DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ.
Passeio matinal
Crucifixos nas paredes da sala do diretor do colégio Marista
FOTOS GOOGLE INTERNET (Para efeito ilustrativo)
Tema: Convivência e divergência com a vizinhança local.
27/7/2012
Paulo Lisker, de Israel
Era no tempo do Recife matuto.
Eu era menino e até que fiz amizade com meu avô levou muito tempo.
Eu via nele um "semi Deus" com aureola e tudo. Faltava-me a coragem ou temas para conversar com ele.
Naquele tempo de miúdo, eu pensava que gente velha só tinha coisas pra conversar com gente velha. Quem sabe era mesmo verdade. Será?
Ele falava com os amigos em iídiche* e em casa com os familiares em alemão e com os netos em português com sotaque pesado de imigrante, pois nunca estudou de uma maneira formal o idioma local. Para nós ele era um verdadeiro "Poliglota", um "bichão sabe tudo" e ficávamos amedrontados e meio afastados do "semi Deus".
Todos em casa o respeitavam, e muito.
Fazia as refeições conosco, ninguém sentava junto à mesa ou começava a comer antes de seu Joseph sentar primeiro e pegar nos talheres. Entre os dedos segurava uma fatia um pedaço de pão branco e dizia umas palavras incomprensivas para mim (talvez um voto de agradecimento pelo alimento que Deus nos brinda a cada dia). Nesta "santa" atmosfera ninguém dava nem sequer um piu, se alguém queria perguntar algo por demais importante ele balançava com a cabeça para responder sim ou não e em lugar de palavras expelia um som estranho "hum-hum-hum" e quem perguntou teria que entender a resposta. Com o decorrer dos anos esta pratica também desapareceu, pois dificilmente todos da família se reuniam para fazer as refeições em conjunto com exceção das jantas das sextas feiras com a entrada do shabat kodesh (sábado santo).
Mas com o tempo esta pratica também se acabou. Eram os primeiros passos do judaísmo se assimilando ao meio ambiente "goi" (sociedade local católica).
O Santo Papa Bento XVI, disse numa oportunidade: "Quanto mais uma religião se assimila ao mundo, mais ela se torna supérflua". * *
Assim acontece com o judaísmo quase em todo o mundo em geral, no Recife em especial e nas ultimas duas décadas, de uma forma galopante.
Contaram-me que ultimamente os casamentos mistos são a maiorias na comunidade judaica, casamentos na igreja católica com o dobrar dos sinos e a presença de um padre e um rabino (se na ocasião se encontra nas proximidades e senão também não faz mal não).
Aí Santo Padre Bento, vosmecê é um gênio, a sua profecia se realiza a olhos vivos e a todo vapor.
Do jeito que vai a religião judaica, tão antiga no mundo e que aguentou os rojões das perseguições e até o famigerado Holocausto, vai acabar sendo uma caricatura de religião. Uma pena.
Para morar, estava a sua disposição do "Semi Deus", o sótão inteiro do nosso casarão.
Seus amigos entravam e saiam de nossa casa na Rua Gervásio Pires, como se fosse a "casa da sogra" (no português popular: livremente e quando lhes dava na "veneta ou na cuca").
Todas as empregadas da nossa casa e das casas vizinhas (em geral eram casas de famílias judaicas, pois nesta área do bairro da Boa Vista grande parte delas era desta origem), conheciam o "zeide" senhor Joseph e seus amigos um por um, até botavam apelidos, pois tinham dificuldades em pronunciar os seus nomes verdadeiros.
Era comum ouvi-las transmitindo recados, assim:
-"Dona Anna, o "Galo de Raça" deixou um recado para o senhor Joseph", ou: "Olhe seu José, o seu amigo Moseis, o "mouco" (surdo) esteve aqui e deixou uma folhinha nova (calendário) pra vosmecê, já trago pro senhor ver "... ou: "O capitão Tambicu (um primo de nome Tabachnick, que fazia serviço militar no C.P.O.R.), mandou dizer que amanhã de noite depois da instrução no quartel, virá por aqui pro mode de escutar sua opinião sobre a compra de um sitio".
Assim era com todos os amigos da casa, não escapava um sem apelido.
Amigos de sua idade vinham visitá-lo pela sua sabedoria, para contar e escutar novidades.
Ele era o "jornal e o radio" para os amigos meio analfabetos.
Naquele tempo era raro telefone então seus amigos tinham a sua maneira de se comunicar avisando que estão na porta à espera que alguém venha abrir.
