domingo, 11 de agosto de 2013

A PRAÇA, SEU COTIDIANO E OS PERSONAGENS QUE NELA ATUAVAM.


A praça*, seu cotidiano e os personagens que nela atuavam


Fotografia de Leonardo Dantas Silva

A PRAÇA*, SEU COTIDIANO E OS PERSONAGENS QUE NELA ATUAVAM

De Paulo Lisker, de Israel

Corigido em 03-11-2012
MORAL DA ESTORIA:

"Você pode sair desta praça, porém a praça nunca sairá de você".

Sou testemunha deste fato.
Mesmo 60 anos depois de ter perambulado pela ultima vez na "nossa pracinha" (permitam-me chama-la assim), a Praça Maciel Pinheiro, no umbigo da cidade do Recife é o tema interminável destas minhas múltiplas estórias que fundamentam estas minhas "croniquetas infantiloides".
Aquela estatua da índia ou cabocla meio nua, mirando o horizonte que se acabava logo ali na igreja da Matriz, a fonte jorrando água pelas bocas dos quatro leões, bicho que nunca existiu nas florestas brasileiras e muito menos na Mata Atlântica nordestina.
Contudo isso ninguém critica o fato e aceitamos pela beleza arquitetônica do complexo como um todo.
Depois que a presença desta fonte se incrustou no cerebelo de uma criança, estatua nenhuma no mundo todo, ganha dela, em nenhum aspecto.
Eu quando menino acreditava seriamente que a fonte com a estatua era a mais bonita do mundo.
O mesmo com o tamanho dela, para mim, esta praça era maior que a do Vaticano e só perdia para o Parque 13 de Maio que na realidade não é praça e sim um "simples" parque. Então não tem graça comparar as duas coisas, como dizia meu amigo e rival nos "jogos de botão" Mario Jayme Zimilis da Rua José de Alencar: É como comparar no futebol, um goleiro com um ponta esquerda, vê que não dá, não é?
Praça por praça, a nossa era a maior do mundo e não tinha sentido compara-la com qualquer outra e nem me fale do Parque 13 de Maio e a do Vaticano, junto dela é uma mixuruca, não tem termos de comparação.
Lembro-me o tempão que levava cruza-la em diagonal, da Rua da Conceição até a Rua da Matriz.
A primeira, antes de desembocar na praça, passava bem rente a casa de Nadinho Katz e das casas funerárias, Agra e Baptista, com seus caixões de defunto em exposição na ante sala e nas vitrinas da loja, incentivando as vendas. Aqui entre nós, sempre que eu passava por ali, me dava medo danado e um calafrio na barriga.
Esta pracinha era minha conhecida ainda dos tempos da infância. Para cruzá-la, eu andava e andava um tempão, até chegar a Rua da Matriz.
Finalmente quando já avistava de longe a igreja, me considerava salvo, pois lá sempre nas suas grandes portas estavam os padres distribuindo "santinhos" para a meninada,
Imaginação fértil de menino besta, sempre vê as coisas muito maiores do que elas são na realidade. Quem sabe? Talvez seja devido meu próprio tamanho, assim também o do seu cérebro. Bem mas isto ficará para os psico-terapeuta dar as devidas explicações no dia que o fenômeno interessar a alguém.
A meu ver, sempre emergirão das "gavetas emperradas" do cérebro, estas que estavam por muito tempo totalmente esquecidas. Novas recordações ressurgirão e logo ganharão vida (em carne e ossos) como se as coisas tivessem acontecido hoje e lá estarei eu de calças curtas e alpercatas (sandálias em nordestino), presenciando os fatos, feito no cinema, ai que lindo.
Parece que na velhice, todas as "gavetas emperradas" recebem a "Lei Áurea" e se libertam para sempre. Que bom!

