2011
O FISCAL DA HIGIENE
Este personagem saudoso, funcionário da prefeitura (creio) encarregado de cuidar dos nossos quintais e lugares ermos contra a proliferação das larvas de mosquitos e outros insetos que encontravam nestes sítios condições favoráveis para proliferar e depois transmitir a população um "monte" de febres tropicais.
Eu era menino e só me lembro dele e suas andanças na nossa rua (Gervásio Pires), nos anos 40 e 50, porém ficaram gravadas para sempre.
Daí para adiante ele desapareceu, não o vi mais na nossa rua, ademais nos meados de 1955, vim embora para a "Terra Santa", Israel.
Possivelmente este serviço funcionou até a metade do século XX e se acabou, talvez por ser caro demais para uma cidade como o Recife ou para o Estado de Pernambuco.
Nesta época o Recife era mesmo a capital dum Estado subdesenvolvido com todas as características para tal.
Não sei bem dizer se era um serviço da prefeitura ou algo de âmbito nacional, mas na nossa cidade naqueles saudosos anos o serviço funcionava, e como!
O homem vinha vestido com uma farda amarela com boné, lanterna de pilhas, martelo e uma bandeirola amarela.
Anunciava a sua chegada com a maior seriedade como se fosse um comunicado oficial do governo.
Era um homem franzino, com um salário de miséria, porém alfabetizado que fazia anotações do seu trabalho e deixava até uma copia na casa que visitou.
Comunicava a vizinhança a sua chegada para inspeção da seguinte maneira:
"HOJE É DIA DA HIGIENE, A HIGIENE CHEGOU PRA FAZER INSPEÇÃO E MATAR MOSQUITOS! VAMOS DONA MARIA PREPARE A CREOLINA E UMA VARA COM ESPANADOR PRA ACABAR COM AS TEIAS DE ARANHA. A HIGIENE É PRA HOJE PRA QUEM NÃO QUER AMARELÃO!
É DIA DA HIGIENE, VAMOS GENTE ACORDA"!.....
Alguém se lembra? Pois tinha disso também no nosso Recife matuto.
Eu ainda era muito menino quando ele vinha fiscalizar as condições da nossa casa, o quintal e nele os quartos usados como depósito de ferramentas e até de carvão vegetal para casos de emergência quando faltasse o gás de cozinha.
Às vezes por desleixo poderiam muito facilmente transformar-se num antro de produtores de um sem fim de enfermidades transmissíveis pelos mosquitos.
O Brasil e certamente também o Nordeste todo figuravam nas listas dos Organismos Internacionais da Saúde como possuidores de enfermidades que exigiam dos turistas, vacinação obrigatória.
Epidemias e doenças endêmicas transmitidas por insetos, assim como, malária, febre amarela, doença de chagas (barbeiro)* e muitas outras derivadas de água de chuva empoçada ou causadas pelas cheias frequentes que assolavam o Recife e produziam os famigerados mosquitos de todo tamanho e virulência.
As conhecidas "muriçocas e maruins" (em nordestino) se reproduziam em verdadeiras nuvens de "bichos brabos voadores" tinham vida efêmera porém molestavam que nem a peste da bexiga lixa! Era um inferno.
Nas águas empoçadas estavam presentes também as amebas, schistosomas, verminoses diversas, cólera transmitida por morcegos e cachorros doidos e mais o "diabo a quatro".
Típico de país subdesenvolvido era o nosso Recife naquela época. Os brincalhões costumavam dizer: "No tempo que se amarrava cachorro com linguiça", mas não era brincadeira!
Para isso foi criado este serviço de combate a uma parte destas infestações que derrubava amiúde muita gente e até causavam mortes nas áreas mais infestadas.
Dizia que era só para combater a febre amarela (yellow fever), porém na realidade era um serviço para muito mais coisas.
O povo conhecia este serviço e seus funcionários como, "A HIGIENE" ou "O HOMI DA MURIÇOCA".
Imaginem como um menino vê este personagem, responsável pela nossa saúde.
Antes de tudo ele me causava um pouco de medo. Fardado de pano de cor caqui e quepes de capitão, todo de amarelo. Numa mão uma bandeirola da mesma cor que pendurava na janela da casa que entrava para inspecionar e todo mundo sabia onde ele estava.
