"A lavadeira dos olhos verdes".
DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ
Tema: "A lavadeira dos olhos verdes".
Paulo Lisker, de Israel
Meu avô usava do sótão da minha casa uma grande sala que dava para a rua e um único quarto que nos bons tempos estava "entupido" (cheio) de mercadorias destinadas à venda à prestação e às vezes ele era um pequeno empório aonde vinham os fregueses decidir eles mesmos o que comprar ao seu gosto.
Na sala os moveis eram mínimos.
Uma cama de casal, apesar de ser viúvo desde que chegou da Europa.
No Brasil nunca quis casar de novo, apesar de inúmeras propostas sérias tanto de senhoras da comunidade do Recife, assim como do sul do país. Todas foram com muito respeito recusadas e se evitou deixar as pretendentes e os "casamenteiros" ofendidos.
O porquê disso ficou para nós indecifrável até o fim da sua vida.
Uma possível causa deste celibatário seria que ele não se considerava suficientemente rico para começar tudo de novo como marido e dono de casa. Na velhice estas coisas acontecem, ficam mais prevenidos contra a mudança de status, quem sabe?
Num lado da sala estava de pé um enorme guarda roupa de madeira de lei (madeira escura, acho que era jacarandá), que exalava um aroma como se as tabuas tivessem sido serradas agora. Imagino que hoje o cheiro seria de "madeira compensada" e cola, os tempos mudam.
Lá guardava a sua roupa passada (no ferro de guza á carvão) e engomada (com goma de verdade) e que exalava o cheiro do sabão de coco (produto caseiro) e anil (pra dar a brancura de doer na vista).
Esta arte era o capricho da sua querida lavadeira, dona Maria. Ele reconhecia o empenho dedicado a sua roupa e até parecia que havia um "chamego" com ela, mas disso falaremos mais adiante.
Lá estava também uma pequena parte dos produtos têxteis (cortes de fazenda) que eram destinados a venda.
Este guarda roupa tinha na parte de baixo um enorme "gavetão" e lá estavam guardadas muitas sombrinhas, guarda chuvas, sapatos e galochas que também eram produtos para vender a credito nos subúrbios.
Numa pequena cristaleira (vazia de cristais ou outros quaisquer utensílios), estava uma pilha de livros de reza e se não me engano, também um castiçal de metal, talvez de prata (não tenho certeza).
Eu mesmo nunca vi fazerem uso dele nas festas religiosas ou no "erev shabat", (véspera do sábado), que é um costume milenar judaico, o acender de velas em comemoração ao sábado "a rainha dos dias da semana" (Shabat há Malcá). Quando muito, acendíamos umas lamparinas num copo de azeite nos dias de "Iur Tzait" (em memória a um falecido ente da família).
Uma mesa oval, algumas cadeiras com assento de "palhinha", que de tanto uso algumas delas estavam rebentadas e substituídas por assento de compensado.
Um porta-chapéus com dois ou três guarda chuvas pendurados nos ganchos, assim como, uns chapéus brancos (estilo Panamá ou Ramenzoni) de aba larga, usados para evitar o solarão característico do Recife, quando saiam para vender ou fazer cobranças das prestações cobradas aos fregueses.
No Recife daquele tempo também não tinha hora pra chover, quando menos se esperava "caia um toró de lascar" (aguaceiro, para quem não conhece o termo popular), então o guarda chuva ou a sombrinha (para senhoras) era um apetrecho "companheiro" mais que necessário quando saiamos de casa.
Muitos goim (não judeus) esculhambavam (ridicularizavam, para quem não conhece o termo popular), conosco, chamando-nos de "Chamberlain", por estarmos sempre agarrado a um guarda chuva, feito o estadista inglês que aparecia nas fotos dos jornais, levando sempre um guarda chuva, usado talvez também como bengala.
Ou gritavam dos alpendres onde se abrigavam e esperavam a chuva passar:
-Olha ali o galego (palavra menos pejorativa que judeu) ele saiu "armado" de capa, guarda chuva e galochas, ele pensa que é de açúcar. Olha, olha ali o galego de açúcar com medo de se derreter na chuva! Dá fé no vento, com este guarda chuva tu ainda podes sair avoando, melhor volta pra casa galego medroso (as vezes usavam o termo judeu mesmo).
Numa das paredes da grande sala estava pendurado um calendário do ano ou era uma "folhinha", daquelas que todo dia arrancávamos à data do dia anterior e para quem se interessava pelo assunto, cada folha trazia um provérbio ou uma frase inteligente para aumentar a cultura do brasileiro.
Ademais nesta parede estavam pendurados os retratos do Brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora, João Pessoa e um diploma de sócio benemérito (fundador) do Hospital Evangélico. Nunca soube se este hospital existiu na realidade.
Três portas davam para pequenos terraços que espiavam para a rua.
Enquanto meu pai se ocupava com as goteiras, eu abria uma das portas e ficava olhando para o pessoal na rua, os bondes passando na frente da minha casa e a molecada amorcegando só por diversão.
Nunca vi o meu avô num desses terracinhos olhando para a rua. Sempre estas portas estavam aferrolhadas (fechadas com ferrolhos, não com chave), para evitar o calor da tarde penetrar na sala, caso contrario ela se transformava numa verdadeira sauna sueca.