Na esquina com a Rua da Matriz, vendiam loteria de todos os Estados do Brasil e o "bicheiro" registrava as apostas no jogo do bicho do dia.
Botavam na dezena, centena, milhar e os sonhos de "enricar" do dia para noite, sumia como a brisa às vezes fedorenta que soprava do Capibaribe em vazante, coitado, quando ele era mais lama que água.
O rio Capibaribe é considerado geograficamente como um "rio morto", dominado pelas altas e baixas das marés.
Nesta situação do rio, os "caçadores de siris e ganhamuns" faziam o dia (ganhavam uns cobres) quando saiam a vender o seu produto envolto na lama das margens do rio (conservante natural de frescura do pescado) e amarrados numa tira de ráfia.    
Um "premio Nobel" perdido por não haver esta modalidade no concurso, conservação natural de pescado sem uso de energia elétrica e que funcionava uma beleza.
Eu digo que estes nórdicos, só têm prêmios Nobel para as coisas que estes galegos eles mesmo inventam. Para invenção de "Jeca Tatu ou do Zé do Siri", eles não têm categoria para dar prêmios. Racistas safados!
Fato interessante que os judeus por imposição religiosa estão proibidos de comer esses "shratzim" (frutos do mar invertebrados, ostras ou peixe sem escamas). Estes "bichos" são considerados "Tareif", terminantemente proibidos para alimentação humana dos judeus no mundo todo.
Por outro lado, assimilaram rapidamente o costume local de "jogar no bicho", parece que também este jogo de loteria, não era bem visto pelos judeus ortodoxos, aqueles que cumprem os mandamentos religiosos ao pé da letra.
Mas a influencia da nossa pracinha em muito contribuiu para "afrouxar" todos os "mandamentos divinos".
O judeu assimilado na sociedade brasileira já não cuida da "cashrut", come caranguejo, siri e camarão, peixe sem escamas, carne de abate não casher, só não come vidro nem bebe querosene por que não é gostoso e pode fazer mal a saúde.
A mesma coisa passou com o "jogo do bicho", não demorou muito e ele virou um costume corriqueiro entre os judeus do Recife.
Essa praça é uma coisa, viu?
Sempre eu ouvia na minha casa, minha mãe ordenando a uma das empregadas:
-"Corre Júlia, deixa de espanar a poeira das janelas, toma aqui dois mil réis e joga na centena de borboleta, e mil réis na dezena de veado, pois esta noite sonhei com estes bichos".
Na minha casa estes sonhos quase sempre resultavam exitosos, não se ganhava muito, mas era uma satisfação voltar do "bicheiro cambista" com um dinheirinho na mão! 
Todo mundo sonhava, o Recife inteiro e até as empregadas pediam a patroa um dinheirinho adiantado para jogar naquele "bicho" que sonharam na noite anterior.
Ai meu Deus, como Freud e sua teoria dos sonhos, tinha razão!  O Recife, os sonhos da população era o exemplo vivo das teorias deste estudioso.

Na esquina da praça com a Rua Velha, estavam sempre reunido um grupo de "carregadores" a espera de biscates.
Este grupo prestava serviços aos diversos lojistas, por uns míseros cruzados (os Patacões), carregando na cabeça os moveis e outros utensílios pesadíssimos (tudo madeira de lei com o seu cheirinho característico), comprados nas lojas da praça.
Esta mercadoria eles iam entregar, sempre caminhando a pé, descalços e cantando (Pena que não lembro as cantigas, um tesouro pedido). Se disser que uma delas era "Ai Amélia que era uma mulher de verdade" ou "Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar...", acho que não estaria imaginando coisas pra "boi dormir", acho!

