusalém ("a casa de Deus") e o talão do bicho (com "uma milhar") nos proporcionariam a eterna esperança e um gozo celestial no dia que alcancemos as duas coisas. Então contradições ou não?
Eta povo danado pra gostar de sarcasmo. Talvez seja o subterfúgio para a sobrevivência como coletivo, nessa jungla de racismo no mundo todo, quem sabe?
Faz-se necessário explicar que numa reunião de imigrantes recém chegados lá na Praça Maciel Pinheiro, muitos deles perguntaram ao bicheiro Saraiva que se prontificara a dar as necessárias explicações de como jogar no bicho com cuidado e não se expor por demais aos riscos diários desta "loteria" .
O mais importante da conferencia era alertar aos interessados como se decide qual o "bicho" que se deve colocar na aposta daquela tarde.
Ele era a "máxima autoridade" e em poucas palavras dizia:
De noite quando vocês sonharem lembre pela manhã e terão o "bicho" que dará de tarde.
Esta é em resumo é toda a filosofia onde arriscar o seu dinheiro na banca do bicheiro.
Por exemplo: Sonhaste com o "Omi do miúdo", dá cachorro, com o leiteiro, dá vaca, caindo da cama e muito assustado é jacaré, com a mulher do vizinho xingando com os meninos na rua, na certa dará macaco, com o gorducho Leôncio da padaria Boa Vista dará porco. Entenderam? É muito fácil minha gente.
Quem não sonha ou tem dificuldades de lembrar o sonho da noite, então vai a uma "banca de bicho decente" (como se existisse bancas de bicho não decentes) e lá está à disposição do publico que precisa de uma orientação para formular o seu "palpite", uma "cartilha" destas bem simples e com desenhos para aqueles que não sabem ler.
Ela diz que toda e qualquer visão durante o dia pode também significar qual é o "bicho" que está "escondido" nela. É mesmo genial.
Por exemplo, tu viste a dona Joaninha a cozinheira da pensão Internacional, vestida com roupa colorida, dará na certa, pavão. Passou diante do teu nariz o "fresco" Amadeu, vulgo "rabo quente", dará veado. Passou na rua aquele verdureiro torcedor do Santa Cruz, joga na cobra é "tiro e queda", ficarás rico.
Viste seu Gumercindo que está como sempre sentado no Café Jasmim, tomando brisa ali na Rua da Aurora, se estiver cochilando, vai dar com certeza urso e se estiver bocejando em voz alta, dará com toda certeza leão.
Muito fácil minha gente, não desanimem nunca. Se não deu hoje, dará amanhã, às vezes o sonho de hoje tem efeito retardado. Sabem como é?
O homem era mesmo um "grande entendido" na matéria e falava como experto diplomado no jogo do bicho.
Complementava sua conferencia dizendo: Às vezes acontece que o radio por problemas atmosféricos, o som sai ruim, ou na Umbanda quando em lugar do Orixá, baixa os Babalaô, ou mesmo quando estás cheio de cachaça e surgem falsas interpretações para o "bicho" e o resultado sai meio disfarçado, meio incompreensível, ta vendo né? Mas é assim mesmo, por estas e outras têm o que se chama na língua dos profissionais, "o risco e as perdas". Sempre é bom ter cuidado ou usar um senso comum aguçado.
Onde se compra esse "senso comum"? Pergunta senhor Grinfeld.
Todos riem e o conferencista continua sua "aula" de como jogar no bicho.
Contaram-me, diz o bicheiro conferencista, que uma velhinha, conhecida como dona Julinha, que vive sentada numa poltrona na entrada do leilão Maia do português senhor Azevedo do Porto, junto à lavanderia do italiano Papaléo, ela é eximia na leitura do resto que fica no fundo da xícara de café. Técnica muito praticada pelas ciganas que às vezes aparecem lá pros lados de Tigipió ou Camaragibe. Depois de tomado o café as manchas deixadas no fundo da xícara formam a figura de um bicho.