Quando se demorava no tal casarão poderia ser por dois motivos:
Um, que estaria "trepando" com a empregada jovem e enxuta (nós meninos sempre as idealizávamos assim).
A segunda hipótese era que na tal casa tinha mesmo muito canto para sanear, muita lata por furar e muita parede para pulverizar.
Sendo uma ou outra hipótese, os vizinhos desta rua tinham muito "pano de manga" para fuxicar e imaginar sobre a situação higiênica do casarão ou da "trepada apressadinha" com a empregada na casa de dona Berta ou de dona Sara.
Vige, dizia a gente toda. Tomou muito tempo do "homi da higiene" pra fazer o trabalho dele hoje e se satisfazer de todo!!!! Era a boca do povo!
Em geral ele carregava como ferramenta de trabalho uma grande "bomba de Flit", (maior que as do tamanho domestico) caso necessitasse pulverizar os cantos escuros dos quartos mal cuidados, paredes de taipa e galinheiros onde o "barbeiro" gostava de instalar-se. O seu hospedeiro predileto eram as galinhas, perus, marrecos e também pequenos animais, ratos, gatos, cachorros, etc.
Este "besouro" (vejam foto acima) atuava durante as noites, atacava as suas vítimas adormecidas e causavam com o tempo o que chamava de "coração de boi" (inchavam os órgãos internos especialmente o coração que no final estourava e causava morte instantânea). Naquele tempo não tinha remédio.
O "barbeiro" causador da doença de Chagas era uma coisa séria. Nas suas fezes, expelia as micro larvas sobre a pele da vítima, este ao se coçar as introduzia na camada subcutânea e daí sua proliferação na corrente sanguínea até chegar ao coração da vitima até fazê-lo inchar até estourar.
Depois de adulto, já estudante de Agronomia, contaram-me os extensionistas agrícolas quando trabalhavam no campo, nunca pernoitavam ou dormiam nos hotéis do interior do Estado. As redes nos quartos de todos os hotéis estavam infestadas de "barbeiro".
Dormiam dentro da camionete de serviço e com a luz interna acesa. Este inseto daninho só ataca de noite no escuro, durante o dia se esconde nas frestas das paredes, entre as telhas ou mesmo nas redes dos hotéis. Onde tem luz, não se move de seu esconderijo.
Outra ferramenta de trabalho do homem da higiene era um martelo com as duas pontas bem afiladas para furar toda lata, bacia, ou qualquer outra coisa abandonada nos lugares ermos que possibilitavam a acumulação de águas das chuvas e a proliferação de mosquitos transmissores de uma enorme gama de enfermidades tropicais.
Levava uma enorme lanterna de pilhas que lugar escuro nenhum o fazia retroceder sem antes realizar suas "pesquisas mosquiteiras" e sanear o local.
Pendurado no ombro levava uma sacola e dentro entre outras um caderno para anotações, uma espécie de diário onde registrava o dia da visita, o que encontrou, que tratamento foi dado por ele, se foi devidamente saneado ou deveria alertar a dona da casa para o problema. Uma cópia ficava com alguém da casa, em geral a empregada.
Minha mãe sempre aflita por causa dos mosquitos, perguntava sobre a situação do nosso casarão e seu enorme quintal (medo que tem todo europeu nas novas terras sul americanas). Nesta oportunidade ela servia um café com biscoitos ao pobre fiscal da higiene. Ele muito gentil agradecia. Sempre se interessava sobre a presença de ratos na casa. Caso recebesse resposta positiva ele prometia na próxima vez (daqui a três meses) trazer meia dúzia de ratoeiras.
Entretanto como a demora seria longa demais ele tirava da sacola que levava com os "instrumentos" uma dezena de "mata rato". Era um tipo de veneno que tinha o aspecto de um bombom embrulhado em papel celofane. Dizia ele que são tão efetivos estes "bombons" que era só cheirar e fim do rato.
Minha mãe recebia os "bombons veneno pra rato" e depois de mil agradecimentos ia esconder-los numa lata bem fechada de Aveia Quaker (White Oats) e a dita cuja escondia no terraço, atrás do registro do gás, pois se os meninos achassem pensariam que são "confeitos" (bombons) e poderiam cair na besteira de chupá-los.
