(Beberibe (paisagistico
Borrador preliminar
Os pregões que me lembro do Recife "matuto".
Paulo Lisker - Israel
Terceira aquarela do Recife judaico*
Tema: O "SANTO" DE BEBERIBE-"Hamalach"- (Santo, em hebraico).
Parte 1
O subúrbio de Beberibe no principio do século XX era na realidade um pequeno vilarejo com uns poucos moradores matutos, sem luz ou água encanada.
Contudo isso eles tinham um orgulho danado de ali viver. E por quê? De onde derivava este sentimento?
Pois logo lhes digo. Ali vivia um santo!
Um santo?
Sim, um santo!
Muito do que acontecia na nossa cidade ou nos seus arrabaldes não tinha explicação lógica.
Às vezes eram nada mais que simples boatos, totalmente irracionais, mas o povo jurava por Deus (sem isolar) e todos os santos que era a pura verdade e que até presenciaram o fato ou que alguém credenciado contou a sua vizinha que também era "mãe de santo no terreiro de Santa Bárbara" (coisas de crença africana, do Xangô), no Bairro de Beberibe em Olinda.
Pois é, diziam que um "santo em carne e osso", vivia entre eles na "freguesia" local (pequeno conglomerado habitacional).
Pelo menos assim consideravam o senhor Meierle ("O iluminado", derivado do iídiche e hebraico), que vivia num sitio beirando a ladeira que baixava da estrada principal e ia de encontro ao "Riacho das Lavadeiras", ali estava localizado o sitio do tal Santo.
Este riacho bonito, cheio de pedras escuras e lisas nas duas margens e que possibilitava as mulheres do arrabalde, mormente compostas de lavadeira, lavar a roupa das famílias do Recife, coisa que era muito comum naquela época para quem tinha a possibilidade de pagar por esta faina.
Assim foi até que apareceu o "bondes" (assim denominavam o tramway) por estas bandas. Antes elas carregavam e traziam a trouxa de roupa na cabeça a uma distancia enorme das casas dos clientes no Recife e de volta de Beberibe.
Do Recife vinha a trouxa de roupa suja e de Beberibe voltava limpinha, tinindo de branca, engomada e com um cheirinho de anil, toda ela lavada nas águas cristalinas do riacho.
Esta concentração de lavadeiras deu o nome, muito bem dado a este riacho. "Riacho das Lavadeiras".
A população local (cristã, na sua maioria), mormente analfabeta, frequentava com grande fé a missa dominical na diminuta capela de Santa Ana do Pinhal, padroeira do arraial.
De onde deriva essa total devoção pela santa essa que a capela lhe deve o seu nome? Pois bem:
Contam que um dia ela apareceu dentro de um matagal e salvou um negrinho de quatro anos das presas de um cachorro doido (raivoso), daquele dia ela se tornou a devota de todos os moradores de Beberibe.
A administração da capela estava a cargo do frei Justo das Águas Verdes.
Dizem que o nome deste frei foi uma tradução imposta naqueles tempos pelo Arcebispo de Olinda e Recife que se dizia entendido em todas as "falas" do mundo e até se comparava com a "sapiência" (sabedoria) do Rei Salomão (Rei dos Judeus que relata a Bíblia), considerado o mais inteligente dos seres humanos naquela época.
A historia conta que o tal Rei dos judeus era sabedor de todos os idiomas de gente e até de uma grande parte dos animais. Vejam só! O nosso Arcebispo e o Rei Salomão! Não era para menos.
O nome original desse frei era Justiniano Von Gruenwaser, de origem germânica, daí o nome abrasileirado dele, Dão Justo das Águas Verdes, uma tradução quase literal dado pelo arcebispo de Recife e Olinda.
A população da freguesia, mormente crente, composta de muitas crianças, mas não só, também os cegos e aleijados ao ver o "santo" Meierle passar pelas ruas do arraial, corriam atrás dele pedindo a benção e uma esmola "pelo amor de Deus".
Ele não titubeava e dava as duas coisas.
Dizia em iídiche: "zaint mir guezunt kinderlach" (que tenham saúde meninada) e tirava do bolso da túnica alva feito cal, uma dezena de tostões e na mão de cada inocente estendida, colocava uma pataca (Para quem não se lembra a moeda de um tostão não valia quase nada, porém era um verdadeiro "patacão" do tamanho de um cruzado de tempos mais modernos).
Não é preciso dizer da alegria dos meninos que saiam correndo atrás do vendedor de pirulitos (um doce de açúcar queimado), pois era a única coisa que comprariam com aquele tostão. Eram alguns "minutos doces" na vida deles, pois não se lembravam deste sentido durante muito tempo. A alegria deles era demais e também a do "santo".