Por uns tostões, ela lhe revela o bicho do dia.
Nem sempre dá certo, pois também ela sofre de interferências atmosféricas, por exemplo, se é um dia de muita umidade, ela coitada que sofre de reumatismo então tudo se complica e a figura do bicho fica meio embaçada, nem pra cá e nem pra lá, sem uma definição precisa.
Estão vendo, isso é o que eu chamo de risco. A velha senhora não é charlatã (enganadora), em geral ela acerta em cheio. O problema não é dela e sim do ar. Tudo nessa vida depende do ar e se ele não está de conforme, como queremos que o bicho esteja. Não dá, não é mesmo?
Neste caso o "estrago" não é grande, só o preço do cafezinho meio amargo que ela prepara na calçada da Rua da Conceição.
O bicheiro Saraiva ao terminar a conferencia se despedia da platéia com seu sorriso de "hiena chorona".
Muito boa noite e muita sorte no jogo e não contem a ninguém o vosso palpite do dia. Todo cuidado é pouco. Até a vista.
E se dirigindo ao senhor Moisés o organizador destas reuniões com o bicheiro conferencista, perguntava:
Quando recebo o pagamento pela conferencia seu Moisés! Amanhã darei um saltinho na tua alfaiataria, ta bem?
Outra coisa seu Moisés, me arranje uns botões daqueles grandes para o time de meu filho. Ele não para de me "encher o saco" para que lhe consiga uns botões com o senhor, pois está formando um time de botão pra participar do campeonato na Casa Amarela, ainda este ano. Não esqueça senhor Moisés, estarei lá sem falta amanhã!
A comunidade no principio do século passado estava aprendendo bastante com as conferencias e a troca de informações entre os compadres da colônia judaica.
FIM DA PARTE 5
03/3/2012
(Todos os direitos autorais reservados)
Semira Adler Recife
ResponderExcluirDISSE:
Os seus desenhos estão ótimos!
Você deveria se especializar em contos infantis e juvenis.
bjs,
Semira
Semira Adler- Santa Catarina - BR.
Em continuação,
DISSE:
Consegui ler esta crônica, Paulo.
Com um pouco de tempo que tive para mim.
Gostei muito dela e continuo achando que você
possui uma das melhores memórias mais privilegiadas que já vi.
Mais uma vez, meus parabéns!
E também pela boa grafia da língua portuguesa,
depois de meio século de hebraico.
Um beijo,
Semira
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Eng.Izaias R. Recife.
DISSE:
Sorry, pelo lapso, eu gosto do que vc escreve. Tenho acompanhado, distribuído, e guardado.
Eu não joguei no bicho, de fato.
Mas muita gente boa ainda joga hoje em dia. A associação dos bicheiros hoje se chama AVAL. Eu só jogo na MEGASENA e assim mesmo se estiver acumulada.
abcs
Izaias
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Lic.Sluva Waintraub Salvador-Bahia.
ResponderExcluirPaulo: Me parece que milhar é masculino---um milhar-o milhar.
Ver a música: Etelvina, minha nega, acertei no milhar, ganhei 500 contos não vou mais trabalhar.
Shalom, Sluva
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Semira Adler Recife
DISSE mais:
Li somente a 5a. cronica do Jogo do bicho e fiquei abismada:
que memória prodigiosa você tem! E quanta imaginação e conhecimento acumulou!
Parabens pra você!
Um beijo,
Semira
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Blogger Passiflora disse...
Muito obrigado pelos comentários.
Para um escrivinhador diletante que sou, estes comentários são um ensino e ajuda para melhorar o idioma desses textos que tem a unica função não deixar esquecer o que representou a comunidade judaica do Recife.
Portanto, aqui ficam meus sinceros agradecimentos a todos, os que comentam e a aquele que leem e deixam os comentários para outrem.
Paulo Lisker em Israel.
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