JANEIRO DE 2012
O comprador de objetos de ouro e prata quebrada.

Rabisco do autor do texto
Os pregões que me lembro do Recife "matuto"
Paulo Lisker, de Israel
Janeiro, 03-01-2012
Nas primeiras décadas do século XX as coisas no Recife, eram um bocado diferente e mais inocente na maneira de ser.
Quando menino, no meu pequeno mundo, o Recife naquela época me parecia ser uma sociedade mais solidária, educada ao se expressar e de se relacionar com os demais. Quem sabe era mesmo!
Toda e qualquer profissão era valorizada por todos, respeitada e não importava quem a professava.
Fosse o varredor da rua, o carvoeiro, o verdureiro, o "pastor" de peruas, o da igreja Evangélica, ou o funcionário do cartório púbico.
Digo por que tinha um desses cartórios (Cartório da Boa Vista) na Rua Gervásio Pires.
Estava instalado num casarão no lado da calçada onde estacionavam os carros de aluguel (assim chamavam os táxis naquela época), bem perto do Hotel Central na Manuel Borba com a Rua Gervásio Pires.
Acho que o meu atestado de nascimento foi registrado lá.
Havia respeito mútuo entre todos.
Naquele tempo, eu não me lembro desse negócio de lutas de classes e segregação de grupos humanos.
Isso apareceu muito mais tarde quando alguns "intelectuais de salão" e a classe operária acordaram do sonho "deitado eternamente em berço esplendido", como diz o nosso Hino Nacional e despertaram de supetão.
Quando muito, a plebe ia escutar o discurso de Prestes ou de Juarez Távora e depois tomavam uma "caninha" e iam dormir, conquanto os "intelectuais de salão" continuavam a discutir política entre um e outro cálice de conhaque francês.
Sem dúvidas existiam ricos e pobres (nem os ricos eram magnatas nem os pobres viviam na miséria). Conviviam, com a "ajuda de Deus" e a vida caminhava de alguma forma para o bem geral da nação.
Talvez fosse a maneira inocente de um menino ver as coisas.
Sem querer ser romântico, parece-me que a qualidade de vida naquela época era melhor que hoje. Sei lá!
O respeito mútuo estava patente em cada passo do cotidiano e era praxe ouvir as expressões: "Bom dia meu senhor, com muito gosto, está às ordens, seu criado, como vai vosmecê, sua senhoria, sinhazinha, recomendações a senhora, cuidado com a chuva pra não se molhar e pegar um constipado", e daí pra frente. Toda gente falava assim, pobres e ricos de todas as raças e todas as cores. Bonito pra chuchu.
O espetáculo de gente vendendo, gente comprando, barganhando o preço da mercadoria, meninada correndo nas calçadas atrás do vendedor de picolé, do amendoim ou do cavaquinho era tão comum na Rua Gervásio Pires no Bairro da Boa Vista, que a gente nem dava mais fé, era coisa corriqueira.
Os moleques corriam só por correr atrás dos vendedores ambulantes, muitas vezes nem era pra comprar nada, era mais para ver e ouvir os instrumentos rústicos que estes ambulantes usavam para anunciar a sua chegada.
A coisa mudou quando meteram na nossa rua os trilhos de bondes, aí sim que a preocupação com os moleques foi ao ápice.
Eles aprenderam a correr e "amorcegar" estas "maquinas elétricas", se agarravam onde podiam, nas paredes, nos estribos, feito morcegos. Daí provê o verbo "amorcegar". Desencilhavam-se do condutor que quando os pegava dava-lhes "cascudos" fortes na cabeça e por final saltavam do bonde em movimento, sem cair e se ferir. Eram verdadeiros acrobatas nesta molecagem (mau costume).
Isto sim preocupava aos mais velhos que viviam reclamando deste novo perigo e xingando o que nos brindou o "progresso com esse transporte elétrico".
Ai meu Deus, como era bom o tempo que os burros puxavam o bonde. Diziam os mais velhos e suspiravam.
Felizmente essa "brincadeira" passou com a idade.
Com o tempo acabaram também com os bondes nesta rua.
Imaginem quanto tempo e trabalho não deu para colocar os trilhos e depois de uns anos também para retirá-los.
Foi um legado dos métodos de trabalho dos colonialistas portugueses. Todo plano era de curta duração. Hoje bota, amanhã tira e o céu não vem abaixo.
O céu não, porem a rua ficou meses toda esburacada, no escuro e de difícil acesso.