Os cheiros dessa praça minha gente, quem pode esquecer?
Cheiros que emanavam ao meio dia da padaria, com seu pão francês e o bolachão sempre quentinhos e frescos.
Da "carne verde" do açougue na esquina da Rua da Conceição do português Manolo do Porto, ele sempre tinha carne fresca de gado bovino e ovino (Não casher).
Ele era amigado com uma negra que conheceu em Angola, quando por lá serviu no exercito português, na época colonial.
Na nossa casa era uma festa quando compravam no açougue do portuga, um quarto de carneiro para o almoço do shabat (sábado). 
Toda vizinhança sabia que na casa da judia dona Anna, a loira (minha mãe), estavam preparando uma comida de carne de carneiro.
Pelos postigos sempre abertos por causa do calor sufocante em determinados meses do ano, todos sentiam o cheiro característico desta carne com os temperos crioulos que emanava da nossa cozinha, baixo a batuta da nossa cozinheira Maria Severina (apelidada de Biu).
Foi como ela preparava a comida que me tornei fã da comida genuína brasileira.
O dono do açougue gostava muito de gatos e no fim do dia depois de fechar o "negocio", saia com um bocado de restos dos cortes da carne e alimentava aqueles que perambulavam  ao redor do açougue e mesmo na praça aonde vinham beber água da fonte.
Senhor Manolo dizia, para quem queria ouvir:
- No Portugal, o gato é a arma, mas eficaz contra ratazanas e baratas.
No Brasil os gatos brasilienses não gostam de caçar, são "mimados" ou medrosos ou as duas coisas juntas.
Assim sendo dizia ele, no sotaque bem português de Funchal, capital da ilha da Madeira:
-Temos que ter pena dos gatos famintos, devemos alimentá-los e dar para beber a estes "animalitos" tão perseguidos pelos cães "virá lata", que rodam por aí como uns loucos, para abocanhar estes bichinhos inocentes.
Viviam no Recife daquele tempo, dois "mata galinhas" e que também praticavam a circuncisão dos recém nascidos. Eram eles, os veneráveis senhores Zissie Girol e o senhor Gedalia Raat, inimigos "ferrados" um do outro, pois estavam desentendidos em tudo sobre como praticar esta atividade seguindo exatamente como é mandado pelas santas escrituras.
Claro que logo a comunidade israelita também se dividiu, uma parte usava os serviços do Sr. Zissie e outra do Sr. Gedalia. Essa divergência levou anos. Não sei se no fim da vida se apaziguaram, ou levaram a discórdia para o reino dos céus.
Durante um bom tempo, não era permitido por lei, este tipo de abate (casher), e noutras épocas os "mata galinhas e gado" judeus, não estavam em condições de fazê-lo por questão de saúde e idade avançada.