"Got zol mir hup hiten", (em iídiche: Que Deus me livre que isto aconteça).
Ela dizia em iídiche para o meu avô sentado no terraço olhando a atuação do homem da higiene: "A guiter mentsh der higieniker" (boa gente este higienista).
Meu avô concordava balançando com a cabeça e murmurava com um cubinho de açúcar na boca: "ió, ió haguiter mentsh" (em iídiche: sim, sim boa gente).
Ao terminar a visita profissional na nossa casa se despedia como uma pessoa educada.
Ao sair ele levava a bandeirola amarela que deixou na janela e começava tudo novamente na casa vizinha.
Este senhor da higiene era a meu ver de menino, um exercito de um homem só, até me dava medo.
Só faltava acontecer o que eu imaginava sempre quando ele vinha, era carregar nas costas um saco grande pra levar meninos traquinos e malcriados. Dava um medo danado e fazia tremer que nem vara verde!
Todo tempo que ele atuava dentro de nossa casa e no quintal eu vivia agarrado na saia da empregada.
"Que isso menino, larga a minha saia, vai para teu quarto", reclamava a babá Maria do Carmo.
Assim foi minha gente, tempo do Brasil sério, mesmo que subdesenvolvido.
* Tripanosoma Cruzi que causa a doença tripanossomíases americana, estudados pelos médicos brasileiro, Dr. Carlos Chagas e Dr. Salvador Mazza. (Dados Google - internet)
Todos os direitos autorais reservados
Cuide dos créditos

ResponderExcluirDr.SAMUEL HULAK RECIFE.
MUSICOLOGO E COMPOSITOR.
DISSE:
Paulo,grato pelo novo capítulo.
O "fiscal" era funcionário federal
do "Serviço contra Febre Amarela".
Abraço,
Samuel.
ResponderExcluirAnônimo
Hélio bruma
DISSE;
Os textos do sr. Paulo Lisker, assim como os do sr. Liêdo Maranhão resgatram um Recife que não mais existe, devolvendo-nos emoções perdidas no tempo.
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Angélica Teresa Almstadter Recife
DISSE:
Se não me engano esse costume veio por conta de Osvaldo Cruz, quando secretário da Saúde, salvo engano meu, faz tempo que estudei, rs, implementou o costume que no começo era recebido muito mal pelos moradores.
ResponderExcluirValdez Cavalcanti
disse:
Eles tinham um nome engraçado, Mamãe deve lembrar, Vou ter com ela, mas, o mais comum era chma los de mata mosquitos,
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Angélçica Teresa Almstadter
DISSE:
Se não me engano esse costume veio por conta de Osvaldo Cruz, quando secretário da Saúde, salvo engano meu, faz tempo que estudei, rs, implementou o costume que no começo era recebido muito mal pelos moradores.
2 de outubro de 2011 16:07
Anônimo Valdez Cavalcanti disse...
Eles tinham um nome engracado, Mamae deve lembrar, Vou ter com ela, Mas, o mais comum era chma los de mata mosquitos,
ResponderExcluirJacques Cano-Israel
Teatrólogo e Escritor.
DISSE:
Lógico que me lembrei deste seu personagem no Recife quando li a sua crônica "O FISCAL DA HIGIENE".
Está bem contado, não tenho nada a acrescentar. Ótimo.
Eu te proponho mais um tema, o Pátio da Santa Cruz, a farmácia, a padaria e o mercado. Os personagens que andavam por lá, eu me lembro bem de seu Aristides o dono da farmácia que aplicava injeção nos judeus da vizinhança antes do inverno. Vale à pena desenvolver o tema já que estás desenterrando o passado do Recife judaico.
Valdez Cavalcanti
ResponderExcluirDISSE:
Primeira vez que acordei em João Pessoa, aos 9 anos, fiquei admirado com o barulho vindo das ruas; badalos, apitos etc. Em Guarabira, onde morava, os pregoeiros de serviços eram tadios e poucos.