Mas tudo passa na vida e ninguém saiu a fazer passeata de protesto, gente pacata e natureza de portuga no Recife daquele tempo.
Agora voltemos a "vaca fria".
Em volta da carrocinha do amolador de facas e tesouras ou do funileiro que mais parecia um mágico usando seu acetileno, as fagulhas de todas as cores voavam ao remendar os furos nos fundos das panelas e chaleiras de alumínio.
Em volta deles estava sempre um grupo de empregadas domesticas cada qual com sua panela, reclamando que tinha chegado primeiro e exigia o atendimento já.
Tudo isso fazia parte do grande espetáculo deste mercado ambulante na nossa rua, no nosso bairro e quem sabe em todo grande Recife nas primeiras décadas do século passado.
Em tempo seria de bom proveito esclarecer que nem todos os ambulantes faziam parada na nossa rua.
Tinha uns que passavam de vez em quando e outros a caminho para outros lugares mais atrativos para suas vendas ou compras.
Compras?
Quem comprava? Tinha ambulante que também comprava?
Sim, tinha!
Até carroça puxada a cavalo era comum ver na rua e quem não tinha para sustentar um burro ou cavalo, puxava ele mesmo a carroça.
E que compravam?
Compravam garrafas vazias, lataria, papel e papelão, ferro velho e até moveis usados, verdade seja dita, alguns deles "catavam" ou recebiam este material de graça e ainda faziam o favor de desocupar os oitões e lugares cheios de entulhos das residências coloniais e ainda recebiam uns trocados pelo serviço. Para isto, estavam as carroças com ou sem tração animal.
Então compradores em serio havia mesmo?
Claro que havia. Um deles que me lembro e até muito conhecido na colônia judaica e nas ruas da cidade, era o senhor Marcus Roizman que comprava antiguidades e objetos de valor.
O COMPRADOR DE OBJETOS DE OURO E PRATA
O seu pregão era:
-"PRATA, PRATA E OURO! COMPRO OURO QUEBRADO. PRATA E OURO.... ANTIGUIDADES.... PAGO NA VISTA, DINHEIRINHO NA MÃO. PRATA, OURO QUEBRADO, OURO, PRATA QUEBRADO, COMPRO E DOU PREÇO BOM".
Assim ia caminhando com saco nas costas às vezes cheio de taças prateadas, crucifixos doirados, candelabros de prata, estatuetas de marfim, enfim tudo que tivesse algum valor comercial e deixava de ter valor para o dono de tais peças. Jóias, relógios, correntes partidas de ouro, candelabros de prata da judaica israelita, etc.
Levava numa sacola pendurada no ombro e a cuidava como seus próprios olhos, ali estava o dinheiro para pagar e as peças finas quebradas de metal precioso.
Sempre caminhava na calçada que fazia sombra só atravessava a rua quando alguém chamava para lhe vender algo de valor.
No Recife sempre existiu a calçada do sol e a da sombra, nesta ultima a gente caminhava, claro também os ambulantes com seus balaios cheios e pesados de mercadorias.
A calçada que fazia sol estava vazia?
Absolutamente não.
Nela caminhavam uns poucos estrangeiros ou turistas que se arriscavam para conhecer uma cidade num país subdesenvolvido na America Latina. Eles ainda não conheciam o que significava uma insolação nos trópicos e seus efeitos nefastos que poderia até acabar com o seu programa turístico.
Os prestamistas judeus uma das primeiras coisas que aprenderam ainda antes de saber falar duas ou três palavras em português foi caminhar sempre na calçada da sombra como lhes ensinaram seus fregueses nos subúrbios.
Aquele que teimou e andava na calçada do sol mesmo depois da alerta que a coisa era perigosa, queimou o pescoço de tal forma que nunca mais deixou de ser tremendamente vermelho e seu apelido "Galo de Raça" pegou dentro da comunidade israelita e fora dela. Galo de Raça era mais conhecido pelo apelido que o seu próprio nome.
Aqui e ali abriam o postigo das pesadas portas de madeira de lei maciça dos casarões e chamavam o ambulante comprador de coisas valiosas quebradas ou inteiras, dependendo do caso.
Se o morador necessitava de dinheiro logo, logo, para alguma compra inesperada ou pagar o aluguel atrasado da casa, tinha no senhor Roizman um comprador decente para este fim, sem se deslocar de sua moradia.
