domingo, 11 de janeiro de 2015

O SANTO DE BEBERIBE (Parte 3)



O SANTO DE BEBERIBE  (parte 3)





Vendendo algum produto lácteo nas ruas da vila (o jumento, a carroça e o tonel com o produto).
Foto: Google - Internet 
Os pregões que me lembro do Recife "matuto".
Paulo Lisker
Israel

A terceira aquarela do Recife judaico
O SANTO DE BEBERIBE-(Hamalach - O Santo)
Parte 3



Em Beberibe ele tinha um sitio e lá vivia. 
Era um dos poucos judeus que eu lembre que eram "donos de terras" (um sitiozinho). Certeza se ele mesmo era o proprietário não tenho. Uma possibilidade seria que o tal sitio era arrendado de outrem.
Os outros eram:
Os Choze, que tinham um sitio plantado com coqueiros anão, lá para os lados de Paulista e ademais na época de safra em Pernambuco fazia doce artesanal de "jaca dura". Certamente não vivia disso, pois tinha uma joalharia enorme na Rua do Rangel.
Outro era o senhor Faingold que tinha umas terras lá para o lado das Mercês e plantava laranjas de boa qualidade e até utilizava plantio em "curvas de nível", pois tinha o terreno por demais ondulado e assim evitava a erosão do solo. 
Os Mesel que tinham umas terras lá para aquelas bandas de Beberibe.  (se alugadas ou não, desconheço), sei que as cuidava e administrava com muito carinho e produzia agro pecuária em pequena escala como um bom profissional na matéria.
O casal Marcos e Sure (Sarah) Sterenstein também tinham um sitio nas cercanias e parece que se contentavam com o que produziam e até punham a disposição dos veranistas judeus do Recife, os seus alojamentos. Nos tempos das ferias colegiais cedia parte do seu sitio para montar o acampamento de movimento juvenil de grupos sionistas que se preparavam para ascender um dia a "Terra Santa", Israel.
Até meu tio Jorge (Naftali) Weinberg, se meteu no agreste nordestino e produzia algodão "Mocó" e mandioca. Contam que já naquele tempo ele exportava "raspas de mandioca" para os países nórdicos.
Possivelmente mais algum outro judeu vivia metido no mato produzindo alguma agricultura, mas era raro demais, não era nada comum que judeus sem mais nem menos se metessem no mato logo ao chegar ao novo continente.
Em geral eles se estabeleciam junto a seus patrícios num núcleo urbano por menor que fosse, e lá se fixavam.
Buscavam a possibilidade de alugar um lugar para morar, queriam a existência de uma escola primaria (iídiche) para os meninos, receber conselhos dos veteranos no que diz respeito no que trabalhar para poder sobreviver. Em geral o primeiro trabalho (às vezes era para toda a vida), eram as vendas de porta em porta nos subúrbios, a conhecida profissão de "ambulante prestamista" (em iídiche, "klientelchick), vendendo a credito (prestação) a população menos favorecida. 
Outros serviços importantes para o emigrante era a existência de serviços religiosos, açougue que vendesse carne casher (abate segundo as o ritual judaico).
Que o idioma "iídiche" fosse conhecido e praticado pela maioria da comunidade para uma fácil e pronta comunicabilidade. A existência de um lugar para rezar  (a sinagoga) e para festejar os dias comemorativos do calendário judaico. Um cemitério em que o defunto recebesse um tratamento regido pelas normas religiosas judaicas, pois até para ser enterrado necessita seguir as normas ditadas pela bíblia. "Difícil de ser judeu" (Shveir tzi zain a iíd, em iídiche). Assim dizem os patrícios entre si;
Logo se organizavam e formavam uma comunidade, procurando criar os serviços mais necessários para manter os seus costumes tradicionais trazidos de Europa como parte de sua bagagem cultural e religiosa. 
Por isso mesmo se meter no mato sem todas essas "mordomias" que todo judeu recém chegado necessita (até exige), fica meio difícil de acreditar que por sua livre e própria vontade deixe o "calor" da sua comunidade e se vá meter a trabalhar a terra nos arrabaldes ou mesmo no interior do Estado. É difícil, mas acontece, pois a vida também tem dessas coisas. 