Dizia ele: Ver meninos na miséria, alegres e sorrindo valia mais que tirar um "milhar no jogo do bicho". Este personagem era mesmo um santo de verdade!
Mas quem era o tal personagem que os moradores respeitavam e o elevaram a nível de santo?
O senhor Meierle sempre estava vestido de branco, (uma bata que chegava até quase os calcanhares), olhava os desafortunados e os meninos inocentes, descalços, corpinhos desnudos, vestimenta esfarrapado (quando possuíam algo assim), de barriga inchada de fome ou de parasitose diversa (cishtozoma, amebas ou verminoses), que habitavam as varias fontes das águas empossadas ou mesmo dos riachos temporários que se formavam com as chuvas.
Apesar do curto tempo decorrido (um centenário, mais ou menos) algumas informações sobre a sua chegada ao Brasil ficaram algo impreciso e não foi possível até hoje confirmar a sua veracidade. Do pouco que conseguimos ricochetar sobre ele nesta etapa foi que veio da Europa (duma aldeia da Lituânia ou Ucrânia ou Polônia), na verdade exatamente não sabemos. O ocorrido aconteceu no fim do século XIX (19) ou na primeira década do século XX (20). Se veio direto para o Recife, se chegou com família ou veio só como acontecia que muitos judeus que vieram sós e depois que se "arrumavam" no novo continente e juntavam um dinheirinho para comprar passagens marítimas e mandavam buscar a família que ficaram esperando na Europa.
Sei disso, pois assim mesmo aconteceu com meu avô materno. Veio com passagem comprada para o Uruguai, desembarcou no Recife, gostou e aí ficou.
Depois que juntou umas economias e com a ajuda dum um empréstimo de uma "caixa de emergência", (O banco iídiche), que pertencia à comunidade israelita, então conseguiu comprar as passagens e trouxe seus familiares. Será que foi assim que aconteceu com o Santo de Beberibe?
Será que alguém da família tem idéia? De depoimentos da geração atual de alguns familiares que vivem no Recife, esse Meierle era a "ovelha negra" ou como algum deles dizia que ele era um espécime de socialista ou maluco (sem juízo, na língua do povo) ou as duas coisas juntas.
Ninguém sabia ou queria relatar mais detalhes, se já veio casado e com quem, com quantas mulheres casou ou esteve amigado (Coisa normal naquela época nos nossos subúrbios), ficaram filhos, netos? Muito do seu histórico pessoal ainda é um mistério indecifrável.
Também como resolveu ir morar em Beberibe é para mim um mistério, pois geralmente judeu que desembarcou no primitivo porto do Recife, ficava por lá junto da pequena comunidade israelita e usufruíam da ajuda mutua muito importante nesta etapa de novo emigrante numa terra desconhecida.
"A união faz a força", isto deriva ainda dos tempos bíblicos quando se fala das "quatro espécies", (arbaát haminim) na festa de SUCOT (Tabernaculos). Cada uma delas em separado é frágil, porem juntas numa trança se torna inquebrantável.
Contam que o "Santo" distribuía seus pertences aos necessitados, nunca deu valor a bens materiais e foi se meter no "mato", quem poderia explicar tal fenômeno, pois vai em contra a todas as hipóteses.
Ele caminhava com suas "sandálias de frade" até o centro do vilarejo para fazer compras na quitanda de seu Hipólito, um portuga careca e gorducho, sempre com um toco de charuto "babado" (úmido de saliva), mormente sem lume (apagado) no canto da boca.
"Boa praça" era este portuga que cheirava a bacalhau e vivia amigado com uma nega de nome Maria do Socorro, "Mãe de Santo" no terreiro de Xangô na casa do Babalorixá Vicentinho Bacelar, vulgo "Pé de Cabra".
A sessão nesta casa, "batia" (funcionava) toda sexta feira de noite até a madrugada do sábado.
No fim da sessão era servido um Mungunzá bem quentinho para os participantes e visitas (sempre comparecia muita gente, até estrangeiros), pra presenciar nesta casa, a sessão do Xangô da sexta-feira.*
Serviam este prato típico (talvez de origem africana) também para aqueles que entravam em transe profundo e estavam deitados no chão de barro batido do salão, encostados nas paredes de taipa rebocadas e caiadas de branco. Dormiam um sono profundo como tivessem sido hipnotizados.
Esses coitados devotos depois de terem entrado em transe depois do intenso batuque nem forças tinham para comer. Uma "filha de santo" jovem, vestida toda de branco e com um turbante azul, os ajudava.
Todos comiam como se fosse um manjar preparado pelos próprios "deuses africanos".