Eng. Israel Coslovsky São Paulo Brasil
ResponderExcluirDISSE:
PAULO MUITO BOM, MESMO. TAMBEM TINHAMOS NO RIO ESSE “ HOMEM DA FEBRE AMARELA” COM AS MESMAS CARACTERISTICAS. NÃO MELEMBRO DO RELATORIO QUE DEIXAVA NAS CASAS, MAS SIM DE UMA ESPECIE DE RECIBO AMARELO, PEQUENO, QUE COLAVA NOS FUNDOS DA CASA, EM GERAL NO BANHEIRO DA EMPREGADA. A CADA VISITA COLAVA OUTRO RECIBO EM CIMA DO ANTERIOR... ACHO QUE O SISTEMA SANITARIO FUNCIONAVA, POIS NÃO TINHAMOS MAIS FEBRES TROPICAIS. OS FISCAIS SUMIRAM E APARECEU A DENGUE, QUE AQUI NO RIO ESTA INCONTROLAVEL. TODO O VERÃO TEMOS MILHARES DE CASOS, COM NUITAS MORTES. TENHO A CERTEZA SE AINDA TIVESSEMOS OS FISCAIS SANITARIOS ESSA ENDEMIA ESTARIA CONTROLADA.UM ABRAÇO ISRAEL
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Eng. Izaias Rorenblatt Recife
ResponderExcluirDISSE:
O único problema hoje (pq para baratas e formigas a ação é feita por dedetização caseira) é o mosquito da dengue que se reproduz depois das chuvas, e em qq lugar: pneus, vasos, tanques sem cobertura, garrafas, piscinas sujas, calhas entupidas, e por ai vai. Mas este ano não tem aparecido muito. Tem as fumaceiras nos bairros mais pobres e equipes de fiscais que periodicamente visitam as casas. Nunca ouvi falar de febre amarela no Recife, nem malária, isso é coisa mais da Amazônia.
Curioso, precisou de um judeu, Albert Sabin, casado que foi no fim de vida com uma brasileira, para lançar desde os anos 80, no Brasil os programas regulares e anuais de vacinação: varíola, catapora, sarampo, caxumbas, tétano, gripe, pólio, etc., para o país sair das listas de países com problemas nessa área. Nunca ouvi falar de epidemias nessas áreas. Às vezes existem problemas pontuais que são prontamente resolvidos.
Quanto a dengue, continua um problema, os mosquitos são terríveis mesmo. E só quem já passou por uma dengue hemorrágica sabe o problema que é.
Paulo para Izaias
ResponderExcluirEntão toda esta estória era só para "inglês ver"?
O Recife naquele tempo era um verdadeiro pântano ligando as diversas ilhas por inúmeras pontes, chuvas tropicais, enchentes permanentes e todo esta sistema dos fiscais da higiene só existiam nas "historias da carochinha"?
O que tem hoje, não me importa muito, eu estou relatando o que foi no passado e este passado foi assim como descrevo e ainda pior.
Lembre-se eu não sou jornalista que acompanha e escreve o que acontece no presente, para tal tem profissionais para dar e vender.
Paulo
Eng. Izaias Rosenblett Recife
ResponderExcluirDISSE:
Não era historia pra inglês ver de forma alguma.
As muriçocas sempre foram uma praga do Recife.
Só que agora ao invés dos alagados, tem ruas asfaltadas e prédios. Mas os mosquitos da dengue continuam firmes.
Mas malaria e febre amarela eu desconheço por aqui.
Dr. M. Rosenblatt Hadera-Israel
ResponderExcluirDISSE:
O artigo esta’ ótimo. Você estava em duvida???
Sera’ que Mark Twain ou Edgar Allan Poe ou Amos Oz perguntam a todos se gostaram ou não do que escreveram?
Você e’ um escritor de crônicas excelente. Não precisa ficar perguntando a todos, o que acharam de cada crônica.
Ainda não vi’ crônica nenhuma sua que não valesse a pena ser lida e não causasse ótimas lembranças e/ou novos conhecimentos sobre o passado.
Fique calmo.
Agora, premio Nobel de literatura, isso eu acho que vai demorar um pouco, ne’?
Dr. Meraldo Zisman Recife
ResponderExcluirDISSE:
PAULO,
PARABÉNS PELA CRÔNICA
MERALDO