Caso estava as porta abertas era para encaçapar (dar entrada livre) a brisa que soprava ao anoitecer.
Era um homem que não exigia muito do cotidiano se conformava em viver conosco e com um bom e amigável relacionamento com sua lavadeira uma vez por semana. Nesses dias ninguém o importunava para nada.
Recebia a trouxa de roupa lavada e entregava a roupa suja com a lista dos pertences e pagava pelo trabalho sempre mais que em qualquer outra casa.
-"Ela bem merece", dizia.
Dona Maria Vantaube do Socorro era o nome sua lavadeira,
Morava em Paulista, nas cercanias da fazenda Maranguape onde os Lundgreens criavam cavalos de puro sangue. Era uma viúva quarentona bem postada, de cabelos lisos prateados, de tez alva (branca, branca) e olhos verdes feito duas grandes esmeraldas.
Com certeza estas características ela herdara da possível mestiçagem com os holandeses que habitaram a área no passado por mais de duas dezenas de anos.
A escolha de meu velho avô não era de toda má. Dona Maria era um "mulherão", como diziam as nossas empregadas com um pouco de inveja e algo de cinismo e sempre complementavam murmurando: Eita avô "Pai D'égua", merece aplausos.
Porém esta é uma especulação minha depois de velho, não confiem nesta teoria não. Quem sabe poderia ser também o produto da minha fértil imaginação na puberdade que de vez em quando despertava. Ou não, quem sabe?
Como o tema não deixava de ser interessante andei averiguando com meus primos e eles me confirmaram ser certa a tal "teoria da lavadeira". Então agora, meus aplausos!
Ninguém da família tinha coragem de abordar o tema com ele, porem os amigos de vez em quando fuxicavam o assunto, mas sempre em reserva para não ofender o Her Josef que era o pivô nas reuniões amistosas com os inúmeros amigos no nosso terraço.
De repente ouço meu pai me chamar:
-"Vou descer, vem segurar a escada, tu não tens algo melhor o que fazer? Só ficar espiando os moleques na rua? Quando terminar me ajude a carregar umas telhas quebradas que retirei do telhado e eram as que causavam as goteiras que tanto tua mãe vivia reclamando".
Perguntei se reparou também as telhas de vidro da clarabóia que estavam "lascadas" (rachadas, quebradas), pois era por elas que a chuva pingava diretinho bem junto a minha cama, no meu quarto.
Disse-me que para isso iria chamar um dos carregadores, seu conhecido da Praça Maciel Pinheiro, para trocar as telhas de vidro da clara-bóia depois de tanto tempo sem conservação nenhuma, ele mesmo não tinha a habilidade de fazê-lo sem se ferir ou quem sabe coisa ainda pior.
-Vamos ver quanto o senhor Severino Caju de Mostardinha, vai pedir pelo serviço.
Vamos embora, daqui a pouco vêm os meus vendedores e eu quero estar pronto com a lista onde anoto os pagamentos que os vendedores cobraram dos fregueses durante esta semana.
Preparar a lista de entrega das encomendas que eles me deixaram na semana passada. Quero que no mais tardar na terça ou na quarta feira recebam o que encomendaram. Nunca se deve prometer e não cumprir, nisto se baseia todo nosso comercio da venda á prestação.
Falava comigo como se eu tivesse intenções de ser no futuro um prestamista como ele. Coitado, ele não sabia que eu queria ser caubói como Bug Jones ou Tom Mix. O diabo é que quer ser prestamista, vige, ta doido? Eu hein!
E se dirigindo a meu avô, antes de descermos carregando as telhas quebradas, convidava o velho sogro para cear logo mais:
-Her Zeide, vest arupkimen essen vetshere mit indz? Haint hot Anne guekocht a zupe fin a sheiner und a groisser "Capon"*.
Zi hot oich "preparirt"* gueshmakte "cocletn"* fin rindern fleish! (Do iídiche: Senhor Zeide, tu desce para jantar conosco? Anna preparou uma sopa de um lindo e gordo capão, também croquetes de carne fresca de rês).
A resposta já não escutamos, pois estávamos nos últimos degrau da escada rangedora e nos apressamos para ir tomar banho.
*Do iídiche já aportuguesado:
-Preparirt-Preparar.
-Cocletn-Croquetes.
-Capon-Capão
-Preparirt-Preparar.
-Cocletn-Croquetes.
-Capon-Capão

Prof. L. Dantas Recife.
ResponderExcluirDISSE:
Continuo me deliciando com as suas crônicas,
elas me "escancaram" às portas daquelas casas, de compridos corredores, existentes na Boa Vista... e que eu vislumbrava das estreitas calçadas....
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M. Rosenblatt Israel
Disse:
Eu nem me lembro do nome da lavadeira de minha mãe mas me lembro da cara dela. Uma nega feia demais...
Se não fosse feia, logo logo eu comia... hahahahaha
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Izaias R. Recife
DISSE:
É isso, todos nós tinhamos lavadeiras numa certa epoca, sem maquinas de lavar em casa, um tempo menos corrido e mais vivido. Muito boas suas recordações, como sempre. Estou repassando pra turma.