Diziam as más línguas que este povo é assim: "Onde tem dois judeus, existem três opiniões". Neste caso dos "mata galinhas", este axioma estava comprovado, mesmo que nenhum axioma necessita de comprovação alguma. Axioma é axioma e judeu é judeu. 
Quem não sentia o cheiro da grama no dia que foi aparada (cortada), ou do monte de esterco curtido que traziam das vacarias de Água Fria e de Beberibe, para adubar o gramado e as plantas da pracinha. (assim nós a chamávamos).
O senhor Juvenal, o jardineiro, quando alguém reclama do cheiro do esterco fermentado e já pronto para ser espalhado no gramado e no jardim da praça, dizia: "Este cheiro, é o cheiro da vida! A vida é uma merda, então por que estás reclamando? Merda por merda, esta do esterco é melhor, pois trazem vida as plantas do jardim". Outro "filosofo descalço", que vivia entre nós na pracinha.
O secular pé de Jambo do Pará que quando carregava de frutas maduras, a molecada atirava pedras para colher algumas bem vermelhinhas e doces como mel de Uruçu.
Quantas cabeças lascadas não foram parar no "Pronto Socorro" para receber pontos e o tratamento necessário. Depois ainda recebiam umas boas palmadas do pai em casa.
- Moleque da rua, não tens o que fazer? Ficarás de castigo por duas semanas não irás ver o seriado de Flash Gordon, no Politeama!Para que aprendas a ser gente, moleque da rua. Estás imundo, vai tomar banho e cuida pra não molhar os pontos na cabeça, ta ouvindo menino treloso?
Estes meninos estão se tornado totalmente "abrasileirados", não respeitam os adultos, vivem xingando, usando "palavras feias" a três por quatro, coisa de mal educado, atiram pedras para tirar frutas dos pés, usam bodoques pra matar passarinhos e só tem na cabeça o tal de "futibó", não vão mais a sinagoga rezar, Deus do céu (gotinhu in himel, em iídiche), dessa geração não ficará um judeu, nem pra remédio!
Vai menino, vai tomar banho, esfrega bem o corpo com sabão, estás imundo, já, já entra o sábado e é hora de acender as velas do shabat (sábado) e ir para o "shil" (sinagoga), para que fique algo de "iídishkait" (do judaísmo), vai menino te apressa!
Quem pode esquecer a mitológica "Água Soda" do senhor Vasserman, que tinha no balcão garrafas com néctares de diversas cores para misturar com a água soda e dar o gosto à bebida.
 Tinha os gostos de morango, limão, groselha, tangerina etc.
A água gasificada (cheia de bolinhas subindo do fundo do copo até sair pelas nossas narinas, fazendo aquela "cosquinha" gostosa), era servida "tinindo" (sempre bem gelada), ótima para o caloroso Recife, do verão eterno.
O estacionamento dos carros de aluguel (assim denominavam o táxi no Recife), quem passava por perto sempre sentia o cheiro da gasolina, parece que naquele tempo os "tampões" dos tanques de combustível não eram herméticos como os de hoje.
A Agência dos Correios e Telégrafos ali presente era o contacto escrito do Recife, para o mundo. Muito antes de "Pernambuco falando para o mundo", os correios da pracinha era "Pernambuco escrevendo para o mundo".
A Mercearia de Secos e Molhados, do português Amaro dos Santos, que entre outras coisas, vendia o famoso bacalhau português que naquele tempo era barato e nunca faltou no mercado.
Outras lojas de destaque naquele tempo era a casa de moveis do Sr. Fainbaum, um comerciante de uma honestidade ímpar. Diziam que vinha gente de posse do interior do Estado e até de Alagoas comprar moveis nesta loja.
Contam que ele tinha uma formula de um repelente para adicionar no verniz e que evitava a instalação do famigerado cupim que depois do ataque, os moveis viravam pó.
No Recife este inseto era uma praga danada em quase toda casa.
A garantia contra o cupim e os preços do Sr.Fainbaum, eram conhecidos mesmo fora de Pernambuco.
Também tinha a loja de miudezas do venerável Avrum Shie, muito respeitado na comunidade judaica e apaziguador nas discórdias que surgiam de vez em quando entre os comerciantes da praça.
Na realidade eu nunca entendi como com esta loja de miudezas podia sustentar a família e ademais sempre contribuir na ajuda aos novos imigrantes e outras ações comunitárias, na sinagoga e na conservação do cemitério judeu. (parece que era no bairro do Barro, se minha memória não falha).
A farmácia encostada à padaria, onde trabalhava o muito bem quisto enfermeiro, senhor Odon, que recomendava tudo que era remédio para as doenças que afligiam a população recifense. Era ele quem ia até a casa do paciente, não importa se era de dia ou de noite, com sol ou chuva, aplicar a injeção necessária para algum mal que afligia o dito cujo.
Em geral quase ninguém fazia visita ao medico diplomado e se conformavam com o conselho do "farmacêutico".
Interessante que ninguém reclamava quando o conselho não resultava, tentavam outro ou partiam para os clássicos chazinhos de ervas de fundo do quintal.
Outra coisa que hoje me intriga era que ninguém  naquele tempo dava fé que os remédios deveriam ter um prazo de validade final, antes de caducar.
Possivelmente nas farmácias da época, inclui esta da pracinha, estavam expostos à venda remédios nas prateleiras do tempo de Dão Pedro II ou do anterior Monarca.
Ninguém morria por tomar remédio com data sobre passada e sim por uma serie de outras coisas ligadas a superstições, mais que tudo.
Com tudo isso era muito bom que existia uma farmácia mesmo com estas drogas caducadas e os "vendedores de remédios", para  qualquer eventualidade.
Os prestamistas judeus que ocupavam os bancos da praça antes de voltar para a casa com o dinheiro da cobrança do dia, não reclamavam do cotidiano, quem sabe não lhes restava tempo ocioso para tal.
Minto se não contar que sim reclamavam de algo que lhes enchia a paciência. O repicar dos sinos da Matriz localizada bem juntinho da praça, na entrada da Rua da Imperatriz na esquina com a Rua Velha.
Este repicar na igreja da Matriz anunciava as horas do dia e todo qualquer evento religioso a ser realizado no local.
Toda hora certa era um repicar, meia hora já era outra "cantiga", diferente para missa, outra para enterro, casamento, primeira comunhão, o dia todo era um badalar dos sinos que não tinha fim.