Em tempo seria bom lembrar que na repressão da década dos 30, as casas de culto afro-brasileiro foram obrigadas a deixar de funcionar, assim como, a Maçonaria, e o partido comunista. (Sobre este tema do "esconde, esconde" pretendo escrever uma crônica, se Deus quiser e permitir).
O "santo" Meierle foi varias vezes convidado pelo "babalorixá Bacelar e a "mãe de santo" dona Maria Socorro, de modos de lhes dar a honra e estar presente numa sessão de Xangô nalguma sexta feira. Porem não levaram em conta que o "santo" era judeu e como entrava o sábado (dia do descanso para os judeus), ele declinava o convite, agradecendo e prometendo que outro dia qualquer da semana, ele aceitaria o convite com muito gosto.
Não deixa de ser interessante presenciar este ritual africano autentico, conservado e praticado pelos afro-brasileiros desde que vieram como escravos para os canaviais do novo continente.
Agora voltando a "vaca fria" (na fala do povo para expressar, "voltar à realidade").
Naquele tempo a quitanda do vilarejo até que estava bem sortida e permitia que na "Vila de Beberibe" não faltasse quase nada de alimentos básicos, necessários para a cozinha do dia a dia que não era por demais exigente .
Os clientes pobres compravam "na conta" e pagavam quando recebiam salário da municipalidade ou por algum biscate que realizavam durante a semana.
Na realidade ninguém simpatizava muito com o portuga, pois ele apesar de viver muitos anos no Brasil e estar amigado com uma negra brasileira da cor de piche e praticante do Umbanda, morria de saudades pela "tirrinha" dele, o Purtugal. Assim ele pronunciava no seu português no sotaque legitimo da sua terra, na península Ibérica.
Contava mil "potocas" (mentiras, na língua do povo) que na sua terra tem disso, daquilo e que nem se comparava com esta terra primitiva que é o "Brisil" (assim pronunciava). Contava das comidas do bacalhau, virgem Maria, só lhe faltava escorrer baba pelos cantos da boca.
-Ai o bacalhau a moda "purtguesa" no leite de coco da Angola era de "levantar até os defuntos" só pelo "chirinho". Vivia esculhambando (pondo defeito, na boca do povo) com a ex-colônia purtuguesa e elogiava a sua "tirrinha" lá do outro lado do mar.
Um tempo trabalhei na Angola e estava convencido que os portugueses eliminaram ou mudaram no alfabeto o som das vogais.
Falam: "muçambicano, angulano, purtuguês, facto, projecto, spato, trabsero, vrmelho, vrdade, cbeça", um menino novinho chamam de "puto", quarta faira, rvista, vregonha, só faltavam escrever "framácia" com ph e assim por adiante, Não acreditam? Pronunciem estas palavras em voz alta e vocês estarão falando no "sutaque" de "putuguês" nato. Engolem vogais, é uma coisa meio estranha. Cada um, com seus gostos e pronuncias.
Até aqui a primeira parte da terceira aquarela judaica do Recife. "O SANTO MEIERL de BEBERIBE"
Paulo Lisker-Israel
25-10-2011
(Todos os direitos autorais reservados)
Cuide com os créditos.
* Ver crônica anteriores "Aquarelas Judaicas do Recife":
-Senhor Sadigursky, "um pau pra toda obra".
-Dona Sprintze, "para que nunca falte manteiga".
-O "Santo" de Beberibe, "santo de verdade".

Eng. Isaias Rosenblatt Recife
ResponderExcluirDISSE:
Penso que até meados dos anos 60 as vilas ao longo do Beberibe (como Peixinhos, Águas Compridas e Passarinho) ainda guardavam um pouco de beleza natural. As lavadeiras de mamãe eram de lá. Depois disso, as cheias acabaram com essa vida mansa e idílica. A tecnologia das maquinas de lavar e a poluição das águas do Beberibe acabou com as lavadeiras. Existem, mas são raras e certamente não usam mais as águas do rio. O Beberibe está assoreado e altamente poluído.
Não sei nada sobre o Meyerle. A região ficou populosa com gente de classe média baixa. Surgiram montes de sub-bairros que vão desde a Escola de Aprendizes Marinheiros até a BR-101 (uns 10-12 km além), do Complexo de Salgadinho até Dois Unidos (presídio feminino), e da Campina do Barreto (perto do Arruda) até a PE-15 que vai pra Paulista e Paratibe. São morros com nomes variados e o rio (ou o que resta dele) correndo no vale. Acho que umas 200 mil pessoas ou mais moram por ali.
Dr. Ary e Lea Rushanasky Israel
ResponderExcluirDISSERAM:
EXCELENTE!
ary e lea
Lic. Bella Rushansky Recife Pernambuco Brasil
ResponderExcluirDISSE:
Parabéns, historia que emociona. continuando faz reviver os personagens.