Isso era pela maneira que tocavam na campainha que sempre funcionou na nossa casa.
Os seus amigos veteranos adotaram um toque curto e outro longo (triiiiiiim-trin). Já o do meu pai, eram três toques longos (triiiiim-triiiiim-triiiiim). Eu depois de mais grandinho adotei a do meu pai sem pagar os "créditos", que naquele tempo ninguém sabia o que era isso, ainda bem.
Até o neguinho empregado da venda de dona Rosa na Rua da Matriz (aquele que trazia as compras para as casas das freguesas), tinha o seu toque especial, para que as empregadas viessem correndo e abrissem à porta.
Ele vivia murmurando e reclamando que o sol está quente "pegando fogo" e ele mesmo "ta morto de cansado" e que não esqueçam um copo de água fria e a gorjeta que dona Anna sempre deixava na mão da empregada. Tacava o dedo na campainha e lá se ia: (trin-triiiin-trinnnnnnnnnn), vem abrir danado.
Nesta oportunidade era quando brindávamos as roupas velhas e usadas do meu pai ou do meu tio, isto pelos favores que fazia o "neguinho" trazendo as compras para casa, levando e trazendo as tortas para assar na padaria no Praça Maciel Pinheiro e às vezes tirava a lata do lixo para a calçada.
Em geral isto funcionou durante anos mais do que perfeito.
Para nós era um prazer se desfazer da roupa velha e já fora de moda e para o "neguinho" da venda, era um prazer vestir nos domingos e feriados, roupas chique de "gente rica", depois que sua mãe ajeitava a sua medida.
Dessa maneira conhecíamos os toques na campainha dos amigos da casa e sabíamos que não eram os moleques da rua ou os alunos do colégio dos padres "Marista" que ao terminar o dia escolar tocavam na campainha e corriam pra longe.
Era para fazer anarquia, "esculhambação" e aperrear os de casa que iam até a porta e ficavam muito chateados com esta safadeza que acontecia quase todos os dias e não faltava a troca de "amabilidades" entre os moleques e as empregadas,
Um dia o meu avô "tomou as dores" e foi reclamar deste fato (molecagem) com o diretor do Colégio Marista, monsenhor Álvaro Bonifácio e mais qualquer coisa que já não me lembro mais.
Foi muito bem recebido na sala do diretor do colégio, até um cafezinho foi servido na ocasião do encontro.
Contava ele sobre este encontro ao meu tio Froico, prestamista no interior do Estado, que morava com a família em Palmares e odiava os padres em geral.
Relatava meu avô:
-Entrei na sala do diretor, tu não imagina Froico, as paredes da sala estavam cheias de crucifixos com Jesus pregado com pregos na cruz e uma coroa de espinhos na cabeça junto com uma inscrição dizendo que o crucificado era o rei dos judeus. Tu imaginas Froico?
Todas as paredes tinham duas ou três cruzes destas e entre elas retratos de Papas e santos.
Fiquei desconfiado que talvez uma das portas desse para uma outra sala onde praticavam os "autos da fé". Pendurado nas paredes instrumentos para torturas medievais, no chão e nos cantos desta sala estavam cheias de atas dos julgamentos de ereges condenados à fogueira na Praça Joaquim Nabuco.
Muita imaginação deste meu velho avô.
De qualquer forma a atmosfera não era muito acolhedora para um judeu que carrega as cicatrizes da santa inquisição e que vem reclamar da molecagem que praticam os alunos deste educandário católico apostólico romano.
Não é por demais fácil se manter sereno numa reunião desta espécie para quem carrega a culpa milenária de ser o responsável pela morte do filho de Deus desses padres e que hoje está pendurado numa cruz nas paredes das casas cristãs.
Mas apesar de suar aos cântaros (ar refrigerado não existia, só um pequeno ventilador na mesa do diretor, fazia espalhar o ar quente da sala e barulhento que nem um trem), ele não sabia onde meter as mãos, porém rapidamente se recuperou e mãos a obra.
O bedel trouxe outro cafezinho e o padre diretor perguntou: Com açúcar senhor Joseph?
Não precisa não, senhor padre, eu tomo ele amargo mesmo, obrigado.
Na realidade não resolveram coisa nenhuma, pois o "Santo Padre", diretor da escola foi bem explícito e disse:
Eu posso intervir em todo e qualquer problema dentro da escola, porém na rua não tenho autoridade nenhuma para mandar ou desmandar o que os alunos causam aos moradores nossos vizinhos. Espero que o senhor Joseph me entenda.