Agora direi com muito cuidado para não ofender as partes envolvidas neste fenômeno de badalar quase que ininterruptamente.
Os judeus vindos do leste europeu, mas não só, não tinham muitos amores pela igreja católica ou qualquer outra corrente cristã. Diziam eles que o repicar dos sinos tantas vezes, lembrava o que na Europa lhes passou.
Quando lá repicavam os sinos sempre era anunciando um próximo "pogrom" e assim chamavam e incentivavam aos goim (população local cristã), para atacar a comunidade judaica, roubar seus bens e animais, espancar homens, velhos e até crianças e violentar mulheres.
Acarretava mortes, queima dos seus pertences e barracos. Era uma lembrança dolorosa, e este repicar dos sinos era só o que faltava agora também no Brasil.
Ouvia-se em iídiche o pessoal reclamando: Vus klinguen de galuhem? (Porque diabos, tanto badalam estes padres)? Vus haken zei in tshainik?(Parece uma banda de chaleiras). Ver iz guepeiguert? Der Pope in Roim?(Quem morreu? O Papa em Roma)?  A loch in kop, in dred arain mit zei. Me ken shoin nit zitsen shtil. Oi a drek! (Já não se pode sentar e descansar sem que te façam um oco na quenga, mas que merda).
Os sinos silenciavam, assim também as reclamações, até a próxima primeira comunhão ou a hora certa. Com qualquer coisa o ser humano se acostuma, mas o badalar era insuportável.
Esta praça nunca em hora alguma estava vazia. Sempre algum grupo encontrava nela e nos seus bancos, um lugar para namorar, descansar, conversar ou discutir o que  dava na veneta. De repente sem aviso prévio, vinha um novo badalar dos sinos:
-Bleem, bleem blem, tom, toin, toin, totoin, bleem, bleem blem.
–"Gotinhu, hot hungueheipt noch a mul, zolen zei brenen tiif in gueheinem" (Meu Deusinho começou tudo outra vez, que se queimem nas profundezas inferno. Pragas populares em iídiche).
Não sei se é verdade, estou "vendendo pelo preço que comprei", dizem que muitos judeus "abandonaram" o bairro da Boa Vista e se mudaram para o bairro da Madalena e da Torre e a causa principal foi o eterno badalar dos sinos nas igrejas localizadas em volta das áreas residenciais.
Como não existe um estudo mais acurado das verdadeiras razões deste êxodo, deixo o fato assim como me contaram.
As badaladas nas igrejas cristãs e a memória "de longo alcance" dos judeus foi uma das causas da fuga deles para os arrabaldes onde não tinha igrejas católicas, quando sim eram igrejas presbiterianas e Casas de Deus, que não usavam sinos.  A verdade disto ficará para pesquisas mais acuradas no futuro.
Meu pai me contava que até nos dias da revolução de 30, a praça não esvaziou, verdade que tinha muitos soldados e tiroteio, porem não atiravam para matar ninguém, atiravam, mormente nos fios elétricos dos bondes!
Ocuparam (invadiam na linguagem militar), os "pé de escada" e faziam competição entre eles, muita gozação para com aqueles soldados que atiravam e "cheiravam" (não acertavam).
Só numa situação a praça esvaziava, era quando caia um aguaceiro daqueles muito fortes e que era  comum naquela época, em que não se falava de  aquecimento global.
Aí levantava um "bafo" danado do chão super aquecido pela inclemência do sol tropical (vapor d' água com um cheiro todo especial).
Recifense, nunca gostou de se molhar com chuva para não se resfriar ou pegar uma pneumonia! Então "pernas para que te quero" (fugiam)  para se abrigar debaixo de qualquer teto ou pé de escada e lá já aproveitavam para urinar.
Não tinha "pé de escada" no Praça Maciel Pinheiro que não fedesse a mitorio. Era um cheiro arretado de ruim, quem tivesse que subir ou descer nas escadas de madeira destes sobrados, tinha que obrigatoriamente tapar bem as narinas para não desmaiar no caminho. Também este cheiro ficou incrustado nas minhas memórias do tempo de criança, assim como o da "creolina", usada para uma vez por mês lavar estas escadas de madeira, tentar eliminar o tal horrível fedor e evitar (sem muito êxito) os ataques dos cupins que encontravam na velha madeira das escadas um habitat extraordinário.
Praça com chuva não serve para o que ela se destina, ou melhor, não serve mesmo pra nada.
Somente se alegrava o mundo vegetal, a grama, as flores, as árvores e a própria fonte com a Índia e seus quatro leões que nesta oportunidade se banhavam e o monumento ficava alvinho de limpo. 
Também as plantas ficavam satisfeitas da vida, estavam o tempo todo aguardando as chuvas, pois não havia irrigação naquela época.
Às vezes o pobre Juvenal o jardineiro se "armava" com uma mangueira cheia de remendos com pedaços de pano (tubo de borracha já ressecada de tantos anos de uso) ou com um "regador" e valentemente saia a combater a estiagem e regava as plantas ou mesmo parte do gramado ressentido da falta de umidade por um longo período de tempo.
Nesta praça se reunia gente de línguas diferentes, religiões diferentes (católicos, judeus, crentes, protestantes), de coloração de tez, (brancos, mulatos e negros).
As empregadas passeavam com as crianças das patroas, às vezes até saia um namoro com algum estudante que 
habitava nas proximidades.
Entardecer na praça, logo vinha o "acendedor".
Onde poderíamos ver hoje o espetáculo do "acendedor" dos postes de iluminação a gás antes da noite tomar conta da praça. A meninada corria atrás dele, de poste em poste, para apreciar o fenômeno de "prender o lume"  em cada poste  da praça e nas ruas adjacentes. Um fenômeno para ir depois contar aos pais e as empregadas quando voltassem para casa.
Estudantes moravam nos quartos de aluguel dos velhos sobradões ao  redor da praça.
As famílias judias também lá habitavam e as suas lindas filhas eram cobiçadas por  parte dos estudantes universitários que frequentavam as universidades de Direito, Engenharia, Ciências Econômicas e Contabilidade, que ficavam nas cercanias.
Chegava à noite e o escuro se fazia presente sem muita transição. Assim é nos trópicos.
Aí começava uma outra "opera", na realidade era o "papel carbono" das horas de luz.
À noite e de madrugada nesta praça, acontecia muita coisa interessante para se contar, mas isto ficará para outra oportunidade, ou como nós dizemos: São outros quinhentos mil réis.