O que se sabia do passado da enorme família Meierel na Europa era que vivia numa "nesga de terra" (diminuta parcela) como "vassalo" (arrendatário) de um "puretz" (goi, rico e dono de terras).
Estava longe de qualquer cidade ou da "civilização" em geral.
Agarrava-se a ela com unhas e dentes e trabalhava arduamente no verão quente e nos invernos dum frio danado, lutava para sobreviver, pois a neve cobria toda a região com pelo menos um metro de espessura de gelo.
Trabalhar a terra no inverno, nem se fala, pois o frio intenso a tornava dura feito concreto armado, nem picareta ajudava.
Assim sendo, tinha que conseguir bastante produção no verão para sobreviver o inverno, ele, a família e seus animais domésticos.
Mesmo nestas austeras condições, cumpriam com todos os mandamentos religiosos judaicos no que diz respeito à exploração da terra e cuidados com os animais.
Saibam que a religião judaica é uma filosofia de vida, tem mandamentos e regras de como interpretar tudo que acontece no universo e as soluções são como dita a Bíblia.
O descanso no sábado é sagrado e era uma praxe mais do que normal. Paralisavam todas as atividades agrícolas na granja para descansar, rezar, ler e reler a Bíblia sagrada e nada mais alem disso.
O judeu "crente" não estava envolvido em nenhuma atividade física. Não havia exceções nem para as atividades agrícolas.  Quando fosse necessário executar alguma atividade no Sábado (shabat), assim como, a ordenha (atividade imprescindível neste ramo pecuário), ou servir alimentos aos animais, então pagavam a um goi (não judeu), para realizar esta missão, pois o sábado é sagrado, nem acender fogo nem trabalho de espécie algum.
Era "pausa pra meditação", tanto no sábado, assim como nas datas religiosas do calendário judaico e no ano "sabático".
No ano "sabático" (o sétimo ano de uso continuo do solo com as atividades agrícolas), deixavam a terra descansar. Esta ficava ao ermo recuperando-se durante o ano todo. 
Esta regra incluía também os animais de serviço, eles passavam o ano todo pastando, ruminando e vagabundando.
Era norma obrigatória a pratica da rotação de cultivos (Machzor Zraím, em hebraico).
Explico-me: Um determinado cultivo só era permitido voltar e ser semeado na mesma terra quatro anos depois de colhido, isto para não possibilitar as enfermidades e insetos predadores do solo se arraigar (ficassem bem instalados) e atacar o mesmo cultivo caso voltassem a semear no ano seguinte.
Nunca praticavam o "kilaim*" (cultivo consorciado, dois gêneros de vegetais distintos no mesmo campo ao mesmo tempo, ex. milho e feijão semeado juntos). Esta pratica estava condenada como impropria pela Bíblia.
Nos tempos bíblicos, livravam também os escravos (naquele tempo era permitido), para que pudessem se recuperar. Queiram ou não, essa Bíblia dos judeus era um compendio de leis sociais e normas de trabalho que antecedeu quase três milênios a era moderna quando alguém pensou sobre este tema.  
Ele cumpria com esta serie de leis e regras do trabalho agrícola, como ditam os princípios religiosos. Uma espécie de agricultura segundo as escrituras sagradas.  
O senhor Meierle e sua família se conduziam como agricultores da "Terra Santa" nos tempos bíblicos. Pelo menos se esforçavam por fazê-lo.  
Viviam do que produziam, pagavam pelo uso da terra ao "Purets" com um quinto da produção, armazenavam algum excedente para os tempos que a neve cobria tudo e impossibilitava as fainas agrícolas. Algo vendia nas feiras de vassalos da região, todo domingo.
O trabalho era todo ele realizado pela família sem nenhum assalariado goi (não judeu).
"Casher le mehadrin" (cuidados sanitários e regras religiosas sem que falte "nem um ponto nos ii") coisa difícil de realizar nas condições de vassalo e trabalho em campos alheios, mas faziam tudo para cumprir como diz a Bíblia sagrada.
Tem um ditado curto em iídiche que diz tudo: "Difícil de ser judeu". Porem os Meierles se conduziam perante Deus e o mundo como judeus ortodoxos e cumpriam todos os mandamentos como os seus ancestrais.
No final das contas era uma clássica agricultura de subsistência como a do nosso matuto camponês brasileiro no interior com uma diferença que tinha ademais que seguir as leis ditadas pela bíblia no que diz respeito ao trabalho da terra.
Um dia eles se aborreceram os com o "Puretz" que exigia cada vez mais do seu vassalo, mesmo em anos que a produção se perdera por este ou aquele motivo, climático ou sementes defeituosas que não germinaram. A chuva não foi suficiente na época em que os cultivos dela necessitavam ou violento ataque de milhares de pássaros famintos provenientes da Sibéria gelada e assim por adiante.
Aborrecido, arrumou sua trouxa e veio embora com a família, como fizeram muitos judeus europeus no principio do século XX, em busca de uma nova vida, sem Puretz (donos de terra exploradores dos pobres vassalos), livres de pogrom (violência, perseguição contra judeus) e pássaros famintos vindos da Sibéria. 
Um dia a coisa rebentou , não aguentavam mais o sofrimento e bradaram baixo o ceu europeu: "Que se vão à merda,  filhos duma egua", vamo-nos embora para o Novo Mundo, prá América"
Decididos e cheios de esperanças rumaram para o "desconhecido", os Meierls vieram parar no porto razo do Recife.
Até aqui a terceira parte do SANTO DE BEBERIBE.
Todos os direitos autorais reservados.
Cuide do Créditos



3 comentários:

  1. Dr. Ary Rushansky Recife
    DISSE:
    Paulo
    Você è genial.
    Minha esperança é que suas crônicas se perpetuem e possam a esclarecer as nossas gerações jovens.
    Lembro que poderias incluir o "Banco Popular Israelita de Pernambuco" que bastante auxiliou os klientelchikes (prestamistas) recém chegados ao Recife.
    Do seu apreciador.
    Ary


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  2. Eng. Isaias Rosenblatt Recife
    DISSE:
    Curioso, não conheço ninguém da comunidade do Recife hoje em dia, mesmo alguns que têm terras em Carpina, Paudalho, Gravatá, que tenha interesses maiores em agricultura.
    As casas são para veraneio.
    A comunidade hoje é toda urbana e de profissionais liberais, mesmo os comerciantes são minoria.

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  3. Eng. Agr. Ildo Eliezer Lederman- Israel
    DISSE:
    Olá Paulo
    Tenho acompanhado e lido com interesse os 03 últimos capitulos da sua nova cronica ' O santo de Beberibe'​.

    Helinho

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