Pensou meu avô com seus botões:
-Tanto Jesus e Papas nas paredes, mas na hora do aperto santo nenhum ajuda e ainda dizem que o crucificado era o rei dos judeus. Só isso era o que faltava.
Suado dos pés a cabeça despediram-se como bons amigos, mas o meu avô esperou à hora de se vingar do Padre.
No dia que o colégio quis colocar um portão e começou o trabalho usando a nossa parede como sustentáculo de um lado deste enorme portão, foi aí que chamamos o fiscal da prefeitura que provou aos padres que a parede não pode ser usada para tal e eles deveriam construir um pilar e nele colocar as dobradiças para tal coisa.
Foi um rebuliço da peste, tinham que refazer todo o enorme portão, pois ao acrescentar um pilar com mais quarenta centímetros, logicamente toda estrutura metálica teria que ser modificada.
Ainda pior foi quando os vizinhos também exigiram o mesmo na parede do seu casarão, onde funcionava a pensão Internacional. Tudo isso levou tempo e gastos em dinheiro, pedido de licença da prefeitura e o "diabo a quatro" mais.
Parte da vingança pelos efeitos criminosos que a santa inquisição causou ao povo judeu, tinha começado.
Agora surgiu o catalizador para esta ação tão esperada: A molecagem dos alunos tocando todos os dias nas campanhias das casas de familia e "amolando a nossa paciencia" bem na hora do almoço. Aí vô, você é mesmo bom de bala!
Isso ainda não era nada para pagar o que a santa igreja cristã causou ao "povo preferido" e o mais interessante foi que até hoje nenhuma autoridade eclesiástica (um Papa, por exemplo) pediu perdão pelos crimes causados durante milênios.
Pensamentos inocentes de um povo que crê nos sentimentos positivos da humanidade. Tolice!
Bom nem por isso diminuiu a molecagem na nossa rua por parte dos alunos do colégio Marista, porém aprendemos a lidar com o problema e na hora da saída do colégio, ficava alguém de casa num postigo aberto feito um espantalho e desta forma os moleques iam buscar outro lugar para sacanear brincando com as campainhas das casas de família da Rua Gervásio Pires.
*Iídiche - Dialeto criado pelos judeus ashkenazitas, derivado do alemão. Assim se comunicavam os judeus de todo centro e leste europeu com exceção daqueles originários da península Ibérica, Itália, Grécia, denominados judeus sefaradim ou mizrahiim.
** (Revista italiana Panorama, em outubro de 2004).
Todos os direitos autorais reservados
Cuidem com os créditos



Dr. M. Rosenblatt Hadera, Israel
ResponderExcluirDISSE:
Se eu fosse o seu avÔ, eu botava um fio de eletricidade na campainha e quando ouvisse a turma saindo do Marista, ligava o fio a tomada na parede e esperava pra ver o primeiro trouxa a tocar na campainha e levar um tremendo choque eletrico. Seria a ultima vez que eles tocariam a campainha...
--------------------------------
Paulo
responde:
to Moshe
Obrigado pelo conselho, mandarei um mail para ele no céu.
A estoria em si, gostou? Ou foi por demais enfadonha?
Sempre diga algo, pois nos dizemos lá no nosso Brasil: FALE MAL DE MIM, MAS FALE!
Um abraço.
dR. M. Rosnblatt
Disse:
Claro que gostei. Isso é o obvio.
Nunca lí um artigo seu que não gostasse.
Se eu fosse o seu avo^, eu botava um fio de eletricidade na campainha e quando ouvisse a turma saindo do Marista, ligava o fio a tomada na parede e esperava pra ver o primeiro trouxa a tocar na campainha e levar um tremendo choque eletrico. Seria a ultima vez que eles tocariam a campainha...
Paulo
responde:
to Moshe
Obrigado pelo conselho, mandarei um mail para ele no céu.
A estoria em si, gostou? Ou foi por demais enfadonha?
Sempre diga algo, pois nos dizemos lá no nosso Brasil: FALE MAL DE MIM, MAS FALE!
Um abraço.
M. Rosnblatt
Disse:
Claro que gostei. Isso é o obvio.
Nunca lí um artigo seu que não gostasse.
ResponderExcluirSluva de Salvador- Bahia
DISSE:
Paulo: Gosto de ler suas crônicas. Alguns fatos narrados por você são semelhantes ao que aconteceu na Bahia. Não lembro de ter escutado sobre as latas que boiavam após o afundamento dos navios.