Fim desta croniqueta.
*PRAÇA: A Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista, Recife.
Todos os direitos autorais reservados.

3 comentários:

  1. Dr.Moshe Rosenblatt Israel
    DISSE:

    Paulo:
    Adorei tudo o que você escreveu sobre a Praça Maciel Pinheiro porque tudo foi também parte da minha infância, 10 anos apos a sua, ate’ mesmo o medo que você tinha das casas funerárias da Rua da Conceição. Eu também, como menino, tinha medo delas.
    Um resumo histórico dessa praça foi feito por Semira Adler Vainshenker e você pode encontrar (e acho que deveria acrescentar esse site no artigo), aqui:
    http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/ind
    Interessante que ate’ hoje, ninguém sabe quem esculpiu aquelas lindas esculturas da fonte da praça.
    Por outro lado, dizer que são as esculturas mais lindas do mundo e’ dizer que você nunca teve contato com a época da Renascença.
    Pra mim, a escultura mais bonita do mundo (e a mais significativa também, pela historia que ela conta com lições para o presente) e’ a estatua do Laocoonte (http://en.wikipedia.org/wiki/File:Laocoon_Pio-Clementino_Inv1059-1064-1067.jpg ).
    Só’ não entendo como você teve a “ousadia” de não dizer nada sobre a ruela onde vivi os meus seis primeiros anos de vida: a Travessa do Veras. Na esquina dela com a praça, viveu a Clarice Lispector!
    Agora, que negocio e’ esse de chamar Maria Jose de Biu. Biu e’ somente pra Severino. E Bia e’ pra Severina.
    Você me fez lembrar das injeções que tomei nas nádegas, do Seu Odon, o farmacêutico. Me lembro das seringas de vidro e as caixinhas de ferro onde se fervia as seringas e as agulhas. A palavra Disposable era totalmente desconhecida naquele tempo.
    O cemitério judeu e’ mesmo no Barro. Onde estão enterrados os seus pais?
    Os sinos que mais me incomodavam eram os da igreja da Santa Cruz – 500 metros em linha reta, da janela do meu quarto. Nos sábados à noite, eu voltava das boates bem tarde, mas no domingo as 06h00min da manha, meus ouvidos eram arrebentados pelas badaladas daqueles sinos.
    Como assim o Capibaribe depende das mares ???!!! Em Recife, todos sabem que se o Capibaribe e o Beberibe não despejassem suas águas no oceano Atlântico, esse oceano seria completamente seco...
    Não só’ fico admirado da sua memória, mas também pelo fato de que você se interessava por coisas que nem eu e nem nenhum outro menino se interessou. Por exemplo: eu nunca me interessei em saber de que vacaria vinha o esterco do gramado da praça. Você se interessava sobre coisas assim e eu não entendo por que.
    Você se esqueceu de contar (talvez não fosse do seu tempo) sobre as duas casinhas de madeira erguidas lá’ antes de São João, onde a molecada ia comprar fogos do tipo peido-de-velha e traque-de-massa. E tinha também umas bombinhas finas, tipo fósforo grande, que não me lembro o nome, apesar de serem muito usadas.
    Descobri que o fruto chamado de groselha, em hebraico e’ Damdamanit. Eu adorava groselha lá’ na praça. Às vezes aparecia um cara vendendo algodão doce também.
    O estacionamento dos táxis, no meu tempo, era na Rua do Hospício, em frente à igreja da Matriz. Eram aqueles carros americanos, pretos, enormes, chamados Manhattan.
    Um abraço.
    P.S. – você se esqueceu de botar a foto do mata-galinhas (shoichet).