Muitos se lembram do Senhor Roizman, judeu franzino, comprador honesto de peças quebradas de ouro, prata e outros objetos de valor que durante anos caminhava anunciando a sua presença com o pregão por demais já conhecido no Bairro da Boa Vista, no Recife.
Eu pessoalmente estudei com seu filho Moisés no colégio Osvaldo Cruz e jogávamos "peladas" ("futibol de quintal") no palacete da família de Zezo Schor na Avenida Manoel Borba.
Moisés sempre foi um estudante de primeira e inteligente "futebolista de peladas", que "caceteava" o adversário com arte que nem o melhor dos juízes percebia. Não herdou a profissão do pai, ele se formou em engenharia e era especialista em Pontes e Estradas no Recife e depois em São Paulo.
Um gênio nos estudos. Faleceu ainda jovem, uma pena!
Então tinha ambulante que comprava, porem a maioria deles vendia, ambos satisfaziam todo o necessário das donas de casa, creiam-me sem cair em nada ao se comparar com os poderosos supermercados de hoje.
A época era outra e as necessidades de acordo.
Ai Recife, Recife, só te vendo!
Todos os direitos autorais reservados.
Cuidem com os créditos.
ResponderExcluirSemira Adler, Recife
DISSE:
Continuo lhe agradecendo, caro Paulo!
Mandei a sua crônica para muitos familiares e amigos.
Eu escrevi alguns trabalhos, sobre a presença judaica em Pernambuco, que estão on-line e, caso você se interesse, pode acessá-los.
Entre na página da Fundação Joaquim Nabuco:
www.fundaj.gov.br
Muito obrigada por se dar ao trabalho de escrever uma crônica, lembrando meu avô e tio tão amados.
Bem que eles mereceram!
Eu fiquei deveras sensibilizada ao lê-la.
Abração,
Semira
ResponderExcluirClaudio Azoubel- Salvador, Bahia.
DOS PREGOES DO RECIFE-compro prata e ouro quebrado
DISSE:
Paulo:
Mais uma excelente crônica que você envia. Com certeza será devidamente "saboreada" por quem viveu o Recife da época.
Tambem fui aluno do Colegio Oswaldo Cruz. Me lembro com muitas saudades. Dr. Aluizio, Terezinha, que por ser muito gorda, todos a chamavam de Terezãozinha, de Isabel, A bela Bel, tambem filha do Dr. Aluizio, do bedel Arruda...O Oswaldo Cruz tinha uma bela equipe de professores, muitos deles ensinavam tambem no Ginasio Pernambucano e era o colegio preferido pela comunidade judaica. Uma sugestão seria uma crônica sobre este estabelecimento.
Claudio
ResponderExcluirEng. IZAÍAS Rosenblatt Recife.
DISSE:
Paulo,
1. O seu cartório (que foi o mesmo de quase toda a colônia) foi mudado para o prédio da esquina da Gervásio Pires com Conceição. No antigo local parece que tem uma lavanderia a Seco hoje, acho.
2. O problema das cidades hoje é que tem gente demais, daí que não se conhecem mais as pessoas e não há mais aquela civilidade de antigamente.
3. Ainda há amoladores de facas, mas são cada vez mais raros, pq hoje todos tem amoladores elétricos ou manuais em casa e ficou mais barato comprar facas e tesouras novas em todo lugar.
4. As cidades estão infestadas de compradores de ouro com plaquinhas anunciando e que ficam parados nos principais corredores de gente.
5. Não conheci o Sr. Roizman, mas tive um colega chamado Karl Roizman, deve ter uns cinquenta e poucos anos, não sei se é filho ou neto. É medico.
abcs
Izaias
7 de janeiro de 2012 06:58 Excluir
Blogger Passiflora disse...
Claudio Azoubel- Salvador, Bahia.
Date: 2012/1/7
DOS PREGOES DO RECIFE-compro prata e ouro quebrado
DISSE:
Paulo:
Mais uma excelente crônica que você envia. Com certeza será devidamente "saboreada" por quem viveu o Recife da época.
Tambem fui aluno do Colegio Oswaldo Cruz. Me lembro com muitas saudades. Dr. Aluizio, Terezinha, que por ser muito gorda, todos a chamavam de Terezãozinha, de Isabel, A bela Bel, tambem filha do Dr. Aluizio, do bedel Arruda...O Oswaldo Cruz tinha uma bela equipe de professores, muitos deles ensinavam tambem no Ginasio Pernambucano e era o colegio preferido pela comunidade judaica. Uma sugestão seria uma crônica sobre este estabelecimento.