Sobre a crônica de hoje, lembro a você que o Papa João Paulo II, pediu perdão pela Inquisição.
Shabat Shalom, Sluva
ResponderExcluirEng.Rubem Pincovsky-Recife
Disse:
Estimado amigo Paulo Lisker,
Conto com a sua boa vontade no sentido de me desculpar pela ausência de notícias minhas. Não tenho como justificar, a não ser pela minha enorme preguiça de abrir o computador.
Parabéns pela sua crônica DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ. Como as anteriores, está ótima. Infelizmente não me lembro dele, seu avô. Lembro bem de sua mãe, sempre com porte altivo, elegante.
Como passa o tempo... Sociedade... Rua da Glória...Praça Maciel Pinheiro... Hashomer... Sinto enorme saudade de tudo isso...
Receba o melhor abraço,
amigo,
Rubem Pincovsky
ResponderExcluirEng. Israel Coslovsky- São Paulo
DISSE:
PAULO
Muito bonito este artigo. Parabens pelo patriarca da sua família,o velho Joseph.
Um abraço
Israel
ResponderExcluirSra.Rosaly B. Recife
DISSE:
Paulo,
Shabat Shalom!
Lí a crônica sobre seu avô.
Ótima.Não o conheci mas sempre apreciei contato com as pessoas mais velhas.Gostava de passar na Pça Maciel Pinheiro e vêr os velhos esperando a hora da reza na Sinagaoga da Martins Junior.
Gosto muito de suas crônicas e lembranças do Recife e do nosso Ishuv.Concordo que o Ishuv seja relapso em relação a memória dos antepassados.Hoje no entanto,temos um Arquivo Judaico,e uma Sinagoga Kahal Zur,que guarda um pouco do que se foi.Se pensa de rever ou conhecer ao vivo este acêrvo.Compareça.A vida flui.abraço,
Chochana-Rosaly
R. Naslavsky- Recife.
ResponderExcluirDISSE:
Paulo,
Eu,integrante deste ishuv,não concordo em perder estas preciosas lembranças.O que acontece,é que as vezes a vida corrida e assoberbada por algumas obrigações nos impede de realizar o que planejamos.
Afinal de contas,"Der mentsch tracht und Got lacht",não é senão bem judaico e baseado nas vivencias.Vamos sim,tentar junto aos interessados para editarmos esssas reminiscencias da nossa comunidade.Fale-me como pensara em formalizar.
Ishuv= comunidade em hebraico.
Não obstante nossa comunidade hoje ser bastante assimilada,uma grande maioria tenta continuar nossas tradições judaicas,se isto conforta.
Voltando as crônicas,não as esqueça.A história precisa ser preservada.
Remeterei o livro que minha sogra escreveu sôbre sua vida.Por gentileza remeta novammente seu endereço.Grata
Dr. Meraldo Zisman Recife
ResponderExcluirDISSE:
boa crônica, Paulo
Eng. Israel Coslovsky São Paulo Brasil
ResponderExcluirDISSE:
PAULO
MUITO BOM, MESMO.
NO PRINCIPIO PENSEI QUE ERA OUTRA VERSÃO DAS CONVERSAS COM MEU AVO, MAS LOGO PERCEBI QUE ERA UMA OUTRA HISTORIA, COMPLETAMENTE NOVA, E MUITO BOA E BEM ESCRITA. PARABENS !
ISRAEL
Dr. M. Rosenblatt Hadera-Israel
ResponderExcluirDISSE:
Interessante, você já escreveu muito sobre o seu avô, mas não me lembro de ter lido sobre os seus pais.
Paulo Lisker-Israel
ResponderExcluirPara: M. Rosenblatt Hadera-Israel
Estimado, Dr. Rosenblatt
Nas 100 croniquetas em que parte delas (umas 80) já foram postadas nos diversos Blogs, lá registrei passagens em que meu pai aparece e também minha mãe, porém para não parecer um "filho coruja" preferi denominar as minhas "croniquetas infantiloides", "DAS CONVERSAS COM MEU AVÔ", que era na realidade um homem com educação europeia ocidental e era muito apegado a ele.
Você começou a ler estas besteiras que escrevo já no meio da publicação, assim sendo, lhe envio novamente o LINK do meu blog e desta forma quando não tiveres o que fazer ou vontade de voltar ao passado terás muito material para se divertir, http://zipora70.blogspot.co.il/
Shalom e um fácil Kipur (dia do perdão).
Paulo