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  2. Dr. Ismael Gouveia Recife
    DISSE:

    Paulo,
    Está ótima essa sua crônica. Muito próxima à realidade, muito bem escrita.
    PARABÉNS.
    ISMAEL

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    Professor Leonardo Dantas Recife
    DISSE:

    Caríssimo Paulo,

    Já que estamos a falar de "direitos autorais",
    peço atribuir a autoria da foto da fonte da praça que por mim lhe foi enviada.
    Peço não levar a mal mais esta brincadeira....
    Seu admirador,

    Leonardo

    *A foto em questão foi por mim obtida e as fotos da fonte da Praça Maciel Pinheiro foram publicadas no meu livro "Arruando pelo Recife" (2000).
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    Paulo Lisker para o Prof Dantas:

    Meu muito estimado Professor Dantas, saudações.
    Primeiro vosmecê tem toda razão.
    A foto anterior publicada na semana passado, exigi de Clóvis colocar, caso não tenhamos a fonte da foto deixar bem claro que a fonte não é nossa, e sim da Internet.
    Eu prezo respeitar os donos dos direitos autorais e já depois de receber sua resposta, se a foto é de sua autoria, que ele imediatamente faça a correção nas duas fotos, na atual crônica e no da semana passada.
    Entendo que as fotos foram obtidas por vosmecê. O meu mail para Clóvis, daqui a um minuto, estará no ar.
    Agradeço este seu aparte que por mim sempre será recebido com todo estimo e consideração.
    Um abraço e comente de vez em quando estas "croniquetas infantiloides" que escrevinho na velhice.
    Obrigado.
    Paulo.

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  3. Prof. Mario Baras , Ph.D.
    DISSE:

    Caro Paulo
    Eu também recebo suas crônicas com muita satisfação e prazer. Por favor, continue. A foto que Simone enviou tem um grande valor para mim. Meus pais José e Helena Baras aparecem na primeira fila da audiência na ponta esquerda. Junto a eles estamos eu e meu irmão Alfredo. Alem disso e para minha surpresa tem um monte de pessoas que eu reconheci apesar dos 55 (ou mais) anos passados.
    Muito Obrigado!
    Mario

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    M. Rosenblatt Recife
    Disse:

    Acho que pra contar toda a historia da Praca Maciel Pinheiro, serão necessarias 100 tomos grossos de uma enciclopedia.
    E todos nós, os idn (judeus) de Recife, estamos ligados a ela pelo umbigo.
    Eu me lembro dando voltas ‘a fonte com as estatuas, enquanto a minha baba’ olhava pra mim, preocupada pra eu nao cair do velocipede...
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    Sra Flora Bushatsky Recife

    Disse:
    Paulo Lisker somente agora lendo meus emails que estavam calados no meu computador, li este capitulo que muito me alegrou, só assim pude rever aquele garoto lindo que havia saído do Brasil muito jovem e não o encontrei mais, e esta sua conversa foi realmente algo que eu hoje com 88 anos também com boa memória. Graças a Deus posso sentir como se você fosse da nossa família , o que temos que agradecer muito. Que possamos nos conversar ainda por algum tempo. Kol Hacavod para sua família.
    Paulo que desenhos lindos e sua memória extraordinária captou nos mínimos detalhes, parabéns . Flora Bushatsky.
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