Claudio
7 de janeiro de 2012 18:26 Excluir
Blogger Passiflora disse...
IZAÍAS, Recife.
DISSE:
Paulo,
1. O seu cartório (que foi o mesmo de quase toda a colônia) foi mudado para o prédio da esquina da Gervásio Pires com Conceição. No antigo local parece que tem uma lavanderia 5 a Seco hoje, acho.
2. O problema das cidades hoje é que tem gente demais, daí que não se conhecem mais as pessoas e não ha mais aquela civilidade de antigamente.
3. Ainda ha amoladores de facas, mas são cada vez mais raros, pq hoje todos tem amoladores elétricos ou manuais em casa e ficou mais barato comprar facas e tesouras novas em todo lugar.
4. As cidades estão infestadas de compradores de ouro com plaquinhas anunciando e que ficam parados nos principais corredores de gente.
5. Não conheci o Sr. Roizman, mas tive um colega chamado Karl Roizman, deve ter uns cinquenta e poucos anos, não sei se é filho ou neto. É medico.
abcs
Izaias
ResponderExcluirIsrael Coslovsky-São Paulo
DISSE:
DOS PREGOES DO RECIFE-
"compro prata e ouro quebrado"
PAULO
COMO SEMPRE MUITO BOM E INTERESSANTE, PARABENS !!!
NECO
Eng. I. Rosenblatt Recife
ResponderExcluirDISSE:
Ficou tudo no passado. Gente comprando ouro e jóias nas ruas sempre tem. O problema é que o ouro nunca deu saltos em termos de investimento e os riscos são grandes. Amoladores de facas agora são raríssimos, talvez haja ainda nos subúrbios. Na Boa Vista não vejo mais, e estão querendo proibir (por iniciativa da sociedade protetora dos animais) que carroça a tração animal nas ruas da cidade, o que vai ser um problema grande para muita gente que vive disso ainda.
Dr. M. Rosenblatt Hadera-Israel
ResponderExcluirDISSE:
Bonde na Gervasio Pires?! Primeira vez que fiquei sabendo.
Gracas a você fico sabendo de muita coisa que não sabia. Esse Roizman, não o conheci.
O que será que ele fazia com os objetos de prata e ouro?
Eng. Agr. Paulo Lisker
ResponderExcluirResponde:
Estimado, este é um dos objetivos, fazer a gente conhecer o nosso passado, do tempo dos nossos pais e avós. Não me interessa a Dona Branca, nem o rabino Abuab, nem a sinagoga Zur Israel (que para mim era um albergue, e um dia se quiseres tenho a minha explicação a mais lógica do mundo). Isto em nada contribuiu para a formação do nosso ishuv (comunidade) no Recife. Estes desapareceram como a poeira, os últimos foram embora e os "historiadores" do Recife ainda afirmam que 17 "cristãos novos" formaram a maior comunidade judaica fora de Israel, em Nova York. Mas a sinagoga deu muito dinheiro, coisa que não existe para esta época que eu escrevo estas "croniquetas infantiloides" e que ninguém antes escreveu nem uma palavra, ninguém se interessa por esta época, querem esquecer e tornaram a nossa gente numa comunidade de "modernos cristãos novos", nem uma verba para o sustento do cemitério no BARRO existe e o mato está tomando conta do campo e das sepulturas. Que vergonha, então não é nenhuma surpresa as suas pergunta sobre os bondes ou o que fazia o Roizman com os objetos de ouro e prata quebrada. Com certeza vendia a Maurício Ribemboim que fabricava medalhas com estampas de santos cristãos.
Infelizmente a "moderna" está assim.
Me dizia um goi quando era estudante:"Hoje em toda família judaica tem um Preto, um Padre e uma Puta", muito possivel que seja a pura verdade. E não se aborreça, assim é a vida.
Abraço.
Paulo
Obrigado pelo seus sempre interessantes comentários.
Dr. Gilberto Krutman São Paulo Brasil
ResponderExcluirDISSE:
Paulo
Dentro do seu jeitão de escrever, vc nos transfere para aquela época com muita realidade.
Não conhecia a profissão do pai do nosso colega Moisés Roizman e nem todas as estórias dos compradores e vendedores ambulantes da Boa Vista.
Parabéns
Colega de infância (Colégio Israelita de Pernambuco) e de juventude (Colégio Oswaldo Cruz)
Gilberto
Eng. I Coslovsky São Paulo Brasil
ResponderExcluirDISSE:
Paulo
Muito boa esta versão !
israel